terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Direto de Portugal I

Foto: Gérard Castello Lopes



OS MELHORES ANOS DA MINHA VIDA

Os melhores anos da minha vida
passaram comigo ausente, passaram
numa corrente subterrânea.
Não me apercebi de nada, distraído
com a queda das folhas,
a densa mistura de pão e desordem.

Estava tudo em aberto, mas eu não sabia
senão de pequenas querelas,
e tímidos passos à toa, sempre à espera
de não ter futuro. Sentado, como um pobre,
sobre o poço de petróleo,
eu media com tesouras as semanas,
misturava-me com livros, ansiava
pelo dia em que deixasse de sangrar.

Os melhores anos da minha vida troquei-os
por isto.


LIBERTAÇÃO

Foi o dia em que um polido agente da autoridade
nos veio buscar a casa para nos interrogar.
Alguém havia assaltado o posto médico
e o medo da vizinhança apontara para nós.
Não sabíamos de nada, mas o nosso luto
(morrera-nos o mundo há pouco tempo)
dizia o contrário. Éramos muito jovens,
tínhamos a boca ferida de insultos. A nossa vida,
coitada, lia muitos livros de aventuras políticas,
sentia-se capaz, dizia, de dar a volta ao mundo
numa barca de cortiça. Não lhe demos confiança.
Após o depoimento ainda passei pela biblioteca
e à noite festejámos a libertação da nossa inocência.
Nunca mais pedimos sal aos vizinhos.


NÃO SEI SE SÃO OS TRINTA ANOS

Não sei o que se passa comigo:
cada vez me assusta mais a solidão.
Aos vinte anos, aos vinte cinco,
figurava o paraíso como um quarto vazio,
onde o silêncio de um livro ressoava
pela noite dentro. Protegia dos amigos
minhas horas, dos irmãos, dos apelos
do telefone. Como um cego de nascença,
estudava a escuridão. Sonhava-me
recluso numa ilha de fragais, rodeado,
de trincheiras, distante de pracetas,
acenos, convites pra jantar.
O lamento era o meu hobby preferido.

Não sei se são os trinta anos, a chuva,
o sabor de mais um dia derrubado
nos transportes colectivos,
a queda maligna das primeiras folhas;
não sei o que é, talvez o teu amor
comece, pouco a pouco, a civilizar-me.
Agora, se chego a casa e tu não estás,
corro a pôr música, abro janelas,
agarro-me ao telefone, como um náufrago,
incapaz de suportar por um segundo
o terror emboscado debaixo da cama,
atrás das estantes, dentro de mim.


ANTI-ÉCLOGA

A verdade é que também as urtigas
me aborrecem. Esta doçura dos pássaros,
a silvestre quietude da tarde atravessada
pelo balido das ovelhas, grandes imitadoras
de Edith Piaf, tudo isso não chega a ser
tão daninho como a luz de um semáforo
vermelho, mas um pouco de sangue
na biqueira do sapato faz-me falta.
Faz-me falta praguejar, ter um lago
de cimento onde cuspir, obstáculos
de fogo, fantasias, a metralha dos calinos.
Não me sinto nada bem com a doçura,
com a paz dos ermitérios, de onde Deus
se retirou há quinze anos. Esta resignação
das árvores, dos faunos, das silvanas,
da restante bicharada típica dos lugares
onde sofrer é natural como estar só,
a conclusão é que não sei caminhar sem sapatos
que me apertem. As sandálias do pescador,
as botas do alpinista, não me levam
a lado nenhum. Detesto confessá-lo,
mas eu sou da cidade até à raiz do terror.
Não consigo viver sem o saco de areia
onde exercito o excessivo golpe da exasperação.
Sem esse esbracejar a minha seiva coagula,
torna-se pastosa, sonolenta, felizita
como um rio de meandros preguiçosos,
lamacentos, imprestáveis - de que me serve
fingir o sossego a que não chego, brincar
às Arcádias em que não acredito?
Está decidido, prefiro sofrer.
Amanhã de manhã regresso ao abismo.







(José Miguel Silva, autor de, entre outros, Vista para um Pátio seguido de Desordem, Lisboa, Relógio D’Água, 2003)

sábado, 26 de dezembro de 2009

Uma canção para o ano novo

All that is left is all that I hide...

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

A história continua

Uma mulher vai de autocarro e de repente, num cruzamento, vê-se a si mesma pela janela, vinte anos mais velha, a rir junto a um homem alto — o homem parece constrangido, como quem se quer afastar, e ela encosta a cabeça no peito dele e parece feliz. A mulher salta do lugar, toca a campainha para sair, mas o motorista não abre porque não é uma paragem, e quando cai o verde, arranca, cruza a avenida, só pára longe. Mal a porta se abre, a mulher sai a correr em sentido contrário à multidão, até avistar o homem alto.
Esta história é parte de um livro que li há dias. Os livros dão-nos um corte da vida e os livros que fazem diferença abrem um corte na nossa vida. Uma noite, antes de escovar os dentes ou mudar o alarme, sentamo-nos na cama a folhear um livro que acabámos de receber. Lemos o primeiro páragrafo, voltamos a página, e algo acontece. Não é a laçada do “best seller”, que nos amarra ao que vai acontecer. É mais como o escuro de um poço ou de um quarto. Queremos e não queremos, metemos a cabeça e voltamos a tirá-la, tentamos habituar os olhos para ver, mas não vemos nada. E então, o que realmente está a acontecer é que se abriu um corte e estamos a ser puxados. Lemos para saber o que aquilo é, com um inquietante pressentimento de que somos parte daquilo, ou aquilo era parte de nós. Trata-se de viver aquilo, e não de saber como acaba.
Vários escritores brasileiros me foram dando a boquiaberta maravilha de ainda por cima aquilo ser a minha língua, e a vez mais recente não seria a última, escrevi aqui há uma semana.
Nessa mesma noite, sentei-me na cama a folhear um livro que acabava de receber, trazido do Brasil pela autora. Li o primeiro páragrafo, que é toda uma página, voltei a página e algo aconteceu. A história terminava logo ali, mas aquilo era só o começo. Continuei a ler sem perceber bem o que lia, com a rara sensação de que isso não tinha importância porque quando chegasse ao fim voltaria ao princípio. O fim era estar dentro daquilo —aquele quarto, aquela casa, aquela box de chuveiro, aquela mesa de restaurante, aquele labirinto, aquele autocarro, e habituar os olhos ao escuro.
Quem respirava ali? Quem falava? Homem, mulher, planta ou animal? Velho ou novo? Morto ou vivo? E o que estava a acontecer? Um enlace ou uma ruptura? Um sonho, uma visão, uma memória? O passado de alguém ou o meu futuro?
Ao longo de cem páginas, julguei avistar Kafka, e vi mesmo Borges, Blake, Poe, Raduan Nassar ou Clarice Lispector. Mas na verdade aquilo não se parecia com nada. Aquilo era “O Vôo Noturno das Galinhas”, da brasileira Leila Guenther. Contos-cortes, brevíssimos como um bater de asas, deixando à vista toda a galáxia que é uma cabeça.
Há livros em que tudo parece acontecer mas nada muda. Há livros em que tudo muda e nada parece acontecer.
Enquanto estivermos vivos a história continua.

(Alexandra Lucas Coelho*, jornal Público, seção "Viagens com Bolso", Lisboa, 18/12/2009)

* Jornalista do Público, autora de Oriente Próximo (Relógio D'Água, Lisboa, 2007), sobre os conflitos entre israelenses e palestinos, e de Caderno Afegão (Tinta-da-china, Lisboa, 2009)