terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Direto de Portugal I

Foto: Gérard Castello Lopes



OS MELHORES ANOS DA MINHA VIDA

Os melhores anos da minha vida
passaram comigo ausente, passaram
numa corrente subterrânea.
Não me apercebi de nada, distraído
com a queda das folhas,
a densa mistura de pão e desordem.

Estava tudo em aberto, mas eu não sabia
senão de pequenas querelas,
e tímidos passos à toa, sempre à espera
de não ter futuro. Sentado, como um pobre,
sobre o poço de petróleo,
eu media com tesouras as semanas,
misturava-me com livros, ansiava
pelo dia em que deixasse de sangrar.

Os melhores anos da minha vida troquei-os
por isto.


LIBERTAÇÃO

Foi o dia em que um polido agente da autoridade
nos veio buscar a casa para nos interrogar.
Alguém havia assaltado o posto médico
e o medo da vizinhança apontara para nós.
Não sabíamos de nada, mas o nosso luto
(morrera-nos o mundo há pouco tempo)
dizia o contrário. Éramos muito jovens,
tínhamos a boca ferida de insultos. A nossa vida,
coitada, lia muitos livros de aventuras políticas,
sentia-se capaz, dizia, de dar a volta ao mundo
numa barca de cortiça. Não lhe demos confiança.
Após o depoimento ainda passei pela biblioteca
e à noite festejámos a libertação da nossa inocência.
Nunca mais pedimos sal aos vizinhos.


NÃO SEI SE SÃO OS TRINTA ANOS

Não sei o que se passa comigo:
cada vez me assusta mais a solidão.
Aos vinte anos, aos vinte cinco,
figurava o paraíso como um quarto vazio,
onde o silêncio de um livro ressoava
pela noite dentro. Protegia dos amigos
minhas horas, dos irmãos, dos apelos
do telefone. Como um cego de nascença,
estudava a escuridão. Sonhava-me
recluso numa ilha de fragais, rodeado,
de trincheiras, distante de pracetas,
acenos, convites pra jantar.
O lamento era o meu hobby preferido.

Não sei se são os trinta anos, a chuva,
o sabor de mais um dia derrubado
nos transportes colectivos,
a queda maligna das primeiras folhas;
não sei o que é, talvez o teu amor
comece, pouco a pouco, a civilizar-me.
Agora, se chego a casa e tu não estás,
corro a pôr música, abro janelas,
agarro-me ao telefone, como um náufrago,
incapaz de suportar por um segundo
o terror emboscado debaixo da cama,
atrás das estantes, dentro de mim.


ANTI-ÉCLOGA

A verdade é que também as urtigas
me aborrecem. Esta doçura dos pássaros,
a silvestre quietude da tarde atravessada
pelo balido das ovelhas, grandes imitadoras
de Edith Piaf, tudo isso não chega a ser
tão daninho como a luz de um semáforo
vermelho, mas um pouco de sangue
na biqueira do sapato faz-me falta.
Faz-me falta praguejar, ter um lago
de cimento onde cuspir, obstáculos
de fogo, fantasias, a metralha dos calinos.
Não me sinto nada bem com a doçura,
com a paz dos ermitérios, de onde Deus
se retirou há quinze anos. Esta resignação
das árvores, dos faunos, das silvanas,
da restante bicharada típica dos lugares
onde sofrer é natural como estar só,
a conclusão é que não sei caminhar sem sapatos
que me apertem. As sandálias do pescador,
as botas do alpinista, não me levam
a lado nenhum. Detesto confessá-lo,
mas eu sou da cidade até à raiz do terror.
Não consigo viver sem o saco de areia
onde exercito o excessivo golpe da exasperação.
Sem esse esbracejar a minha seiva coagula,
torna-se pastosa, sonolenta, felizita
como um rio de meandros preguiçosos,
lamacentos, imprestáveis - de que me serve
fingir o sossego a que não chego, brincar
às Arcádias em que não acredito?
Está decidido, prefiro sofrer.
Amanhã de manhã regresso ao abismo.







(José Miguel Silva, autor de, entre outros, Vista para um Pátio seguido de Desordem, Lisboa, Relógio D’Água, 2003)

sábado, 26 de dezembro de 2009

Uma canção para o ano novo

All that is left is all that I hide...

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

A história continua

Uma mulher vai de autocarro e de repente, num cruzamento, vê-se a si mesma pela janela, vinte anos mais velha, a rir junto a um homem alto — o homem parece constrangido, como quem se quer afastar, e ela encosta a cabeça no peito dele e parece feliz. A mulher salta do lugar, toca a campainha para sair, mas o motorista não abre porque não é uma paragem, e quando cai o verde, arranca, cruza a avenida, só pára longe. Mal a porta se abre, a mulher sai a correr em sentido contrário à multidão, até avistar o homem alto.
Esta história é parte de um livro que li há dias. Os livros dão-nos um corte da vida e os livros que fazem diferença abrem um corte na nossa vida. Uma noite, antes de escovar os dentes ou mudar o alarme, sentamo-nos na cama a folhear um livro que acabámos de receber. Lemos o primeiro páragrafo, voltamos a página, e algo acontece. Não é a laçada do “best seller”, que nos amarra ao que vai acontecer. É mais como o escuro de um poço ou de um quarto. Queremos e não queremos, metemos a cabeça e voltamos a tirá-la, tentamos habituar os olhos para ver, mas não vemos nada. E então, o que realmente está a acontecer é que se abriu um corte e estamos a ser puxados. Lemos para saber o que aquilo é, com um inquietante pressentimento de que somos parte daquilo, ou aquilo era parte de nós. Trata-se de viver aquilo, e não de saber como acaba.
Vários escritores brasileiros me foram dando a boquiaberta maravilha de ainda por cima aquilo ser a minha língua, e a vez mais recente não seria a última, escrevi aqui há uma semana.
Nessa mesma noite, sentei-me na cama a folhear um livro que acabava de receber, trazido do Brasil pela autora. Li o primeiro páragrafo, que é toda uma página, voltei a página e algo aconteceu. A história terminava logo ali, mas aquilo era só o começo. Continuei a ler sem perceber bem o que lia, com a rara sensação de que isso não tinha importância porque quando chegasse ao fim voltaria ao princípio. O fim era estar dentro daquilo —aquele quarto, aquela casa, aquela box de chuveiro, aquela mesa de restaurante, aquele labirinto, aquele autocarro, e habituar os olhos ao escuro.
Quem respirava ali? Quem falava? Homem, mulher, planta ou animal? Velho ou novo? Morto ou vivo? E o que estava a acontecer? Um enlace ou uma ruptura? Um sonho, uma visão, uma memória? O passado de alguém ou o meu futuro?
Ao longo de cem páginas, julguei avistar Kafka, e vi mesmo Borges, Blake, Poe, Raduan Nassar ou Clarice Lispector. Mas na verdade aquilo não se parecia com nada. Aquilo era “O Vôo Noturno das Galinhas”, da brasileira Leila Guenther. Contos-cortes, brevíssimos como um bater de asas, deixando à vista toda a galáxia que é uma cabeça.
Há livros em que tudo parece acontecer mas nada muda. Há livros em que tudo muda e nada parece acontecer.
Enquanto estivermos vivos a história continua.

(Alexandra Lucas Coelho*, jornal Público, seção "Viagens com Bolso", Lisboa, 18/12/2009)

* Jornalista do Público, autora de Oriente Próximo (Relógio D'Água, Lisboa, 2007), sobre os conflitos entre israelenses e palestinos, e de Caderno Afegão (Tinta-da-china, Lisboa, 2009)

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Duas poetas de Minas

A MENOR PARTE

Que letra foi gravada em minha alma?
Qual palavra me formou?
Ando, caminho por corredores iluminados
pelos laranjas e amarelos das fotografias.
Trago as unhas escuras como as de quem procurou
por objetos na casa incendiada.

Venta sobre o mármore:

Esqueceram-me.


(Adriana Versiani dos Anjos)




permanece na língua
o sabor de lima

e é doce -
como diz a memória

essa fruta
colhida
fora do tempo


(Mariana Botelho)

domingo, 22 de novembro de 2009

Quando Alice encontrou K


Quando ali se encontrou cá, ou seja, quando desse lado do espelho – aqui –, Alice encontrou K, K lhe mostrou um inseto num tribunal. E assim ensinou a Alice que a vida às vezes é absurda, mas nunca matemática. Alice se esqueceu do coelho, do gato, mas não do baralho, e então entendeu que tinha sido expulsa de lá pelo próprio pai. Uma vez do lado de cá do espelho da verdade, foi posar madura e quase nua para um fotógrafo pálido e arquejante, aos nove anos de idade.




(Leila Guenther)

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Antologia canina III - Os cães de Tokushima


Os cães de Tokushima merecem aqui menção particular, já pelo porte, já pelos costumes.
Como porte, são em regra magníficos, de grande corpulência; possivelmente, parentes próximos dos cães de luta da província de Tosa, não muito distante, pouco mestiçados com a canzoada reles que eu encontrava em Kobe.
Como costumes, convém saber que os cães de Tokushima vivem em geral em perfeita liberdade, conhecendo muito pouco a coleira e ainda menos a corrente. Têm seus donos nominais; mas acontece que, por miséria, ou por mesquinhez, ou por indolência, quase deles não cuidam. Os cães de Tokushima pouco se ralam por este fato; conhecem os donos vagamente; dormem em qualquer parte, pelas ruas; todos os dias, por duas ou três vezes, fazem visitas domiciliárias a uma certa clientela humana, furando pelos cercos dos jardins, saltando os muros, invadindo os pátios, indo até às vizinhanças das cozinhas, cheirando, rebuscando pelo lixo, devorando aqui uma espinha, ali um resto de batata; e vão embora, graves, dignos, com ares de verdadeiros agentes, que são, da manutenção da higiene pública.
Os cães de Tokushima, menos favorecidos da fortuna do que os cães de outros países, desconhecem o prazer do osso. É o caso que a gente desta terra, que até há poucos anos, como a grande maioria dos japoneses, não comia carne de vaca, come-a agora, mas vendida apenas em pedaços miúdos de febra, que se prepara em casa, em suki-yaki, isto é, guisando-a com cebolas, com açúcar e outros condimentos; o osso é excluído da caçarola doméstica.
Quanto às pesquisas domiciliárias destes industriosos visitantes, devo dizer, para lhes completar o caráter, que por várias vezes tenho estendido mão carinhosa àqueles, uns sete ou oito em número, que frequentam o meu lar.
A princípio, o gesto fazia-os fugir, apavorados; agora, suportam-no sem espanto, morno o olhar. O cão de Tokushima desconhece o uso das festas e as carícias; se as recebe por acaso, não sabe retribuí-las; quer comer, não quer festas. No respeitante ao seu grau de civilização, encontra-se ainda quase selvagem, quase nômade; não é ainda o companheiro, o amigo do homem; é, quando muito, o seu parasita, cauteloso e desconfiado.
É bem de ver que o homem de Tokushima também ainda não é o amigo do cão. Sê-lo-á um dia, certamente, com o andar dos tempos, quando confiar menos na sua boa estrela e nos homens, seus irmãos. Quanto a mim, a afeição humana pelos brutos é um sentimento emanado do agro das desilusões e dos revezes recebidos na existência social; quem sofre com os homens busca consolação fora deles.



(Wenceslau de Moraes, O Bon-Odori em Tokushima. Porto, Companhia Portuguesa Editora Ltda.)

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Antologia canina II - Do canto XVII da Odisseia



Respondendo-lhe assim falou o sofredor e divino Ulisses:
“Compreendo o alcance do que dizes: falas a bom entendedor.
Mas vai tu à frente; eu ficarei para trás, aqui neste sítio.
Estou habituado a levar pancada e a apanhar com coisas em cima.
O meu coração aguenta: pois já muito sofri no mar
E na guerra. Que isto agora se junte ao que já aguentei.
Um estômago cheio de fome é que nenhum homem pode esconder,
Coisa terrível, que muitos males traz aos mortais.
É por causa da fome que as naus de belos bancos são lançadas
No mar nunca vindimado, trazendo flagelos a pobres desgraçados.”

Assim falaram entre si, dizendo estas coisas.
E um cão, que ali jazia, arrebitou as orelhas.
Era Argos, o cão do infeliz Ulisses; o cão que ele próprio
Criara, mas nunca dele tirou proveito, pois antes disso partiu
Para a sagrada Ílion. Em dias passados, os mancebos tinham levado
O cão à caça, para perseguir cabras selvagens, veados e lebres.
Mas agora jazia e ninguém lhe ligava, pois o dono estava ausente:
Jazia no esterco de mulas e bois, que se amontoava junto às portas,
Até que os servos de Ulisses o levassem como estrume para o campo.
Ali jazia o cão Argos, coberto de carraças dos cães.
Mas quando se apercebeu que Ulisses estava perto,
Começou a abanar a cauda e baixou ambas as orelhas;
Só que já não tinha força para se aproximar do dono.
Então Ulisses olhou para o lado e limpou uma lágrima.
Escondendo-a discretamente de Eumeu, assim lhe disse:

“Eumeu, que coisa estranha que este cão esteja aqui no esterco.
Pois é um lindo cão, embora eu não consiga perceber ao certo
Se tem rapidez que condiga com o seu belo aspecto,
Ou se será apenas um daqueles cães que aparecem às mesas,
Que os príncipes alimentam somente pela sua figura.”

Foi então, ó porqueiro Eumeu, que lhe deste esta resposta:
“É na verdade o cão de um homem que morreu.
Se ele tivesse o aspecto e as capacidades que tinha
Quando o deixou Ulisses, ao partir para Troia,
Admirar-te-ias logo com a sua rapidez e a sua força.
Não havia animal no bosque, que ele perseguisse,
Que dele conseguisse fugir: e de faro era também excelente.
Mas agora está nesta desgraça: o dono morreu longe,
E as mulheres indiferentes não lhe dão quaisquer cuidados.
Pois os servos, quando os amos não lhe dão ordens,
Não querem fazer o trabalho como deve ser:
Zeus que vê ao longe retira ao homem metade do seu valor
Quando chega para ele o dia da sua escravização.”

Assim dizendo, entrou no palácio bem construído
E foi logo juntar-se na sala aos orgulhosos pretendentes.
Mas Argos foi tomado pelo negro destino da morte,
Depois que viu Ulisses, ao fim de vinte anos.




(Homero, Odisseia. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa, Livros Cotovia, 2003.)

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O céu que nos protege


(Ryuichi Sakamoto, "The sheltering sky")


A morte está sempre a caminho, mas o fato de você não saber quando ela chegará parece excluir da vida sua finitude. É aquela terrível precisão que tanto odiamos. Mas, porque não sabemos, pensamos na vida como um poço inesgotável. Mesmo assim, tudo acontece apenas um número fixo de vezes, e um número bem pequeno, na realidade. Quantas vezes mais você se lembrará de uma certa tarde de sua infância, uma tarde tão profundamente enraizada no seu ser que você sequer pode conceber a vida sem ela? Talvez quatro ou cinco vezes mais. Talvez nem isso. Quantas vezes mais você vai contemplar o surgimento da lua cheia? Talvez vinte vezes. E, ainda assim, tudo parece ilimitado.


(Paul Bowles, O céu que nos protege. A tradução do trecho é minha)

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Antologia canina (na feliz expressão de Carpeaux) I - A ilha Oxias


Essas perseguições nos países do Leste não são nada se comparadas ao que, em outra época, aconteceu na Turquia. O desenhista e escritor Sem as testemunhou. As ruas de Constantinopla eram célebres por sua população de cachorros, animais tranquilos, sociáveis. Pierre Loti dizia que gostava muito deles. Eram milhares. Em 1910, a polícia decidiu eliminá-los. Mas eles não foram mortos: foram deportados para uma ilha do mar de Marmara, a ilha Oxias. Sol a pino, sem água, sem comida.
Sem viu a rede de cães que os curdos prendiam com enormes ganchos de ferro. Eles eram jogados, “ofegantes como simples armênios”, em carroças puxadas por búfalos. Regularmente, gabarras carregadas de jaulas levavam novas vítimas para a ilha. Oxias, a distância, chamava a atenção por seu fedor. Milhares de cães e pássaros disputando as carniças lutavam até mesmo na água, sobre a qual flutuavam os cadáveres. Muitos se afogavam.
Eis o que os homens faziam aos cães enquanto não aplicavam os mesmos métodos aos seus semelhantes.



(Roger Grenier. Da dificuldade de ser cão. Trad. Lucia Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2002)

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Um trecho de Marguerite Duras

Um dia, já idosa, no saguão de um lugar público, um homem veio em minha direção. Ele se apresentou e me disse: “Eu a conheço desde sempre. Todo mundo diz que você era bonita quando era jovem, eu vim para lhe dizer que, para mim, é mais bonita agora do que quando era jovem, eu gostava menos de seu rosto de moça do que esse que você tem agora, devastado.”
Penso com frequência nessa imagem que apenas eu vejo e da qual nunca falei. Ela está lá no mesmo silêncio, maravilhosa. É, entre todas, aquela que mais me agrada, aquela na qual me reconheço, aquela que me encanta.
Muito rápido na minha vida foi tarde demais. Aos dezoito anos já era muito tarde. Entre dezoito e vinte e cinco anos meu rosto tomou uma direção imprevista. Aos dezoito anos envelheci. Não sei se com todo mundo é assim, eu nunca perguntei. Parece que já me falaram desse acometimento do tempo que às vezes nos acerta enquanto atravessamos os anos mais jovens, os mais celebrados da vida. Esse envelhecimento foi brutal. Eu o vi ganhar meus traços um a um, mudar a relação que existia entre eles, tornar os olhos mais proeminentes, o olhar mais triste, a boca mais definida, marcar a fronte com sulcos profundos. Em vez de me apavorar com isso, vi esse envelhecimento se operar no meu rosto com o interesse que eu teria levado no desenrolar de uma leitura. Eu sabia também que não me enganava, que um dia ele desaceleraria e tomaria seu curso normal. As pessoas que me conheceram com dezessete anos na época de minha viagem a França ficaram impressionadas quando me viram de novo, dois anos depois, aos dezenove anos. Aquele rosto, o novo, eu o guardei. Ele foi o meu rosto. Continuou envelhecendo, sim, mas relativamente menos do que deveria. Tenho um rosto lacerado de rugas secas e profundas, uma pele sulcada. Não é caído como certos rostos de feições finas, os contornos se mantiveram, mas sua matéria foi destruída. Tenho um rosto destruído.


(Marguerite Duras, O amante. A tradução do trecho é minha)

Lobos

- Você gosta de mim?, perguntou, agachando-se, até que seus olhos ficassem na altura dos de seu interlocutor. O cão a fitou com o mesmo olhar límpido de sempre. Ela sorriu, talvez de si mesma. Fazia vários dias que os lábios não executavam esse movimento. Fazia tempo que ela não tinha vontade de contrair nenhum músculo em sinal de alegria por estar viva. Ela era injusta. Era uma perfeita estranha até para si mesma. Precisava tanto dos outros que fugia deles. Ela simplesmente não saberia como. Como reclamar para si o direito a uma amizade, por exemplo. Como dizer para a colega da classe do inglês que fossem tomar um café. Os outros eram perfeitos estranhos. E ela não saberia. Por isso perguntava ao cão. Esse cão que a suportava todos os dias, todos os momentos, e cuja companhia, para ser sincera, ela preferia à de qualquer outro ser humano, na falta de lobos. Ela não precisava fazer nada. Ele não precisava também. Eles se seguiam pela casa. Só isso. Ela falava com ele, quando a vontade de comunicação, de articular algum som, parecia estar prestes a irromper de sua garganta como um vômito, do qual alguém tem pressa em se livrar, mas para o qual não se quer olhar mais, uma vez expelido. E ficava intimamente grata que ele não pudesse responder.
Quando a solidão e o estranhamento a abalavam a ponto de sentir náusea, era a ele que se agarrava e que abraçava com uma fúria tal que temia quebrar-lhe os ossos pequenos e frágeis. Era assim que ela fazia. Só para se lembrar de quem era. (Ela sonhava com uma matilha. Com lobos nos quais se pudesse fiar apenas pelo cheiro.)

(Leila Guenther)

sábado, 26 de setembro de 2009

Das perdas

(Ayde Veiga Lopes. Sem título)


Por alguns momentos, sentado numa das últimas poltronas, ele teve a impressão de que o veículo tombaria, derrubado pelos ventos do temporal. Isso, aliado ao fato de pensar, com angústia, no que o aguardava, o impedira de dormir, por meia hora seguida. E, com a angústia, ele se esquecia de respirar, esse ato para ele tão voluntário como todas as coisas que tentava controlar. De repente, com a interrupção do ar, sentia-se sufocar, com o coração palpitando de tal forma que julgava suas batidas perceptíveis ao vizinho do lado. Então dava um grande suspiro e tentava pensar com mais calma no motivo por que estava fazendo aquela viagem, depois de tão longa ausência. Julgara que o afastamento o colocaria a salvo da saudade, da dor, da impotência de resguardar tudo o que lhe era caro, quando ele na verdade só fazia despertar, de forma aguda e nas horas felizes, esses sentimentos de que um dia tentara se libertar. Talvez a paz de espírito tivesse estado perto de onde julgava mesmo estar o problema, ou talvez essa paz não fosse algo que ele, do jeito que era, achasse digno de atingir um dia, onde quer que estivesse. 
Quando o ônibus chegou aos arredores da cidade, notou que tudo estava lá, em seu devido lugar, quase sem mudanças, mas definitivamente perdido. O mal-estar da viagem cessara. No lugar dele, veio uma dor mais concreta e palpável: o sofrimento de não conseguir vislumbrar o mundo sem algo muito importante. Um mundo – o seu mundo – amputado, ao qual faltava um pedaço impossível de ser refeito. Se ao menos ele acreditasse que haveria um depois, algo além, um deus, por assim dizer, ele estaria mais tranquilo, seria até capaz de suportar, mas ele tivera a infelicidade de herdar do pai, aquele pai estranhamente submisso, uma profunda falta de fé. O pai, ao menos, tentara. Esforçara-se para adquirir algo que não tinha, e nunca teria, e por isso ficou louco, murmurando sempre e apenas “por que me abandonaste?” não a deus, mas ao próprio filho. Mas ele nunca teria ido tão longe. O mais longe que fora não era distante de onde sempre esteve. E agora estava de volta.
O ônibus chegou à rodoviária às 9h da manhã. A viagem tinha durado mais do que as dez horas habituais, por causa da chuva que caíra durante boa parte do percurso.
Ao desembarcar, trazia consigo uma pequena maleta, uma garrafa de água e um sanduíche que não conseguira comer. Sentiu-se perdido e, como sempre acontecia nessas situações, só. Apesar de toda aquela gente que movimentava o terminal, ele era incapaz de enxergar alguma coisa. E, mesmo se alguém lhe dissesse “eu o levo pela mão”, ele não poderia ouvir. Tudo lhe parecia abandonado, derruído. Resolveu se sentar um pouco no banco mais próximo da saída a fim de tomar força. Precisava de força, de uma coragem que ele não tinha tido nem mesmo quando partira, há anos. Só hoje se dera conta de que ter ido embora dali não fora um ato de coragem, mas uma retirada desastrada de alguém que, na fuga, deixa cair da valise vários pertences pelo caminho.
Esteve a ponto de chamar um táxi. Tentou fazer um gesto, mas o que seria dele se perdeu no ar. Ficou olhando a fila dos carros, nos quais entravam pessoas cujo destino se ignorava, a quem talvez aguardassem provações mais penosas que a dele. Só ele não conseguia. Ele sabia que era diferente, não para o bem, mas para o mal: era apenas um feto pela metade, que não poderia nunca ter vindo à luz. Diversos táxis partiram levando passageiros, sem que ele se decidisse a tomar um. Chorou impassível como um espectador no cinema que se emociona, com certo pudor, com um drama alheio e fictício. Estava cansado. Não podia se mover. Os pensamentos cessaram e sua cabeça ficou pairando num estranho vazio durante muito tempo. Depois, quase recomposto, olhou o relógio, voltando a si. Já anoitecia. O enterro devia ter terminado. Com esforço, separou algum dinheiro, jogou na lixeira a garrafa de água, o sanduíche e a maleta, e dirigiu-se ao guichê para comprar uma passagem de volta.

(Leila Guenther)


sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Bardos II



Suzanne

Suzanne takes you down to her place near the river
You can hear the boats go by
You can spend the night beside her
And you know that she's half crazy
But that's why you want to be there
And she feeds you tea and oranges
That come all the way from China
And just when you mean to tell her
That you have no love to give her
Then she gets you on her wavelength
And she lets the river answer
That you've always been her lover
And you want to travel with her
And you want to travel blind
And you know that she will trust you
For you've touched her perfect body with your mind.

And Jesus was a sailor
When he walked upon the water
And he spent a long time watching
From his lonely wooden tower
And when he knew for certain
Only drowning men could see him
He said "All men will be sailors then
Until the sea shall free them"
But he himself was broken
Long before the sky would open
Forsaken, almost human
He sank beneath your wisdom like a stone
And you want to travel with him
And you want to travel blind
And you think maybe you'll trust him
For he's touched your perfect body with his mind.

Now Suzanne takes your hand
And she leads you to the river
She is wearing rags and feathers
From Salvation Army counters
And the sun pours down like honey
On our lady of the harbour
And she shows you where to look
Among the garbage and the flowers
There are heroes in the seaweed
There are children in the morning
They are leaning out for love
And they will lean that way forever
While Suzanne holds the mirror
And you want to travel with her
And you want to travel blind
And you know that you can trust her
For she's touched your perfect body with her mind.

(Leonard Cohen)

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Hora marcada

Perto da calçada, ele para, atraído pelo relevo de um objeto no chão. É um relógio de pulso, com o vidro quebrado, destruído talvez por um carro ou apenas vítima de alguém que o tenha arremessado de uma janela. O relógio parou às 13h55. Ele acha que essa é uma boa hora para começar, ou para parar de. Não sabe o que faz ali, parado também. As pernas doem, por isso imagina que tenha andado bastante. Lembra-se vagamente de ter passado por avenidas largas e cheias de gente, cruzado pontes e atravessado túneis que propagavam ao infinito o ruído dos carros. Lugares onde não se vê a luz. De onde não se diz se lá fora faz escuro. Ele se lembra também, de uma forma menos nítida e no entanto mais vívida, de um quintal com uma mesa comprida em torno da qual várias pessoas, cujos rostos ele não identifica mais, bebiam e comiam o que ele preparava. Ele tinha pessoas ao redor de si. Ele falava. Ele existia. Havia cachorros cercando a mesa, à espera de que lhes dessem comida. Havia sol. Um sol cujos raios apareciam de vez em quando entre a folhagem que a brisa movimentava. Mas isso parecia tão distante no tempo que ele não tinha a certeza de tê-lo mesmo vivido. Um sonho, quem sabe. Agora ele está cansado. Tem sede. Senta-se na beira da calçada com os braços apoiados sobre os joelhos, de modo que as mãos pendem para baixo. Um cachorro se aproxima e enfia a cabeça sob suas mãos. Ele o afaga. O cachorro fecha suavemente os olhos e põe a língua de volta para dentro da boca. Parece cansado. Deve ter sede. Pode ter percorrido vários lugares, avenidas largas e cheias de gente, cruzado pontes e atravessado túneis que propagavam ao infinito o ruído dos carros. O homem olha de súbito para o cão, retira as mãos de cima do animal, afivela o relógio no pulso. Tem a sensação de já ter feito isso antes, de ter vestido inúmeras coisas inúteis, velhas, quebradas. Trastes que achou pelo caminho, sapatos furados, chapéu amassado, camisa sem botão. Então olha para a nova posse. Diz para si mesmo que já está na hora, que já não é sem tempo. São 13h55. Ele se levanta e parte na direção oposta de onde julga ter vindo. O cachorro o segue.
(Leila Guenther)

Triunfo


Quando Narciso nasceu, o cego Tirésias, que já vira o que era ser homem e o que era ser mulher, anunciou aos pais do belo menino que este viveria bastante e que durante muito tempo só saberia enxergar a si mesmo. Os pais, o deus Cefiso e a ninfa Liríope, não ficaram surpresos com o destino: com uma origem tão nobre, seria difícil que Narciso não se achasse, em sua longa existência, o centro do mundo.
As épocas transcorreram sem que Narciso fosse tocado pelo amor, que, no entanto, despertava tragicamente nos outros: a ninfa Eco, desesperada de paixão não-correspondida, enlouqueceu, passando a repetir o nome do amado para qualquer coisa que lhe dissessem, o jovem Amínias se suicidou com uma espada dada pelo próprio Narciso. Santos, pecadores, pintores e outros artistas o amaram sem que ele percebesse, tão concentrado estava na imagem de si mesmo. Até que, um dia, ao buscar seu reflexo numa fonte, como costumava fazer no exercício do amor-próprio, viu lá dentro o corpo de uma jovem afogada. Foi a primeira vez que Narciso viu algo mais bonito que ele próprio. Não se sabe se por amor àquela imagem ou por ódio de sua beleza, ele se matou, afogando-se ali também.
Nesse lugar nasceu uma flor, a que deram o nome de ofélia.



Leila Guenther. Texto publicado em Ciência e Cultura (http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252010000200028&script=sci_arttext)


(John Everett Millais, Ophelia) 

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Bardos I

"And I will never grow so old again..."


(Van Morrison, "Sweet thing")

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O dom do jasmim

Ela era destruição. Não podia negar que não fosse. Que não carregasse, como uma cicatriz, o sinal dos párias. O toque de Midas ao contrário, de modo a arruinar tudo o que tocasse. E ela não sabia não ser assim. Por várias vezes tentara, mas, antes de olhar para baixo, vinha a vertigem que lhe roubava a corda sobre a qual se equilibrava. E, quando dava por si, já tinha posto tudo a perder. Não era como uma tentação que se acercava: era como se ela fosse o próprio diabo caído. Tinha uma necessidade brutal de chacoalhar tudo, de tornar as coisas vivas a seu modo, pela violência, pela crueldade, pela dor. Para sobreviver a isso, alguns fugiram, mas, quando davam por si, tudo o que desejavam era ter de volta aquilo que os matava, buscando, de forma patética, o que haviam desdenhado com horror. Porque o extremo das coisas sempre fascina. Porque os vivos preferem existir no limite. Ele, ao contrário dos outros, tinha permanecido, mas, para compor a frágil estabilidade que lhe permitisse viver dela sem morrer disso, viajava com frequência sob diversos pretextos. Ela fingia acreditar neles. Quando ele partia, ela punha o perfume que ele tanto odiava porque lhe lembrava o cheiro da morte, dos cemitérios abandonados onde algumas plantas secam e outras vicejam em desordem. Ela punha o perfume para si mesma, sem saber que com isso realçava sua sina. Ela o usava até que ele voltasse. E ele voltava, pois sabia afinal que o espetáculo de um vulcão em erupção não era menos belo só porque assolava uma cidade.


Leila Guenther. Texto publicado em Ciência e Cultura (http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252010000200028&script=sci_arttext).


 

terça-feira, 7 de julho de 2009

Da salvação pelas obras




Em um outono, em um dos outonos do tempo, as divindades do Xintó congregaram-se, não pela primeira vez, em Izumo. Diz-se que eram oito milhões, mas sou um homem muito tímido e me sentiria um pouco perdido entre tanta gente. Além disso, não convém lidar com cifras inconcebíveis. Digamos que eram oito, já que o oito é, nessas ilhas, de bom agouro.
Estavam tristes, mas não o demonstravam, porque os rostos das divindades são kanjis que não se deixam decifrar. No verde cume de um monte sentaram-se em roda. De seu firmamento, ou de uma pedra ou um floco de neve, vinham vigiando os homens. Uma das divindades disse:
“Há muitos dias, ou muitos séculos, reunimo-nos aqui para criar o Japão e o mundo. As águas, os peixes, as sete cores do arco, as gerações das plantas e dos animais, tudo isso saiu a contento. Para que tantas coisas não os enfastiassem, demos aos homens a sucessão, o dia plural e a noite una. Outorgamos-lhes também o dom de ensaiar algumas variações. A abelha continua repetindo colmeias; o homem imaginou instrumentos: o arado, a chave, o caleidoscópio. Também imaginou uma arma invisível que pode ser o fim da história. Antes que esse fato insensato aconteça, eliminemos os homens”.
Ficaram pensando. Outra divindade disse sem pressa:
“É verdade. Eles imaginaram essa coisa atroz, mas também esta, que cabe no espaço que suas dezessete sílabas abarcam”.
Entoou-as. Estavam em um idioma desconhecido e não pude entendê-las.
A divindade maior sentenciou:
“Que os homens perdurem”.
Assim, por obra de um haiku, a espécie humana se salvou.



(Jorge Luis Borges, Atlas. Trad. Sérgio Molina. Globo, 1999)

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Você, de quem nunca estou distante

Não consigo lembrar de como era antes de conhecer você. Será que sempre fui como sou hoje? Lembro-me de estar perdido. Tenho certeza disso. Vagando. Indo de uma mulher para outra. Ficando, às vezes, apenas o tempo suficiente para compreender que a perplexidade delas era maior que a minha. Pelo menos, era o que parecia. Mas não me lembro de me sentir tão nervoso antes, tão desgastado. Eu as observava de uma certa distância, tomando banho de esponja em suas pias, raspando bolas negras com lâminas de barbear, movendo-se como rainhas em câmara lenta. Então, elas se transformavam nas garotas de antigamente, com risadinhas nervosas e dobrando as pernas longas sob o corpo. O modo como andavam com passos macios com os saltos altos e depois sacudiam o cabelo como os cavalos agitam a cauda.
Mas de você não guardo nenhuma distância. A cada movimento seu, sinto como se viajasse em sua pele. Cada olhar seu para fora da janela é como se estivesse completamente sozinha e sonhando com outros tempos. Não adianta balançar meus braços, acenando. Agora, tudo está ao contrário.



(Sam Shepard. Cruzando o paraíso. Trad. Aulyde Soares Rodrigues. São Paulo, Mandarim, 1996)






sexta-feira, 19 de junho de 2009

A mulher mais linda da cidade

Das 5 irmãs, Cass era a mais moça e a mais bela. E a mais linda mulher da cidade. Mestiça de índia, de corpo flexível, estranho, sinuoso que nem cobra e fogoso como os olhos: um fogaréu vivo ambulante. Espírito impaciente para romper o molde incapaz de retê-lo. Os cabelos pretos, longos e sedosos, ondulavam e balançavam ao andar. Sempre muito animada ou então deprimida, com Cass não havia esse negócio de meio termo. Segundo alguns, era louca. Opinião de apáticos. Que jamais poderiam compreendê-la. Para os homens, parecia apenas uma máquina de fazer sexo e pouco estavam ligando para a possibilidade de que fosse maluca. E passava a vida a dançar, a namorar e beijar. Mas, salvo raras exceções, na hora agá sempre encontrava forma de sumir e deixar todo mundo na mão.
As irmãs a acusavam de desperdiçar sua beleza, de falta de tino; só que Cass não era boba e sabia muito bem o que queria: pintava, dançava, cantava, dedicava-se a trabalhos de argila e, quando alguém se feria, na carne ou no espírito, a pena que sentia era uma coisa vinda do fundo da alma. A mentalidade é que simplesmente destoava das demais: nada tinha de prática. Quando seus namorados ficavam atraídos por ela, as irmãs se enciumavam e se enfureciam, achando que não sabia aproveitá-los como mereciam. Costumava mostrar-se boazinha com os feios e revoltava-se contra os considerados bonitos – “uns frouxos”, dizia, “sem graça nenhuma. Pensam que basta ter orelhinhas perfeitas e nariz bem modelado... Tudo por fora e nada por dentro...” Quando perdia a paciência, chegava às raias da loucura; tinha um gênio que alguns qualificavam de insanidade mental.
O pai havia morrido alcoólatra e a mãe fugira de casa, abandonando as filhas. As meninas procuraram um parente, que resolveu interná-las num convento. Experiência nada interessante, sobretudo para Cass. As colegas eram muito ciumentas e teve que brigar com a maioria. Trazia marcas de lâmina de gilete por todo o braço esquerdo, de tanto se defender durante suas brigas. Guardava, inclusive, uma cicatriz indelével na face esquerda, que em vez de empanar-lhe a beleza só servia para realçá-la.
Conheci Cass uma noite no West End Bar. Fazia vários dias que tinha saído do convento. Por ser a caçula entre as irmãs, fora a última a sair. Simplesmente entrou e sentou do meu lado. Eu era provavelmente o homem mais feio da cidade – o que bem pode ter contribuído.
– Quer um drinque? – perguntei.
– Claro, por que não?
Não creio que houvesse nada de especial na conversa que tivemos essa noite. Foi mais a impressão que causava. Tinha me escolhido e ponto final. Sem a menor coação. Gostou da bebida e tomou várias doses. Não parecia ser de maior idade, mas, não sei como, ninguém se recusava a servi-la. Talvez tivesse carteira de identidade falsa, sei lá. O certo é que toda vez que voltava do toalete para sentar do meu lado, me dava uma pontada de orgulho. Não só era a mais linda mulher da cidade como também das mais belas que vi em toda a minha vida. Passei-lhe o braço pela cintura e dei-lhe um beijo.
– Me acha bonita? – perguntou.
– Lógico que acho, mas não é só isso... é mais que uma simples questão de beleza...
– As pessoas sempre me acusam de ser bonita. Acha mesmo que eu sou?
– Bonita não é bem o termo, e nem te faz justiça.
Cass meteu a mão na bolsa. Julguei que estivesse procurando um lenço. Mas tirou um longo grampo de chapéu. Antes que pudesse impedir, já tinha espetado o tal grampo, de lado, na ponta do nariz. Senti asco e horror.
Ela me olhou e riu.
– E agora, ainda me acha bonita? O que é que você acha agora, cara?
Puxei o grampo, estancando o sangue com o lenço que trazia no bolso. Diversas pessoas, inclusive o sujeito que atendia no balcão, tinham assistido à cena. Ele veio até a mesa:
– Olha – disse para Cass, – se fizer isso de novo, vai ter que dar o fora. Aqui ninguém gosta de drama.
– Ah, vai te foder, cara!
– É melhor não dar mais bebida pra ela – aconselhou o sujeito.
– Não tem perigo – prometi.
– O nariz é meu – protestou Cass, – faço dele o que bem entendo.
– Não faz, não – retruquei, – porque isso me dói.
– Quer dizer que eu cravo o grampo no nariz e você é que sente dor?
– Sinto, sim. Palavra.
– Está bem, pode deixar que eu não cravo mais. Fica sossegado.
Me beijou, ainda sorrindo e com o lenço encostado no nariz. Na hora de fechar o bar, fomos para onde eu morava. Tinha um pouco de cerveja na geladeira e ficamos lá sentados, conversando. E só então percebi que estava diante de uma criatura cheia de delicadeza e carinho. Que se traía sem se dar conta. Ao mesmo tempo que se encolhia numa mistura de insensatez e incoerência. Uma verdadeira preciosidade. Uma jóia, linda e espiritual. Talvez algum homem, uma coisa qualquer, um dia a destruísse para sempre. Fiquei torcendo para que não fosse eu.

(Charles Bukowski. “A mulher mais linda da cidade”. A mulher mais linda da cidade e outras histórias. Trad. Albino Poly Jr. Porto Alegre, L&PM, 1996.)
 
 


terça-feira, 16 de junho de 2009

Cura de um cego

Consta que um homem cego de nascença perambulava por terras áridas e longínquas, num mundo escuro e largo, à procura de quem o curasse, quando ouviu o tropel da multidão que passava. Perguntou o que era. Anunciaram-lhe que Ele passava por ali. Conhecendo de ouvido seu poder, rogou-Lhe um milagre. “Que queres que eu te faça?”, Ele indagou. Respondeu o cego: “que eu veja”. “Tens certeza?”, replicou Ele, desapontado. “Por misericórdia”. “Pois assim seja feito; tua cegueira te perdeu, mas tua obstinação te salvará”. E o cego pôs-se a enxergar. Consta também que esse homem, antes sem visão, tendo então vivido e visto, furou os próprios olhos, num assomo de desespero, à maneira tebana.


(Leila Guenther. O vôo noturno das galinhas. Ateliê Editorial, 2006)

sábado, 6 de junho de 2009

Móvel e provisório

Tenho um carro. É simples, mas é meu (ainda o estou pagando) e me permite me locomover para qualquer lugar que seja. Não que eu precise ir para muito longe. Mas a sensação de pelo menos poder ir é reconfortante. A mobilidade é um grande dom. Posso levar também. Posso levar um doente ao hospital, antes que a morte o leve. Posso ser mais rápida que a morte. Na verdade eu fiz isso há alguns dias. Levei alguém a um hospital com o meu carro. Alguém que não voltou. Eu fiquei esperando – eu passei a vida esperando – mas ele não voltou. Era para ele voltar, não havia dúvidas quanto a isso, mas não deu certo. Ele ficou e eu fui. Depois de algum tempo parada, a gente se espanta com a capacidade que ainda tem de ser móvel. E se espanta mais ainda com o caráter provisório das coisas. A vida era provisória e eu não sabia. O amor era provisório e eu não sabia. Joguei no lixo do banheiro o presente com que eu esperava aquele que não voltou, peguei algumas roupas, o notebook, o cachorro e as coisas dele – casinha, cobertor, ração, brinquedo (ele precisa de mais coisas que eu, percebi com infinita surpresa) –, pus tudo no carro e parti. Na estrada vi tudo ficando para trás numa velocidade absurda. O que eu era, o que sou, se despregou de mim como pele velha e ficou parado no mesmo lugar, enquanto a viagem prosseguia. Não preciso mais do que eu era, do que sou, constato também com infinita surpresa. Chego a algum lugar. Sei apenas que é também provisório. Depois de usar a rede via linha telefônica, sei que vou precisar de uma banda larga. Mas já me decidi: será uma internet 3g, dessas que a gente pluga no notebook, também móvel, e vai para onde quiser. Se eu voltar a ter uma casa, sei que não haverá telefone fixo. Só celular. Móvel. Minhas roupas, onde estou, continuam na mala. Abriram-me um espaço no guarda-roupa mas não quero usá-lo. Minha mala é meu melhor guarda-roupa agora. De repente me dou conta de que móvel e provisório são sinônimos. Eu sou móvel, portanto sou provisória. Agora que estou perdida eu me encontrei. A gente se acostuma com tudo e muito rapidamente. A gente se acostuma com a falta que os outros fazem. O cachorro não. Ele precisa de mais coisas do que eu. Nem parece que um dia descendeu de um lobo nômade. Ele tem necessidade de que tudo esteja no seu devido lugar. Ele ainda não aceitou que não há lugar para a gente. Por isso ele chora sem parar.




(Leila Guenther)

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Depois do fim

Já conhecia bem a sua parte – seu quarto. Nele, deitava-se agora na cama, pois, após experimentar todo o chão e demais reentrâncias, achou que a cama (sob a qual permaneciam imóveis os livros com manchas amarelecidas não porque velhos, mas porque mofavam tão logo entravam naquele cômodo ou em qualquer outro daquela casa) era o melhor que lhe caía. Bastava perambular com os olhos para entender que atrás da cômoda se apinhavam teias de aranhas poeirentas porque nunca limpavam ali, e tampouco eram retirados do lugar os objetos que repousavam sobre ela: os porta-retratos, dispostos estranhamente, cujas fotografias antigas se escondiam umas atrás das outras, a caixa de prata já preta que não continha jóias, mas pedaços de bijuterias estragadas, papeizinhos e um rosário em desuso. A caixinha escurecia, como tudo que de prata fosse em seu corpo.
Sobre a bicicleta ergométrica sedentária, ao canto, amontoavam-se as roupas limpas, mas nunca passadas a ferro, que ninguém passava roupa naquela casa. Não as guardava no armário, que seria inútil ter de tirá-las de dentro dele para que fossem novamente usadas. Ao lado do guarda-roupa se formava um vão onde cabia o velho violão sem cordas e, se mexesse ali, aí sim veria com nitidez a poeira alçando voo para se depositar no umbral da janela, fazendo-a, ao longo do tempo, emperrar como sempre. Através de seu vidro era possível ver as manchas gordurosas dos dedos antes limpos como o resto do corpo que agora jazia sobre a cama. Todas essas coisas entulhadas davam-lhe a impressão de que, embora o movimento fosse ínfimo, seria certamente acompanhado de uma pausa. E devia haver um momento em que tudo para. Tinha certeza disso quando observava a inércia que se apossava de seus membros, um a um. Sequer erguia as mãos para algum gesto de desalento, o corpo não se mexia, exceto os olhos. Breve eles também cessariam o movimento inútil de vagar por esse lugar já tão conhecido, até a hora em que resolvessem tornar a se abrir.
(Leila Guenther. O vôo noturno das galinhas. Ateliê Editorial, 2006.)

quinta-feira, 28 de maio de 2009

"A fera" na Universidade do Texas

Ivan Teixeira, professor da Universidade do Texas e da Universidade de São Paulo, fala de um curso sobre o Conto Brasileiro, que ele ministrou recentemente nos EUA:

Prezada Leila,
Como vai, tudo bem?
Escrevo para dar um alô sobre a leitura de seu conto "A Fera", na turma de graduação em que acabo de dar um curso intitulado "Brazilian Short Story". O curso foi em português. Seu propósito era fornecer uma visão de conjunto sobre a instauração e prática do conto no Brasil. Foram lidos textos de Álvares de Azevedo, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Antônio de Alcântara Machado, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan e seu. Foi lido também uma estória de Poe. Na verdade, além de fornecer um panorama dessa prática textual no Brasil, pretendeu-se fornecer elementos teóricos sobre análise e interpretação do texto literário.
Foi um curso muito funcional e alegre. Os alunos, no geral, são ótimos e gostam de ler em português. Só havia um aluno brasileiro. Os demais eram americanos, de origem latina ou anglo-saxônica.
Por coincidência, o tema da solidão foi trazido à baila, visto que tínhamos lido "A Terceira Margem do Rio" e "O Búfalo". Digo coincidência da escolha de três textos sobre o mesmo motivo. Mas falar da misantropia parece inevitável diante de seu belo texto. A voz isolada de "A Fera" foi associada ao discurso existencial das duas outras personagens afastadas do entendimento com as pessoas. O que mais chamou a atenção foi choque entre realidade e fantasia, donde a discussão se dirigiu para a verdadeira identidade da figura da caixa.
Não tendo a forma de narrativa propriamente dita, o conto foi entendido como uma espécie de "baby annoucement", que é um tipo de texto que as pessoas escrevem para anunciar o nascimento de alguém querido. No caso, o nascimento da paixão do misantropo pela companhia, por quem ele sente, agora, forte apego, embora diga o contrário.
Falou-se também da hipótese de que o texto, sem contar uma estória, procura analisar uma situação que, enfim, não é tão estática quanto parece. Como a situação é interiorizada, concluiu-se que é possível entender o texto como conto de personagem, no sentido de fazer decorrer sua singularidade das propriedades psicológicas de uma figura ímpar.
Por fim, falou-se da possível adequação entre o estilo sereno e sóbrio e a temática da auto-análise de um solitário que se afasta da vizinhança como possível forma de preservação da identidade. Em seguida, observamos que o relato dele é oblíquo, pois sugere o contrário do que afirma. Surgiu, aí, a hipótese de que a ironia melancólica seria uma possível caracterização para definição da figura de retórica que suporta o conto.
Deixo esse micro-relatório despretensioso como forma de agradecimento pela oferta do conto.
Abraço cordial,
Ivan.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Se Dexter Gordon cantasse

Quando à noite ofereço um pouco de whisky a Turíbio, estendendo meu copo em direção a seu nariz, ele vira a cabeça para o lado, num gesto de desprezo. Mas não se afasta, porque sabe que a música vai começar.
Então nos pomos a escutar as diversas versões de “’Round Midnight”. Depois de o whisky fazer algum efeito, imito Dexter Gordon, no filme homônimo, quando, olhando para um bêbado que acabou de cair para trás, pede ao barman, com sua voz rouca e mole: “Quero tomar o que esse aí tomou”.
Turíbio tem a felicidade de só precisar da música: em pouco tempo ele já está em paz, dormindo, com sua imensa cabeça de buldogue apoiada sobre minhas coxas.

(Leila Guenther)

Náusea em alto-mar

Preciso dizer isso. Tenho pressa. Quando tudo se confunde, se os motivos deste vagar constante se perdem, quando não sei mais se busco alguém ou se outro me persegue, então me lembro de você. Poderia ser este o motivo, talvez seja. Esta viagem não tem nome, nem destino, mas você foi sócia deste itinerário. Até ir embora, ou me impelir a ir. Falo sem mágoa, nem poderia ser diferente. Fiz uma escolha. Não tenho medo de ficar só. O nome disso é tristeza. Te vejo ir e sei que fui eu quem causou este estranhamento, fui eu que soltei sua mão quando você tentava me segurar. Senti seus dedos escorrendo por minha pele, o contato frio e úmido. Evitei olhar em seus olhos, sabia que os encontraria também úmidos. Sei desta dor porque também a sinto. E por que fiz isto? Me pergunto neste momento em que sua imagem se distancia, sem palavras. Você foi embora, para o refúgio de sua casa, ou se mudou de cidade, qualquer coisa longe de mim. Os caminhos se afastaram, e me pergunto como deixei que se fosse alguém que gosto tanto. A pulsão da vida me assalta, me faz prisioneiro de vontades tolas, me desgoverna. Refaço minha história a cada minuto, ainda que me custe um bocado. Sigo atrás de uma alegria que quase vem, quase, e que eu insisto em buscar. Piso um chão movediço, me delicio com suas armadilhas, rio e choro pelos mesmos motivos, sou pura contradição. Te quero e te deixo ir. Vivo hoje, quem sabe de mim amanhã? Vou pegar meu barco, minha nau trôpega, com suas velas atrevidas e frágeis, e vou seguir viagem. Vou em busca de um destino, uma razão que justifique a travessia, um lugar em que possa atracar – ainda que por pouco tempo. Sei pouco do mundo, mas acaricio uma certeza: as águas que me levam não passam mais por sua cidade.


(José Eduardo Gonçalves. Vertigem. Rio de Janeiro, Record, 2003)

Entre a Diversidade e a Identidade: Segundo Encontro com a Literatura Brasileira Contemporânea

Programa

1. Literatura Brasileira Contemporânea e Poesia (30/08/09)
a. Alberto Martins
b. Edner Morelli
mediador: Maurício Silva

2. Literatura Brasileira Contemporânea e Romance (06/09/09)
a. Lourenço Mutarelli
b. Santiago Nazarian
mediador: Joel Rosa

3. Literatura Brasileira Contemporânea e Conto (13/09/09)
a. Bruno Zeni
b. Leila Guenther
mediador: Rita Couto

4. Literatura Brasileira Contemporânea e Webliteratura (20/09/09)
a. Sandra Souza
b. Edson Cruz
mediador: Selma Tuareg



Horário e Local
Memorial da América Latina (Sala dos Espelhos)
Dias 30/08; 06/09; 13/09; 20/09
Sábado, das 10h. às 12h.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Trança de poemas

Há uma mulher a morrer sentada
Uma planta depois de muito tempo
Dorme sossegadamente
Como cisne que se prepara
Para cantar

Ela está sentada à janela.
Sei que nunca
Mais se levantará para abri-la
Porque está sentada do lado de fora
E nenhum de nós pode trazê-la para dentro

Ela é tão bonita ao relento
Inesgotável

É tão leve como um cisne em pensamento
E está sobre as águas
É um nenúfar, é um fluir já anterior
Ao tempo

Sei que não posso chamá-la das margens

(Daniel Faria)


lua entre folhas
nada
mais
não fosse a procura
de crateras
no coração

saudade de tudo:
sol e criança desconhecida
na janela de um ônibus

olho mudo
deixado em jardim
que nunca mais será visto

dor que começa
em todo último minuto
e estica-se magra
amarga lágrima
de tudo

(Ricardo Lima)

Os detetives perdidos na cidade escura.
Ouvi seus gemidos.
Ouvi seus passos no Teatro da Juventude.
Uma voz avançando como uma flecha.
Sombra de cafés e parques
Frequentados na adolescência.
Os detetives que observam
Suas mãos abertas,
O destino manchado com seu próprio sangue.
E você não pode nem mesmo se lembrar
Onde estava a ferida,
Os rostos que você amou um dia,
A mulher que salvou a sua vida.

(Roberto Bolaño, trad. de Rodrigo Garcia Lopes)

sexta-feira, 8 de maio de 2009

A música que inspirou meu conto "Avalanche"

Well I stepped into an avalanche,
it covered up my soul;
when I am not this hunchback that you see,
I sleep beneath the golden hill.
You who wish to conquer pain,
you must learn, learn to serve me well.
You strike my side by accident
as you go down for your gold.
The cripple here that you clothe and feed
is neither starved nor cold;
he does not ask for your company,
not at the centre, the centre of the world.

When I am on a pedestal,
you did not raise me there.
Your laws do not compel me
to kneel grotesque and bare.
I myself am the pedestal
for this ugly hump at which you stare.

You who wish to conquer pain,
you must learn what makes me kind;
the crumbs of love that you offer me,
they're the crumbs I've left behind.
Your pain is no credential here,
it's just the shadow, shadow of my wound.

I have begun to long for you,
I who have no greed;
I have begun to ask for you,
I who have no need.
You say you've gone away from me,
but I can feel you when you breathe.

Do not dress in those rags for me,
I know you are not poor;
you don't love me quite so fiercely now
when you know that you are not sure,
it is your turn, beloved,
it is your flesh that I wear.
(Leonard Cohen, "Avalanche")



A última vez que a garota veio vê-lo parecia fazer tanto tempo que, por fúria ou em sinal de castigo, ele mordeu suas costas até deixar nelas várias manchas circulares, assim desenhadas por causa dos arcos dos dentes, e que, por sua vez, formavam um outro círculo, maior e mais perfeito, urdido com a simetria dos que acreditam no método acima de tudo. Ela aceitou a fúria, ou o castigo, com olhos semicerrados e as sobrancelhas franzidas dos sofredores, erguendo, enquanto isso, o quadril livre das manchas como uma tela em branco, esperando a destreza dos dentes nas nádegas, embora estas nunca, nunca mesmo, por mais forte que fosse a violência recebida, exibissem quaisquer sinais de maus-tratos. “Feitas para apanhar”, dizia ele das nádegas, desejando tomar a parte pelo todo. Hoje ela está atrasada e por um momento ele suspeita que ela não venha, que não venha nunca mais. Depois, entre um gole e outro de alguma bebida, ele se anima e acredita que sim, que ela virá, que, ali, no lugar que erigiram para a profanação, o espaço exíguo de uma cama, ela precisa tanto do sofrimento quanto ele precisa ferir. Não se trata de um sofrimento qualquer, infligido a qualquer um que o suporte, mas nela, que, apesar das fortes nádegas, não é nem jamais foi, e ele o sabe, talhada para a dor. O que ela suporta, pois, é como o heroísmo dos queimados vivos. Ela tampouco permitiria que outro a ferisse, porque ele, com seu método, tem a medida exata ao calcular o peso que depositará nas próprias mãos, grossas e largas, feitas para espancar, quando o chicote descreve no ar uma parábola, e só a ele, que lhe descobriu a vocação servil, cabe o direito à propriedade. Enquanto aguarda, ajeita delicadamente no aparador da entrada o maço de flores que comprou para ela, cantando repetidas vezes os versos you who wish to conquer pain,you must learn what makes me kind... com todas as suas variantes, e imagina-a entrando porta adentro, esbaforida, correndo para beijá-lo, tropeçando nos móveis, cheirando as flores e falando da visceralidade do último filme a que assistiu, do livro que está lendo, do poema que tentou escrever, sempre viscerais como o filme, porque essa é a única coisa que a atrai na arte. Eles conversarão então sobre livros e ele lerá, a pedido dela, mais algum capítulo de um romance interrompido na última vez. Beberão vinho e irão para a cama, onde costumam passar horas seguidas dedicados não apenas ao estetismo de seus corpos mas às trivialidades do cotidiano, às memórias vividas, que não raro despertam lágrimas e um poderoso sentimento de redenção. No começo, ela lhe beijará os pés por entre os dedos, deixando um pequeno rastro de saliva na superfície sinuosa, para depois se deitar sobre o peito dele, brincando com seus pêlos, devagar, como se já ensaiasse o sono que os afastaria. Ele a apertará contra si num gesto quase brusco, como que para despertá-la, cravando as unhas em suas costas até que no rosto dela se possa ver, com o canto do olho, a expressão de mártir. Com rapidez, alcançará uma sacola embaixo da cama, onde guarda o chicote, as cordas, correntes e algemas. Já não percebe a progressão na intensidade dos seus gestos que, de um tempo para cá, têm feito mais altos os gritos dela e mais duradouras as feridas. Com uma longa corrente, ele a amarrará dos pulsos erguidos no alto da cabeça aos tornozelos, criando motivos geométricos cuja intersecção se dá entre os seios, sobre o ventre e no meio das coxas. Apertará os mamilos com pregadores de roupas que ela recusará num primeiro momento, mas que, logo em seguida, ela mesma irá alcançar e estender-lhe com a boca, para seu regozijo. Ainda presa, mas com os seios soltos, terá seu corpo, incapaz de movimento, virado de bruços e espancado até a exaustão dos braços dele. Ele, logo que detiver os olhos em suas costas, admirará todos os ferimentos que causou, pensando que ela, sem dúvida, fica muito mais bonita assim, com o sangue na superfície da pele agora avermelhada corando sua eterna palidez de morta. Mas à dolorosa contração dela ao seu toque de carinho, será tomado pelo desespero dos sonâmbulos que despertam depois do crime. Arrependido, ele se amaldiçoará, ensejando o movimento de recolher todos os instrumentos do sortilégio e levá-los para o lixo, na impossibilidade de arremessar lá, também, as próprias mãos. Ela o deterá, advogando que antes o sofrimento na cama do que fora dela, e ele, por fim, instaurando o momento em que o ideal de cada um, tão oposto mas tão complementar, conflui para um mesmo ponto, cuidará de suas feridas, uma a uma, com zelo de samarita. Se ela vier.

(Leila Guenther, O vôo noturno das galinhas. Ateliê Editorial, 2006)

O vinho de Nick Tosches

A nossa era é, cada vez mais, a era do pseudoconhecimento, o modo pelo qual tentamos tolamente nos diferenciar da maioria medíocre. Sentar-se ao redor de uma garrafa de suco azedo, falando de toques delicados de groselha-preta, fumaça de carvalho, trufas ou de qualquer outro absurdo refinado que a natureza teria usado para enriquecer o seu sabor é ser um cafone de primeira grandeza. Porque, se há algum toque delicado a ser percebido em qualquer vinho, é provável que seja o de pesticida e esterco. Sobre um Château Margaux 1978, um connaisseur pronuncia: “Após uma hora exposto ao ar, este vinho desabrocha, revelando aromas de cassis doce, chocolate, violetas, tabaco e doce baunilha acarvalhada. Em cerca de dez anos, este vinho pode evoluir para a clássica mistura Margaux de cassis, trufas negras, violetas e baunilha”. Como se isso não fosse absurdo o bastante, “um traço de pimentão se esconde no cassis”.
Como um nariz tão sofisticado pode não ter detectado a merda de vaca com a qual essa celebrada propriedade de Bordeaux fertiliza suas videiras? Um verdadeiro conhecedor de vinhos, se tal coisa existisse, detectaria o pesticida e o esterco antes de tudo: ele não seria um goûteur de vin, e sim um goûteur de merde. Mas não existe conhecimento real de vinho sem ser o daqueles que sabem que a verdadeira alma do vinho, l’âme du vin, é o vinagre. Só saboreia realmente maravilhas quem bebe, puros, aqueles raros vinagres envelhecidos, denominados da bere: a coisa pra valer, um néctar bem distante do suco glorificado dessa indústria de adjetivos e falsidade, que já foi a bebida simples e nobre de camponeses simples e nobres – bem mais nobres e conhecedores do que os otários endinheirados de hoje em dia, engambelados a acreditar que a degustação de vinho pede mais palavras do que “bom”, “ruim” ou “cala essa boca e bebe logo”.


(Nick Tosches, A última casa de ópio. Trad. Michele de Aguiar Vartuli. São Paulo, Conrad, 2006)

 

quinta-feira, 30 de abril de 2009

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Um conto para Guimarães Rosa


"Inscrição" in Quartas histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa. Rinaldo de Fernandes (org.) Rio de Janeiro, Garamond, 2006.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Golias

Fiquei observando-o. Encolhido como um gigante que tivesse sucumbido, tal laivo de ternura me comovia. Por um momento pensei com assombro que eu não tinha o direito de flagrá-lo em tamanho desamparo, nessa hora em que estamos despidos de nossa alma exterior, só para usar uma expressão cara a mim. Pois era com afinco que ele mantinha todo o seu arsenal em prontidão contra a minha temeridade, contra a minha força de quem se sabe frágil e derrotada. Era, afinal, como bater em cachorro morto (eu, bem entendido) e duvido que ele não soubesse e mesmo se aproveitasse disso para treinar sua pontaria no exercício da madureza, essa terrível prenda. Quis acordá-lo, envolvê-lo, dizer-lhe que, pelo menos ali, nós podíamos ambos depor as armas, fosse uma bomba ou minha minúscula pedra, naquele momento em que eu precisava desesperadamente de uma trégua, ainda que fosse para declarar-me vencida e expor-lhe minhas veias abertas, as mesmas que amedrontam e afugentam as pessoas que de repente se deparam, no meio da rua, com um mendigo cuja enorme ferida na perna jamais cicatriza, mas limitei-me a ficar do seu lado, apaziguada por ter ao menos isto: um corpo que, por um breve momento, se entregava a ponto de dormir com os dois olhos fechados diante de mim.

(Leila Guenther, O vôo noturno das galinhas, Ateliê Editorial, 2006)

segunda-feira, 27 de abril de 2009

sexta-feira, 24 de abril de 2009

A evolução da espécie (conto inédito)

(Frida Kahlo e seu xolo)


O povo que habitava a norte de Tenotchitlán, no México, durante o período arcaico, comia cachorros. Não de qualquer tipo, mas o xoloitzquintle, hoje em vias de extinção e conhecido apenas como xolo, cachorro sem pelo cuja pele se assemelha à de um elefante doente. Eram cachorros vegetarianos e essa era a razão pela qual consideravam sua carne mais saborosa que a de outros animais. Possuem orelhas grandes e pontudas como a do chihuahua, também oriundo de terras mexicanas, e são tão dóceis e fiéis que, dizem, quem alguma vez teve um xolo de estimação, apesar do aspecto repugnante de sua pele, nunca mais deseja os afagos de outro bicho.
Foi por causa desse seu caráter terno que eles passaram de refeição a animais de companhia e, já no fim do arcaico, a ser enterrados com seus donos, numa prática que consistia em levar para o túmulo o que estivesse, de alguma forma, ligado ao morto, como instrumentos de profissão, alimentos, bichos de estimação e escravos preferidos – vivos –, uma vez que, para os pré-colombianos, a morte era a continuação natural da vida. Uma lenda curiosa assim refere a origem dessa raça de cães: o mais importante dos deuses, Quetzalcoátl, a serpente emplumada, teria ganhado suas penas mágicas do pássaro quetzal em troca da perda de pelos do seu irmão cachorro, o mensageiro Xólotl, que assentiu de bom grado, reconhecendo a supremacia absoluta de Quetzalcoátl. Assim, Xólotl, de condutor de almas da vida para Xebalbá, o reino dos mortos, passou a representar a abnegação e o desprendimento, sendo o único deus do vasto panteão pré-colombiano a quem não se faziam sacrifícios de sangue, mas apenas oferendas de vegetais.
Depois da chegada dos espanhóis, os astecas que restaram, já cristianizados, recorreram a um interessante sincretismo. Continuaram, por exemplo, a festejar a morte, essa outra parte da vida, e, no Natal, não era o menino Jesus que punham na manjedoura no centro do presépio, mas um filhote de cachorro. Sem pelos.

Capitu mandou flores


Sobre o volume organizado por Rinaldo de Fernandes nos cem anos da morte de Machado de Assis, uma crítica favorável de Paulo Paniago, do Correio Braziliense, ao meu conto "A outra causa", inspirado em "A causa secreta":




No centenário da morte do autor de "Dom Casmurro", três antologias aceitam o risco de produzir releituras da obra do escritor

Paulo Paniago

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”, diz Brás Cubas ao final do romance machadiano. O mesmo não se pode dizer de Machado de Assis, que teve filhos, netos e bisnetos literários, até hoje por aí, a provocar estragos e aumentar o legado do gênio, às vezes com homenagens, nem sempre com glórias.
Não tinha como, no centenário da morte de Machado de Assis, a data passar em branco. Comemorações, rapapés, é de se imaginar como Machado receberia toda a pompa e circunstância que se faz a seu respeito, mas parece que ele apreciaria. Por exemplo, três livros fazem exatamente o projeto de recriar os contos de Machado de Assis por escritores contemporâneos. Organizado por Luiz Antonio Aguiar, um deles se chama “Recontando Machado”. Para cada conto (ou dois), um autor procura ou bem atualizar, ou mesmo reinterpretar a partir do mote original. O outro livro chama-se Capitu mandou flores, foi organizado por Rinaldo de Fernandes e tem escritores que reinterpretam dez contos de Machado, além de trazer autores que procuram ficcionalizar trechos e situações do romance Dom Casmurro. Ao saldo, acrescente-se a inclusão de cinco ensaios. O terceiro é “Um homem célebre – Machado recriado”, com contos, desenhos e uma peça, publicado pela Publifolha.
As opções dos organizadores são distintas, os resultados nem tanto. Em “Recontando Machado”, para cada conto de Machado somente um escritor reelabora um conto (em três ocasiões distintas, os contos machadianos, em vez de solitários, somam dois). O texto machadiano é colocado depois do conto, o que pode levar o leitor, em alguma situações, a querer inverter a leitura: começar por Machado, depois ler a interpretação atual. Um dos que se sai melhor na tarefa é Alberto Mussa, que juntou os contos A cartomante e A causa secreta, para fazer um conto inventivo chamado A leitura secreta. Outros ficam apenas na atualização respeitosa, ou seja, na homenagem mais óbvia, ou na variante só levemente criativa, o que não ajuda. No caso de “Capitu mandou flores”, mais de um intérprete é convocado a fazer a tentativa de reconstrução de somente um conto de Machado, que sempre antecede as recriações. Uma delas consegue ser realmente original: Leila Guenther descobre uma maneira engenhosa ao extremo para reler o conto A causa secreta, um dos contos de Machado menos característicos. A releitura é original porque mostra um caminho de fato alternativo: o que aconteceria se a cena vista pelo personagem Fortunato fosse na verdade outra coisa que não aquilo que Machado sugere? A resposta de Guenther é bastante criativa e seria aplaudida, imagina-se, pelo próprio Machado, que forjou narrativa sombria a respeito do prazer humano retirado do sofrimento alheio.
Em outros pontos, como acontece com a reinterpretação de Cecília Prada para o conto Noite de almirante, está clara a eficácia técnica da escritora, mas talvez persista o erro de avaliação acerca de até onde estender a narrativa. O que era sugestão e possibilidade em Machado torna-se francamente explícito em Prada. Embora o conto talvez funcionasse por si, ao ser colocado em perspectiva junto da obra machadiana revela deslizes nas escolhas. Machado narra a história de uma promessa de fidelidade eterna forjada num momento de paixão entre um marinheiro, Deolindo Venta-Grande (apelido de bordo) e a cabocla Genoveva, pouco antes de ele embarcar para uma viagem longa, de dez meses. Quando volta e a procura, ela está com outro. Eles conversam a respeito do que houve. Houve que as coisas mudam. Ele volta para a embarcação e os amigos lhe perguntam se teve a noite de almirante, se Genoveva está bonita etc. “Parece que teve vergonha da realidade e preferiu mentir”, conclui Machado. Na história de Cecília, há também um almirante, mesmo, o almirante que comanda a corveta onde está o marinheiro Deolindo. O almirante também desce da embarcação, vai à casa onde tem esposa, Maria Amália, relembra que a mulher que tanto amava um dia lhe declarou que o filho deles, o caçula, não era filho dele. Bebe, sai, armado de pistola e sabe-se lá que decisão, encontra-se com um Deolindo armado de faca e ressentimento após o encontro revelador, e quando se esbarram um no outro é para provocar mais que desencontro.
Entre tudo e tudo, o leitor ficará com a sensação de que Machado não é para ser recontado e que será bem feito para editores, organizadores e autores se essas obras não tiverem muita repercussão além de uma resenha aqui, uma crítica acolá. Entretanto, é importante assinalar que os ensaios, sim, ao final de “Capitu mandou flores”, continuam a ser o gênero correto com que se deve abordar a obra machadiana.
Alberto Mussa é também um dos que se sai melhor em “Um homem célebre”. O princípio de composição, de se fazer passar por um pesquisador que descobre uns papéis numa biblioteca e com isso prova que a história de “Dom Casmurro” é verdadeira (mas que também apresenta uma perspectiva inovadora) é interessante e bem articulado. Nesse livro, no entanto, o conto ou romance original não está presente e resta ao leitor recorrer, quando julgar o caso, ao original machadiano. Outro que consegue uma abordagem literária eficiente é Cristovão Tezza, que recria um episódio de “Quincas Borba”. Mas alguns se saem bem mal na tarefa, caso do conto Vigília, de Carola Saavedra, baseado em Uns braços. O que em Machado é sugestão e rapidez, em Carola se arrasta e entendia, a pretexto de se tornar, por assim dizer, poético. A missa negra que Lourenço Mutarelli produz a partir de Memórias póstumas é estranha, não exatamente fora dos eixos, mas incômoda.
Isso, para não dizer coisa mais terrível na escala mais ampla. Por exemplo, que continua a faltar escritor nacional que enfrente a dimensão de Machado e o supere na briga literária, chacoalhando de vez o cânone. Se (enquanto) isso não for possível, corre-se o risco de se continuar a repisar o gênio machadiano e ver a literatura mais e mais escorrer pelo ralo da indiferença de leitores. Escritores brasileiros precisam parar de ser aprendizes de bruxo e começar as grandes mágicas.

Como se faz uma música

Cocorosie

Para começar


Um trecho que justifica o nome. A ideia veio do poeta e jornalista Ricardo Lima, numa entrevista que fez comigo.


Estava numa mesa na parte ao ar livre quando ele se aproximou com olhos de fome. Peguei um pedacinho de presunto do sanduíche e o levei até perto de sua boca. Ele o engoliu praticamente sem mastigar. Então parti um pedaço ainda maior, com pão e queijo, e o depositei na palma de minha mão: ele comeu dela, lambendo minha linha da vida. Não fui mãe, mas suponho ter experimentado algo bem próximo, se tivesse oferecido meu leite a uma pequena criatura. Eu alimentei um ser com a minha própria pele e, depois disso, ninguém pode ser mais o mesmo.


(Leila Guenther, "No caminho do cisne", O vôo noturno das galinhas. Ateliê Editorial, 2006)