quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Poemas da vertigem


(Tomoko Kawao, Vertigo-memai#1)

ausência presença

de muitos jeitos
fui te perdendo
pelos caminhos

tuas palavras
já sem sentido
esvaziando
os labirintos

de muitos modos
perdi o senso
já sem saída
ouvindo estrelas

só deuses
bebem néctar
nós sorvemos
lágrimas


*

mundo flutuante

estou ao lado de quem
não tem ninguém
o lado mais escuro
do céu que flutua
no mesmo lugar
estou ao lado de quem
ficou pra trás
estou ao lado do vento
tentando parar
o trem violento
depois da tempestade
esqueça quem
ficou a teu lado
estou do lado de quem
comigo olha o céu que flutua
no mesmo lugar
ao lado de quem
ainda sonha
quando ninguém mais
quer ficar  atrás


*

o poeta

para o poeta
antissocial, demente,
existe a poesia:
rua onde se estende
sua voz confusa.
para os não poetas
existem edifícios:
vida é construção.
o poeta só tem como meta
destruir-se.
destituir a linguagem dominante
demitir a vida de todos os dias
que pede amor –
amor em faixas douradas
e sorrisos contagiantes.
para o poeta existe a poesia:
não entrará
no círculo dos eleitos
mancha
mal-estar insuportável

e a possibilidade
de rachar todo o edifício.


*

wabi sabi

para celso setogutte
a vida quebra
sonhos em pedaços
mas sonhando no espaço
nada quebra:
mais um elo,
um motivo,
ser mais belo
que a beleza
destruída.

(já havia aviso de asas)


*

arrebate
a beleza da orquídea
e a deixe em paz


*

um cadáver
estendido no açucareiro:
luto no formigueiro


(Marilia Kubota)

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Chomsky de ninar

Estou em "A voz pública da poesia", manifesto organizado pelo escritor Ronald Augusto contra o “torpor que se abateu sobre intelectuais, artistas e escritores como grupos produtores de reflexão, crítica e resistência ao leviatã do retrocesso ao qual o país está submetido” (GGN, o jornal de todos os Brasis). Meu poema surgiu da percepção de que, em meio ao caos, o som da voz de Noam Chomsky me tranquiliza os nervos.


sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Salmo: romance-meditação sobre os quatro flagelos do senhor

"Salmo — romance-meditação sobre os quatro flagelos do senhor, de Gorenstein, escritor, dramaturgo e roteirista de Andrei Tarkóvski, sem dúvida é um dos romances mais complexos da literatura mundial. Como já o havia feito Mikhail Bulgákov em Mestre e Margarida, surge na realidade soviética um enviado do céu: este enviado é Dã, o Anticristo, que aparece entre falantes da língua russa.
Percebido pela população como um judeu de fora, um forasteiro, que fora enviado no período da realização dos grandes flagelos divinos (a fome, a espada, a luxúria e a doença) no país, é uma espécie de Fausto russo. Façanha assombrosa e intrigante, seu principal componente é a voz do Altíssimo, na tradição bíblica, que fala através dos profetas. Em Salmo são tratados temas gerais, em especial a questão judaica, mas não só.
As cinco partes do romance se passam entre os anos 1930 e 1970, período de provas terríveis para os russos e ucranianos, durante o qual o Anticristo é testemunha de momentos decisivos da história soviética. Gorenstein (1932–2002) utiliza passagens bíblicas como base de seu enredo, mas o faz a sua maneira: transporta-as diretamente para o século XX — a fome nos anos 1930, a invasão dos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, a evacuação, o pós-guerra, a censura stalinista dos anos 1950.
Em seu projeto mais ambicioso, o autor certamente delineia uma polêmica com Dostoiévski ao eleger o Anticristo como seu herói: mas este não surge como inimigo de Cristo, mas como também filho de Deus e seu irmão."


Mais informações:

- Friedrich Gorenstein, Salmo — romance-meditação sobre os quatro flagelos do senhor. Trad. Irineu Perpétuo e Moissei Mountian. Editora Kalinka, 2017.


- Lançamento do livro e conversa com a editora Daniela Mountian e os tradutores no dia 28/10, às 11h, na Casa do Saber (Rua Doutor Mário Ferraz, 414, São Paulo).






quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Meridianos

AUTO DO RETRATO

Este corpo não é meu
Visto-o como emprestado
a algum nobre antepassado
que dentro em mim se escondeu

Esta alma não é minha
Habita apenas o eterno
inútil espaço de um terno
que com o corpo caminha

Não é minha a cicatriz
que desenharam nos ombros
Nem esses olhos de escombros
Tampouco o queixo e o nariz

De mim apenas o gesto
o olhar, o passo, a ironia
a fútil genealogia
de tudo que sobra e é resto



PONTOS DE ACUPUNTURA

aqui onde passa o meridiano do coração
outrora foi o Mar da China
5.000 arqueiros de armaduras reluzentes como o sol
lançavam incendiárias flechas atonais de suas flautas
para saudar o equinócio de pérolas da Dinastia T’ang
mas o crisântemo desarmonizou-se com a nota kung
e os lótus se afogaram na décima primeira lua


descíamos a vau para as montanhas tibetanas de Kung Lu
onde o céu e a terra engendram as dez mil coisas
rompendo o Portão do Inferno e o Portão da Nuvem
para a conferência anual das quatro estações
em que os ancestrais se reúnem próximo
à cortina do bambu de seda
e o verão descansa a cabeça no travesseiro de jade
para ouvir a sutra da palavra tranquila


transcorria o Ano da Serpente e era o Hexagrama 58
movimento e repouso em algum lugar do vazio
o Grande Yang e o Pequeno Yin convocaram
para o sacrifício imperial
as artemísias em fogo e os espinhos de metal
para restabelecer o fluxo das águas na energia da vida
e o Rio Amarelo tornou a fluir nas correntezas das veias
como um peixe que nadasse livre entre musgos e líquenes



POEMA QUASE-LÁPIDE

um dia ficarei tão leve
que os pássaros cruzarão o meu coração
e nem o seu canto poderá ferir-me


(Luís Augusto Cassas)


sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Yami no Ichinichi e o Perigo Amarelo


(Mario Jun Okuhara, Yami no Ichinichi: o crime que abalou a colônia japonesa no Brasil)

Para mais informações, ver "'O japonês é como o enxofre… insolúvel': identidade nacional, raça e violência de estado"  (Outra Coluna: Resistência Asiática e Solidariedade Antirracista).

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

domingo, 10 de setembro de 2017

Três anos esta noite

Para Marcelo Donoso

Era um provérbio
Foi um redondilho
E desde então será sempre verdade

Ao algoz da Noite
Agradeço cada dia que nasceu depois da morte

Há três anos ou trinta que estes mesmos dias
São sempre outros
Porque você inventa novos idiomas
Com os quais escrevo nossa história

Que é - sobretudo -
Uma História dos que Voltaram a Cantar

(Jamais nos calaremos novamente)

Nesta hagiografia a música celebra os "males que 
                             [vêm pra bem", o certo das linhas tortas
E as palavras alcançam todos os centímetros do templo maior.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Fotografia

O que nunca ninguém foi em minha família 
e tudo o que foi rejeitado
o operário o alfaiate o professor primário
tenho protegido cá dentro 
com a mesma força que teve meu pai
na noite em que bateu em minha mãe 
grávida de minha irmã mais nova.

(Oliver Welden, poeta chileno, em tradução minha e de Marcelo Donoso)


segunda-feira, 24 de julho de 2017

Homenagem a Claudio Willer


A VERDADEIRA HISTÓRIA DO SÉCULO 20
contemplação: estrela no fundo do mar
você: véu de gaze azulada roçando, suave apelo
furacão: róseo
perfeição: parábola de perfumes
lâmina: a mente alucinada
gruta: você e os arcanos da natureza
matemática do sonho: esta nuvem
gelo: explosão de relâmpagos
essa solidez, essa presença: capim ao vento
rápidos, passando à frente: lavanda
e também sombra de árvore
montanha: inteiramente nossa
intimidade sorridente: no calor da tarde
Íris: o nome da flor, o seio ao sol

– quanta coisa você fez que eu visse

o acaso nos transportava e poderíamos ir a qualquer lugar
o mundo tinha janelas abertas
e tudo era primeira vez

gnose do redemoinho, foi o que soubemos

(Claudio Willer)

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Estilo

Estilo é a resposta de tudo.
Uma maneira nova de enfrentar uma coisa chata ou perigosa.
Fazer uma coisa chata com estilo é melhor do que fazer uma coisa perigosa sem ele.
Fazer uma coisa perigosa com estilo é o que eu chamo de arte.

Touradas podem ser uma arte.
O pugilismo pode ser uma arte.
Amar pode ser uma arte.
Abrir uma lata de sardinha pode ser uma arte.

Não são muitos os que têm estilo.
Não são muitos os que conseguem mantê-lo.
Já vi cães com mais estilo do que homens,
embora não muitos cães tenham estilo.
Gatos têm de sobra.

Quando Hemingway estourou os miolos com uma espingarda, isso foi estilo.
Ou às vezes algumas pessoas oferecem estilo.

Joana D’Arc tinha estilo.
João Batista.
Cristo.
Sócrates.
César.
García Lorca.

Conheci homens com estilo na cadeia.
Conheci mais homens com estilo na cadeia do que fora dela.
Estilo é a diferença, um modo de fazer e de ser feito.
Seis garças paradas numa poça d’água
ou você, saindo do banheiro sem roupa e sem me ver.

(Charles Bukowski, tradução minha)


quinta-feira, 15 de junho de 2017

"Da boca um pássaro me voa"

Carrego as estações 

Carrego as estações comigo
e tenho as mãos cansadas.
(No bolso esquerdo um riacho murmura.)
Ali onde pequenas pedras se acumulam
uma canção exala seu vapor
depois se perde.
Jardins de primavera circulam no meu corpo,
um céu de ouro verte seu perfume
e um vento ignorado agita suas asas.

Pasto de segredos,
mescla de memória e desejo,
meu corpo caminha com a chuva
(carrego as estações comigo)
à procura do sonho de uma nuvem fria.

Tantas folhas trago nos braços
que um pássaro, solidário, se oferece
para carregar as estações comigo.
Do peito aberto os meus jardins se vão
e o pássaro me ajuda (memória
e desejo) a semear meu corpo.

Ali planto meus braços,
debaixo daquelas árvores meus olhos ficam,
os pés roídos pela terra penduro numa árvore
e o tronco multiplico em cem pedaços :
lá vai, junto com as pedras,
no bojo do riacho antigo.

E pois que carrego as estações comigo
os lábios deixo além, no descampado,
e peço ao pássaro que pelos cabelos atire
o que sobrou de mim
àquele mar onde me espera a memória
(e o desejo) do tempo em que não soube
carregar as estações comigo.


DÁDIVA DEVOLVIDA

Birds in the Crescent trees were singing.
Dylan Thomas

O céu de tanto o contemplar
já se desprende de seus laços
e vem, menino, se abrigar
no vão inútil de meus braços.

Ah, um só instante bastara
(de amor?) para que minha história,
velha paisagem, se mudara
em puro canto       só memória.

E minha voz, que não entendo,
a mim me fala e quase nada
do que me fala compreendo
: apenas rio ponte estrada.

Da boca um pássaro me voa,
no gesto uma nuvem passagem
pede e o mundo se despovoa
de mim para outra paisagem.

Onde a memória? Onde o canto?
Onde o bando de aves que um dia
voou em meu céu? E o encanto
que habitou esta alma vazia?

O céu já se vai de meus dedos,
a paisagem torna a seu pouso,
os olhos contemplam segredos
que tentar decifrar não ouso.

Fatigado agora caminho
a mesma estrada rio ponte
: um pássaro canta sozinho
e risca de azul o horizonte.

O céu de tanto o contemplar
eis se recolhe aos velhos laços
e à força de tanto o chamar
se me cerram os olhos baços.

                                  *

Agora que não vejo    vejo
tudo o que o céu me ofereceu :
satisfazer o meu desejo
perder o que ninguém me deu.




LOBO

Calado
abraça a neblina
e cerra os olhos
como quem desmaia.
Púrpura, mágoa
sem remédio,
as patas enredadas
em silêncio e lama :
tudo em volta é solidão
               doçura.

E ninguém sabe
de onde vem
nem como
o uivo alucinado
que lhe sai da boca
e rasga a noite
como um coração
                que arde.



Monk & Mulligan

Toda lição é de casa. Uma ensina a aprender,
outra aprende a ensinar. Não sei para quando
será a viagem. Não sei se parti, se já estou
de regresso, nem se a lição é de fato minha,
dos pombos que giram no telhado ou do silêncio
entre o sussurro de Monk & o sopro de Mulligan
no meio da sala: ‘Round midnight.
                                                        Lá fora (
sol alto) lição interrompida. O sal da lição?
Não saber. Sabida, lição já não é.
                                                      Naquele
tempo eu viajava para longe, toda semana.
Um dia estranharam minha alegria ao partir.
“É tão bom assim?” “Não, é que aprendi
a antegozar o prazer da volta.” Nada se iguala
ao alívio antecipado do dever cumprido. A casa
acumula todas as lições : ontem, hoje – o mesmo
tempo a escoar entre o já-não-mais e o ainda-
não – centro de tudo o que sou ou tenho. Mas não
tenho : a casa o contém. E não há lição que o
detenha.
              O que tenho é um retrato na parede.
Um menino me fita apaziguado, seu olhar
se dissolve na brisa. Escancaro as janelas
e o calor da tarde me lembra : outono se foi,
inverno se foi, primavera aí vem (o rendilhado
de Monk prossegue & o sopro agudo de Mulligan).
Outra primavera : midday, midnight. O menino
salta do retrato, se aninha no sofá e me lembra,
a sorrir : é hora de voltar à lição interrompida.
Sorrio que sim, à sombra do jasmineiro
em flor.
             É tarde. Não sei a lição, há pouco
estava no jardim. Como enfrentar classe
tão avançada? A sombra se adensa, é noitinha.
O olhar do menino me fita, não sei se do retrato
ou do canto do sofá onde se aninha,
                                                          não sei
se do olho iluminado da noite, e sorri. Sorrio
que sim. É a hora. (Monk &Mulligan insistem,
agora sim : ‘Round midnight. Lição de casa.)


(Carlos Felipe Moisés)