quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

O pelo do cachorro

 O cachorro partiu. Sentimos falta dele. Quando tocam a campainha, ninguém late. Quando chegamos tarde em casa, não há ninguém nos esperando. Ainda encontramos seus pelos brancos aqui e ali, espalhados pela casa e em nossas roupas. Nós os recolhemos. Devíamos jogar fora. Mas é a única coisa que sobrou dele. Não jogamos fora. Temos uma esperança doida - se ao menos pudéssemos juntar bastante pelo, poderíamos montar o cachorro novamente.

(Lydia Davis, tradução minha)




domingo, 3 de setembro de 2023

Murasaki Shikibu

Palavras daquela que inventou um gênero literário (o romance), quase mil anos antes do que o cânone apregoava: 

(...) tímida, pouco amiga de olhares estranhos, retraída, amante de velhas histórias, tão aficionada à poesia que quase nada me interessa, e desdenhando toda a gente, na desagradável opinião que de mim os outros fazem. E, no entanto, quando me conhecem consideram-me muito suave e diferente do que lhes fizeram supor. Sei que muitos me consideram uma espécie de proscrita, mas habituei-me a isso e digo para mim mesma:

EU SOU COMO SOU. 

(Murasaki Shikibu. c.978-c.1014)


 


sexta-feira, 14 de julho de 2023

Celeste Ng (II)

 


Não sei quanto tempo levará para eu encontrar um livro tão poderoso quanto o que acabo de ler, Os corações perdidos (Intrínseca, trad. Fernanda Abreu), de Celeste Ng, uma distopia em que os asiáticos estadunidenses são transformados em bode expiatório para o declínio do império americano. O ponto chave é a retirada sumária da guarda das crianças dos pais considerados perigosos ao sistema para serem realocados em lares onde as famílias nunca mais as encontrarão. O capítulo em que as histórias dos filhos são referidas, lembradas pelos pais e reunidas por alguém que crê no poder da memória e da palavra escrita é algo à parte, que se eleva para entrar no panteão dos melhores capítulos da literatura que eu já pude ler. E, segundo a autora, o tema foi emprestado da realidade, principalmente da dos imigrantes. A realidade que desde sempre sequestra os humanos mais indefesos (e continuará a fazê-lo) para colocá-los numa condição de desamparo da qual não há retorno possível.


Celeste Ng (I)

A primeira obra que li neste ano é um dos romances que serão debatidos no Clube de Leitura Mulheres Asiáticas: Tudo o que nunca contei, da escritora sino-americana Celeste Ng, uma das escritoras do que se denomina diáspora. É a história de um casal inter-racial amoroso cuja filha, Lydia, - na qual os pais depositaram todos os seus próprios anseios - morre aos dezesseis anos. Percebi horrorizada que esta é minha história também, a história de quem carrega um peso que, aos olhos dos outros, nem parece existir. Procurar cumprir expectativas com as quais não se identifica, fingir ser o que não é, estar apartada, ser rejeitada (no livro, isso significa não ter amigas, não ser convidada para eventos relacionados à escola, não ser desejada por nenhum garoto, ser motivo de piadinhas pelas suas feições exóticas num mundo de brancos), ter vergonha de si mesma, nunca ser aceita de verdade por nenhum dos lados da família (por não ser nem completamente branca nem completamente amarela), sublimar tudo, ter vontade de sumir, de poder enfim respirar. Ninguém, antes da morte de Lydia, consegue verbalizar e enfrentar a verdade: a dificuldade de integração que faz com que mestiços vivam precariamente se equilibrando sobre um fio. O exílio constante de quem, como um tipo de aberração, não faz nunca parte de nada. A morte da garota se dá em 1977. Mestiça que sou, se eu tivesse vivido minha adolescência nessa época, também não sei se teria sobrevivido. Nasci em 1976 e até hoje não me recuperei das feridas.

 

“Na cama de Lydia, Marilyn abraça os joelhos feito uma menininha, tentando preencher as lacunas entre o que James disse, o que ele pensa e o que quis dizer. ‘Sua mãe tinha razão desde o início. Você deveria ter se casado com alguém que tivesse mais a ver com você’. Havia tanta amargura na voz dele que Marilyn ficou sem reação. As palavras são familiares, e ela as pronuncia em silêncio, tentando situá-las. Então, lembra. No dia de seu casamento, no cartório: sua mãe lhe avisou sobre seus filhos, como eles não se integrariam a lugar algum. ‘Você vai se arrepender’, disse, como se eles fossem ser maltratados, imbecilizados e condenados, e lá fora, na recepção, James devia ter ouvido tudo. Marilyn disse apenas: ‘Minha mãe acha que devo me casar com alguém que tenha mais a ver comigo’, depois jogou o assunto para longe, como poeira no chão. Mas aquelas palavras haviam assombrado o marido. Como deviam ter se enrolado em seu coração, apertando cada vez mais ao longo dos anos, entranhando-se na carne. Ele baixou a cabeça feito um assassino, como se seu sangue fosse veneno, como se se arrependesse de sua filha ter um dia existido.”

 

(Celeste Ng, Tudo o que nunca contei. Trad. Julia Sobral Campos. Intrínseca)

 

 



quinta-feira, 13 de julho de 2023

Precoce/ Precoz

 Precoce

 

À memória de Valentina Doniez

  

Morrem logo os que vivem mais

Porque se esvaem rápido

Para evitar a inundação

 

Em tudo o que fazem

Desviam um trecho de si

Que é impossível rastrear depois

 

Perdem os anéis e os dedos

Que em seguida são enxertados

Em quem não tem nem um nem outro

 

Emprestam-se mesmo

Quando não devolvidos

E então também somem

Alguns livros de seus corpos

 

E vivem. Vivem muito no pouco do Tempo

E morrem de excesso de vida

 

A pele se despregou quando os leões a devoravam

E ela lhes retribuiu uma risada com o que 

                                                       [restou de seus lábios

 

Uma garota de balaclava balança uma bandeira

No meio da praça de um país imaginário

Onde jovens estão dando à luz um outro mundo

 

Todos eles escutam seu chamado

 

Hoje retiramos sua foto de nossas vistas

E me recuso a imaginar

A forma que você tomou

Embora nenhum de nós esqueça ou esquecerá

A inteireza de seu rosto

Trancado no porta-retrato

 

Sei que encontrarei fragmentos dele

Espalhados, compondo outros rostos

De outros jovens

Que também não puderam sustentar

O peso da primavera

 

(Leila Guenther)

 

 


Precoz

 

En memoria de Valentina Doniez

 

Mueren pronto los que viven más

Porque se desvanecen rápido

Para evitar la inundación

 

En todo lo que hacen

Desvían un tramo de si

Que después será imposible rastrear

 

Pierden anillos y dedos

Que luego serán injertados

En quienes no tienen ni uno ni otro

 

Se prestan aun   

Cuando no son devueltos

Y entonces también desaparecen

Algunos libros de sus cuerpos

 

Y viven. Viven mucho en lo poco del Tiempo

Y mueren de exceso de vida

 

La piel se despegó cuando los leones la devoraban

Y ella les devolvió una risa con lo que 

                                [quedó de sus labios

 

Una chica con pasamontañas enarbola una bandera

Al centro de una plaza de un país imaginario

Donde jóvenes dan a la luz otro mundo

 

Todos ellos escuchan tu llamado

 

Hoy sacamos tu retrato de nuestra vista

Y me niego a imaginar

La forma que has adquirido

Aunque ninguno de nosotros olvide ni olvidará

La integridad de tu rostro

Encerrado en el marco de la foto

 

Sé que encontraré algunos de sus fragmentos

Desparramados, componiendo otros rostros

De otros jóvenes

Que tampoco pudieron sostener

El peso de la primavera

 

(Traducción de Marcelo Donoso)





Haicais de Chögyam Trungpa Rinpoché


Voltando do trabalho para casa,
Ele ainda escuta o telefone
Tocando no escritório.
                *
O iniciante em meditação
Se assemelha a um cão de caça
Tendo um pesadelo.
                *
Os pais dele tomando chá
Com sua nova namorada:
Um general inspecionando a tropa.
                *
Esquiando de traje vermelho e azul,
Bebendo cerveja gelada com um sorriso encantador -
Imagino se não serei eu um desses.

* Chögyam Trungpa (1939-1987) foi um mestre de meditação do budismo tibetano (vajrayana). Dono de um pensamento original dentro do budismo, escreveu obras como Louca sabedoria e Além do materialismo espiritual. Viveu na Inglaterra e nos Estados Unidos, onde travou amizade com Allen Ginsberg e William Burroughs. Interessou-se especialmente pela arte japonesa. De temperamento inquieto e controverso, morreu aos 48 anos de consequências do alcoolismo.

Os haicais foram traduzidos por mim.