quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O dom do jasmim

Ela era destruição. Não podia negar que não fosse. Que não carregasse, como uma cicatriz, o sinal dos párias. O toque de Midas ao contrário, de modo a arruinar tudo o que tocasse. E ela não sabia não ser assim. Por várias vezes tentara, mas, antes de olhar para baixo, vinha a vertigem que lhe roubava a corda sobre a qual se equilibrava. E, quando dava por si, já tinha posto tudo a perder. Não era como uma tentação que se acercava: era como se ela fosse o próprio diabo caído. Tinha uma necessidade brutal de chacoalhar tudo, de tornar as coisas vivas a seu modo, pela violência, pela crueldade, pela dor. Para sobreviver a isso, alguns fugiram, mas, quando davam por si, tudo o que desejavam era ter de volta aquilo que os matava, buscando, de forma patética, o que haviam desdenhado com horror. Porque o extremo das coisas sempre fascina. Porque os vivos preferem existir no limite. Ele, ao contrário dos outros, tinha permanecido, mas, para compor a frágil estabilidade que lhe permitisse viver dela sem morrer disso, viajava com frequência sob diversos pretextos. Ela fingia acreditar neles. Quando ele partia, ela punha o perfume que ele tanto odiava porque lhe lembrava o cheiro da morte, dos cemitérios abandonados onde algumas plantas secam e outras vicejam em desordem. Ela punha o perfume para si mesma, sem saber que com isso realçava sua sina. Ela o usava até que ele voltasse. E ele voltava, pois sabia afinal que o espetáculo de um vulcão em erupção não era menos belo só porque assolava uma cidade.


Leila Guenther. Texto publicado em Ciência e Cultura (http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252010000200028&script=sci_arttext).


 

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