quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

"Numa casa de ausências"


TEOLOGIA NEGATIVA

Nas maçãs do mistério um louco
morde a sombra
do sol.

Sob o peso
da solidão
é o meu número.

Hoje a comarca não me compra.

Uso sapatos
de chumbo para o vento
não me roubar.

Mostro a imensa substância
das noites escuras
de San Juan de La Cruz.

Na fuga
do hospício etéreo
a realidade se salva em porta:
arranha-céu.


NOITES ENSOLARADAS

Do poema, romperam-se as romãs.
No coro dos granizos,
fugiram as sibilas.

Íamos habitar a abóbada celeste, 
mas a nave não atravessou
a noite do Hades.

Nossa odisseia era para ser maior
que o mar de Homero.


SOM E FÚRIA

No limite de um mundo
pobre em significados,
solto astronautas
de manicômios
e a estrelografia
tem a consciência
do aço.

O devaneio
é o único
domínio dos fatos.

Sonhamos tanto,
amamos tanto,
mas no final,
calamos as medidas
numa casa de ausências.




HABITUAL

Todos os dias
somos espostejados
como parte
do espetáculo.

A cada palmo
de terra
uma cova de leões

como se os dentes
das feras fossem
a gramática dos ossos
e o Coliseu o melhor
lugar para morar.


O QUE NOS FALTA

Sonora é a solidão, sonoro
o silêncio, sonora
a carne do gueto
e sonora é a boca
em busca de palavras
que se abram em pálpebras.

No efêmero,
onde o eterno
copula com o vazio
e androides deificam a sensação
em bens de consumo,

cabe ao poeta, condenado
à embriaguez do verbo,
fazer alusões à casa
que nos falta.


OCEANO ENTRE AS MÃOS

Para te amar,
gastei os sapatos
como quem pisa
em redemoinhos
sagrados.

Para te amar,
coloquei em pétalas de papoula
o pássaro que emana
da garganta e guardei
a via láctea do teu nome nos estrondos
de um nirvana.

Para te amar,
fiz da saudade uma amiga
de longa data
— aprendi que a vida
é um sonho e há esperas
que sangram.

Para te amar,
domei os meus leões, domestiquei
o medo e não esperei
que a cerveja gelasse.

(Tito Leite é poeta e monge beneditino, e autor de Digitais do caos e Aurora de cedro)



terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Algumas anotações sobre Partes homólogas, de Leila Guenther


Começo por recordar que homólogo tem significados diversos que dizem com correspondente, correlato, equivalente, análogo e semelhante. O novo livro de Leila Guenther remete às partes homólogas, mas também às heterólogas. Nem por isso, o título do volume de contos deveria mencioná-las, porque se deve guardar alguma surpresa ao leitor (e sei que estrago isso ao revelar). É fato que o título do livro replica o de um dos contos enfeixados, no entanto todo o conjunto, de um ou de outro modo, remete às homologias ou ao seu contraste.
Nas situações apresentadas pelos contos, fica-se diante de tudo e do nada, dos encontros e das perdas, das semelhanças e das diferenças, da atração e do repúdio, da viagem e do retorno, do fato e da ficção.
Os contos, todos os contos e não só os do livro da Leila, pedem certa porção de verossimilhança e outra de mentira (grossa ou fina). Tem-se bem isso, no conto “Partes homólogas”, em que se partiria da história de vida dos tailandeses Chang e Eng Bunker, xifópagos, para nomeá-los Wang e Chu aqui. Da correção dos fatos conhecidos, faz-se história nova, para reunir o que um dia não se separou. O absurdo vai do psicológico ao físico e vice-versa, sim, porque, na vida, também há deformidades construídas.
As fragilidades físicas e do espírito, que poderiam aproximar as pessoas que as têm semelhantes, distanciam nas guerras pessoais e na vida, até a morte aproximadora e a lembrança gravada fundo, na sobrevivente, como em “Para um menino na guerra”. Guerra pessoal, essa.
Nem tudo tem fim determinado, no mundo dos contos: a estrutura aberta deixa espaço para presunções e essa pluralidade indica coisas múltiplas que podem ter ocorrido. “Romã” é amor, no anagrama. O amor pediria correspondência e não ascendência. As palavras da autora dão direito a que o leitor busque tudo o que possa encontrar. Nesse conto, feito de mentiras e sinceridades, ascendência e subserviência, presença e alheamento, adolescência e maturidade, verdade e invenção, pés no chão e embriaguez, tem-se abuso crescente e estupro tal que – lá vou eu, leitor palpiteiro, – poderia ser equiparado a incesto, dado o peso da confiança entre professor e aluna que marcou o início de uma relação. Para mim, juntamente com “A outra causa”, o conto “Romã” representa chave para a apreensão maior do livro.
As analogias presentes nesse livro de Leila ganham expressão de peso em contos como “De fogo e de água” e “A evolução da espécie”: “o México era uma mulher que chorava em silêncio [diante de um espelho, acrescento] num banheiro público”, no primeiro, e o xolo colocado na manjedoura, no segundo. Fato em um, ficção em outro.
“A vida às vezes é absurda”, como bem o mostra “Quando Alice encontrou K”, diante do espelho da verdade. Existiria conto sem absurdo?
“A outra causa” é o título de um conto extremamente irônico, escrito sob a forma de carta de uma missivista masoquista (discípula, romântica, melancólica e no fim da vida), dirigida a Garcia, um amigo, sobre Fortunato, o extremamente sádico marido dela, que a complementa.
Não menciono os demais contos de Leila, aliás recheados de verdades aforísticas aqui e ali (“O destino é um conjunto arbitrário de coincidências”), mas devo ainda ressaltar que todos parecem afluir para a mesma temática do drama das relações humanas, especialmente em matéria do amor entre pessoas - fora, sobre e dentro.
O livro Partes homólogas vale cada uma de suas palavras.

(Valdir Rocha)



quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Vem que tem

Tem epígrafe de Darwin. Tem dentro, fora e sobre. Tem circo de aberrações, labirinto, prostitutas, século XIX, cachorros, Machado de Assis, decadentismo, Borges, veludo azul, solidão, Oriente, irmãos siameses, peixes, México, gato, Ofélia de Shakespeare. Tem o fato de eu ser míope e mulher. Tem o horror do abuso. Mas tem este lugar concebido pela Viviane Ka, o Eugênia Café Bar, de protagonismo feminino, que pode nos acolher. Tem a percepção de Walter Carlos Costa, estudioso da teoria do conto que redigiu a orelha, o primeiro a entender o que eu queria dizer. Tem o espanto de existir. Tem essa ilustração da Tieko Irii, que, em vermelho-sangue, nos expele para fora do mundo, onde não encontramos lugar. Tem um projeto gráfico lindo, que eu penso não merecer. Tem meu mutismo, minha reclusão e incapacidade de significar por outros meios que não a palavra escrita. Porque eu não existo além da Palavra. Tem um editor que é também escritor, Marcelo Nocelli, e que acreditou neste gênero tão desprestigiado da literatura. Tem, sobretudo, o amor pelas letras, que me moldou. Tem várias partes de mim, homólogas às de vocês, pedaços desmembrados de cada um de nós. E tem a impossibilidade de urrar, que me levou a escrever.


das 19h às 21h30

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Na revista Gueto

Estou na primeira edição impressa da revista Gueto, com o poema "Corpo fechado".


sexta-feira, 25 de outubro de 2019

O zen nosso de cada dia




HAPPENS TO THE HEART

I was always working steady But I never called it art I got my shit together Meeting Christ and reading Marx It failed my little fire But it’s bright the dying spark Go tell the young messiah What happens to the heart There’s a mist of summer kisses Where I tried to double-park The rivalry was vicious The women were in charge It was nothing, it was business But it left an ugly mark I’ve come here to revisit What happens to the heart I was selling holy trinkets I was dressing kind of sharp Had a pussy in the kitchen And a panther in the yard In the prison of the gifted I was friendly with the guards So I never had to witness What happens to the heart I should have seen it coming After all I knew the chart Just to look at her was trouble It was trouble from the start Sure we played a stunning couple But I never liked the part It ain't pretty, it ain't subtle What happens to the heart Now the angel’s got a fiddle The devil’s got a harp Every soul is like a minnow Every mind is like a shark I’ve broken every window But the house, the house is dark I care but very little What happens to the heart Then I studied with this beggar He was filthy, he was scarred By the claws of many women He had failed to disregard No fable here no lesson No singing meadowlark Just a filthy beggar guessing What happens to the heart I was always working steady But I never called it art It was just some old convention Like the horse before the cart I had no trouble betting On the flood, against the ark You see, I knew about the ending What happens to the heart I was handy with a rifle My father’s .303 I fought for something final Not the right to disagree


(Leonard Cohen)

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Um trecho de William Carlos Williams


Meu coração desperta
              pensando em trazer notícias
                                   de algo
que diz respeito a você
             e diz respeito a muitos homens. Considere
                                   aquilo que se passa por novo.
Você o encontrará apenas nos
            poemas desprezados.
                                  Não é fácil
receber as notícias que vêm dos poemas
           embora os homens morram miseravelmente todos os dias
                                por falta
do que se encontra lá.

(tradução minha)



segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Adão e Eva no Japão

Algumas palavras sobre O segredo das águas (Futatsume no mado, literalmente “A segunda janela”), de Naomi Kawase, que acaba de lançar Vision 

Na ilha japonesa de Amami*, onde prevalecem as tradições xintoístas, de significativa relação com as forças da natureza, vivem Kyoko e Kaito, dois jovens adolescentes prestes a entrar na vida adulta.
Como no mito bíblico, é a garota, Kyoko, que incita o rapaz ao conhecimento, à descoberta do amor, ainda que o primeiro sinal da “queda do paraíso” seja percebido pelo rapaz: a visão, na praia, do cadáver de um homem tatuado. O que o transtorna e o inquieta – a vida e a morte – é mais bem aceito pela menina, que sabe serem essas forças impossíveis de controlar. Ela mesma, filha do que consideram uma espécie de deidade, tem de aprender a lidar com a iminente morte da mãe (porque no xinto, tudo tem seu tempo sobre a terra e nem os deuses duram para sempre).
O mar é como um dos protagonistas da trama: é o nascimento, a morte, o desejo, a aversão. Não à toa, Kaito tem medo dele, porque ele é algo vivo que pode levá-lo ao ponto mais desconhecido de si mesmo. E isso é relembrado no mais belo diálogo do filme, em que Kyoko, contestando a repulsa do rapaz às águas, lhe diz algo como: “Mas eu também sou uma coisa viva”.



* o nome parece remeter a uma deusa xintoísta

The goal



I can't leave my house
Or answer the phone
I'm going down again
But I'm not alone

Settling at last
Accounts of the soul
This for the trash
That paid in full

As for the fall, it
Began long ago
Can't stop the rain
Can't stop the snow

I sit in my chair
I look at the street
The neighbor returns
My smile of defeat

I move with the leaves
I shine with the chrome
I'm almost alive
I'm almost at home

No one to follow
And nothing to teach
Except that the goal
Falls short of the reach


(Leonard Cohen, póstumo)

domingo, 4 de agosto de 2019

Contra o adeus

Em memória de Omar Olivera, Omarcha

Ontem chovia, fui ao parque; não sei quanto tempo perambulei entre trilhas e moitas, observando como emergia do cimento o vapor do verão. É espantoso como em plena tempestade há raios de sol que chegam a iluminar as folhas mais escondidas, a terra úmida, as pegadas das pessoas que, com pressa, procuram abrigo em suas casas. Talvez não tenha sido mais do que uma hora, porém entre tanta sombra alucinada é possível que tenha transcorrido um século. Inconsciente, ou talvez audaciosa demais, fui me sentar debaixo de um pinheiro. Tinha certeza de que nenhum raio ousaria me matar no mesmo dia em que outro temporal havia levado você.
Hoje não tenho cabeça para procurar seu fantasma na chuva, nessa camuflagem das almas que desejam permanecer e desobedecem às parcas na forma de garoa, orvalho ou torrente. Apesar de sua ausência, continuo engasgada pela vida. Tomo meu pulso e sinto como os jatos de sangue palpitam pelas minhas veias; nada os detém, nada me detém.
Os filmes têm nos acostumado a finais concretos, a histórias que têm um sentido, a ocasiões precisas. Quando deixamos de ser crianças e nosso país afundou na violência, você sabia ao certo dos perigos que corria, espreitavam-no diversos grupos. Carros-bomba, tiros na nuca, prisões e desaparecimentos haviam levado alguns amigos e muitos conhecidos. Você até me comentou sobre a possibilidade de carregar sempre um comprimido de cianureto que pudesse apagar sua vida antes de ser submetido ao horror de uma tortura. Havia uma paixão impetuosa pela vida e ao mesmo tempo sangue-frio diante da morte. Nunca usava guarda-chuva, ficava ensopado, dizia que as tempestades o faziam se sentir integrado ao universo, o suor misturado com a bruma, a sua saliva com o vento. E você ria de si mesmo porque também carregava aspirinas para combater a gripe antes que ela o atacasse. E acendia um cigarro, e tragava com gosto, e continuava falando, em alguns momentos divagava e voltava a aspirar cada resto de fumaça como se fosse o último, depois baforava para longe, com força, como se mandasse um beijo (à nicotina, à gripe afugentada, à chuva?), e continuava a conversa. E acendia outro cigarro, e mais um. Quantas coisas você me contou, quantas ficaram encravadas em seu cérebro, quantos momentos intensos viveu só. Onde ficam essas palavras, esses instantes íntimos?
No vidro da janela da cozinha ficou gravada a marca de sua mão. No meio de uma cantoria, esquecemos a panela em que preparávamos um chá e o vapor invadiu tudo. Você se aproximou da janela para verificar se as linhas da palma de sua mão podiam ser lidas nessa mistura de água consternada, escuridão lá fora, luz elétrica dentro. Apenas sua mão ficou plasmada. Se a experiência tivesse dado certo, teria sido possível decifrar que depois de um ano você estaria morto? Acabo de perceber que faz muito tempo que não limpo as janelas. Cada vez que esqueço a chaleira no fogo e o vapor invade a cozinha, tantas ocasiões em que poderia haver ocorrido um incêndio!, a marca da sua mão emerge. Hoje gostaria de tocá-la, trazer você de volta. Mas tenho medo: temo que não aconteça, que minhas invocações não sejam válidas; temo igualmente deformar qualquer ínfimo rastro material que você deixou em minha casa.
Para quem escrevo? Se você não acreditava em qualquer além, como posso sentir sua presença em cada palavra que imprimo? A nostalgia é tão grande. Ou é tão lenta a morte e você nunca termina de ir embora. Ou é que sua morte levou uma parte de mim e é ela que me transmite seu reflexo, ela que me sussurra “estamos vivos”. Acaricio as teclas e parece que toco as pontas de seus dedos. A nostalgia é infinita.
Para esta tristeza abundam melodias amargas. No meu aparelho de som tocam as músicas que dançávamos quando éramos adolescentes. São alegres, são tão presentes que meus pés balançam e começo a cantar. O ritmo da vida se impõe. Seu coração foi livre, firme na sua postura de que para amar não é necessário renunciar a nada. Talvez por isso hoje não reprimo a dança.
Neste verão louco em que a chuva prevalece sobre o sol e as flores não caem murchas nem os lagos secam, formigas proliferam no depósito, um sem-fim de pássaros cantando pelas manhãs, rostos velhos e novos, ricos e pobres, brilhantes, andando pelas ruas quando sol se apodera do dia. Parece absurdo que em um tempo desses, carregado de tanta vida, você tenha ido embora impregnando tudo de morte. Se você tivesse acreditado em uma vida além desta, talvez ficaria mais fácil imaginar que somos de novo crianças e brincamos de esconde-esconde em uma floresta, que você sabe se camuflar bem; mas sempre consigo encontrá-lo, ouvir de novo sua gargalhada, tocar sua mão de carne e osso, cantar rancheras e blues, caminhar com nossos amigos debaixo do sol, tomar juntos litros de café enquanto chove, consertando o mundo com simples palavras, olhar-nos nos olhos para nos perguntar, para nos responder e para continuar perguntando.
Nunca, porém, nos perguntamos ou respondemos sobre onde nos encontrarmos no fim do caminho. Hoje tento encontrá-lo nas minhas próprias palavras, entender sua partida com minhas próprias ideias, lembrar de você com meus próprios símbolos. E assim o encontro em todo lugar e em todo lugar sinto sua falta.
No rádio escuto uma melodia, é uma sonata chilena transformada em canto. Parece dedicada aos seres amados que hoje são apenas pó: “Procuremos as velhas cinzas do coração queimado, mesmo que caiam um a um nossos versos, até que a flor desabitada ressuscite”. Consegue ouvi-la? Conseguirá ouvi-la quando seu próprio corpo tiver virado pó? Conseguirá pronunciá-la através do tempo, através dos devaneios? Estou tão viva que só me resta esperar pela tempestade, ou pela noite, para ver sua mão desenhada entre suas luzes e sombras. Os ponteiros do relógio me lembram que tenho de sair. Com um impulso que ultrapassa a lógica das minhas pernas vou me levantar para ir a um concerto. Não vou ficar para continuar escrevendo; nem vou parar para continuar investigando a natureza da ausência.
Anoitece, os pássaros estão cantando como se fosse amanhecer. Estamos vivos.


Karina Pacheco Medrano é escritora, editora e antropóloga peruana. Escreveu Las orillas del aire, Lluvia, No olvides nuestros nombres, La voluntad del molle, El bosque de tu nombreCabeza y orquídeas, entre outros. O presente conto, traduzido por Marcelo Donoso e por mim, integra o livro Alma alga (Peru, Borrador Editores, 2010). Como antropóloga, dedica-se a temas como desigualdade, racismo e discriminação.




segunda-feira, 27 de maio de 2019

O corpo como universo



Ontem fomos assistir a Cão sem plumas, espetáculo de Deborah Colker inspirado em João Cabral de Melo Neto. Passaram muitas coisas desconectadas por minha cabeça, numa espécie de fluxo aleatório, enquanto me entregava à hipnose do movimento: minhas aulas de um yoga intenso e transformador e de uma dança na qual a "sororidade" e o "jogo de cintura" são tão importantes, as palavras de um texto clássico do tantrismo ("Na verdade, cada corpo é um universo completo") e de Dôgen, monge introdutor do zen-budismo no Japão, via meu professor de mindfulness, Marcelo Demarzo ("O universo inteiro é o corpo real do ser humano"), meu contato com a sinuosidade do boxe tailandês, a quase palpável energia vital "chi" que perpassa tudo, a alegria de respirar, a meditação que a cada dia me põe mais presente no presente, mas sobretudo a consciência de que o corpo é um instrumento de expressão poderosíssimo e, portanto, extremamente subversivo. Deve ser por isso que ele assusta e amedronta tanto. Durante muito tempo dividi mente e corpo como se fossem entidades distintas, sem entender que são uma coisa só: a mente é parte do corpo. Isso só mudou por meio de práticas contemplativas que, a despeito do conteúdo mental, são bastante físicas.

Hoje posso dizer: habito um corpo, logo existo.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Vozes de Marielle na Alemanha


Hoje, 16 de maio de 2019, às 20h (horário da Alemanha), acontece na VHS, em Stuttgart, uma leitura dos poemas do livro de que participo, lançado pela Quintal Edições, em parceria com o coletivo Mulherio da Letras: Um girassol nos teus cabelos: poemas para Marielle Franco.
Antes da leitura, uma das editoras, Ludmila Fonseca, falará sobre a vida e a morte de Marielle e o processo de publicação do livro.
A apresentação do livro será em alemão e a leitura dos poemas, em português.

VHS Stuttgart: Rotebühlplatz 28 70173







quinta-feira, 9 de maio de 2019

A sunflower in her hair: poems and testimonies for Marielle Franco

A antologia para Marielle Franco, de que participo com imenso orgulho, é tema de um evento que ocorrerá este mês no Reino Unido. Mônica Benício, viúva de Marielle, e o deputado Marcelo Freixo estarão presentes. Mais informações aqui.



terça-feira, 23 de abril de 2019

Pelas veredas de Kenichi Kaneko









A exposição Veredas, do artista plástico, ator e escritor Kenichi Kaneko, reúne 59 anos de criação. Fica até 30 de maio, no Centro Cultural Correios de São Paulo (Avenida São João, s/nº, Vale do Anhangabaú). A entrada é gratuita, de segunda a sexta, das 10h às 17h. No dia 25 de abril, a partir das 14h, haverá um sarau em sua homenagem, organizado pelo escritor Carlos Bueno, em que participam:






quarta-feira, 20 de março de 2019

Uma certa planície


É provável que eu nunca mais vá ler com o mesmo afinco, na mesma quantidade, que lia quando tinha nove, dez anos. Essa época de descoberta da leitura, do assombro da palavra escrita, nunca mais vai voltar. Refleti sobre isso num conto-crônica, “O outro mundo de Clarissa”, uma referência ao romance de Érico Veríssimo que de forma meio atrapalhada me fez ter consciência de que um mundo inteiro poderia ser criado a partir de palavras, apenas. Atrapalhada porque cheguei a pensar que se tratasse de algo sobrenatural, de uma espécie de clarividência meio voyeur que adquiríamos ao ler. Clarissa devia existir em algum lugar do Rio Grande do Sul simplesmente porque eu podia vê-la e à sua vida, naquela casa, com a clareza e a nitidez de quem tem uma bola de cristal.
Eu me lembro de ter encontrado numa tarde, na estante de meus avós, A hora dos ruminantes, de José J. Veiga. Até hoje não entendo como foi parar lá, numa casa cujo dono lia (muito) em japonês e cuja dona era praticamente analfabeta (gostaria de encontrar entre os escombros o caderno de receitas de minha avó, que anotava maravilhas numa língua que ela própria criou, com uma espécie de hiper-correção, já que os japoneses não falam o L: ela anotava "tlês xícalas de falinha de tligo", assim mesmo). Num dos intermináveis almoços de domingo, eu li o tal romance de J. Veiga inteiro, o mais rápido que pude, com uma espécie de medo de que ele pudesse desaparecer, não estar mais ali na próxima visita, ou, se eu o pegasse emprestado, de que ele pudesse se autodestruir (é verdade que sou maluca e que foi nessa época que apareceram os primeiros sintomas da depressão). Até hoje não conheço título mais lindo: A hora dos ruminantes. Talvez tenha sido o primeiro passo para perceber o poder do som. Nessa época me dei conta do encantamento que o som das palavras produzia em mim. O fato de haver poemas infantis da Cecília Meireles no livro didático ajudou: eu os lia na classe, em voz alta, a pedido da professora, surpresa com assonâncias e aliterações, mas ainda dividia infantilmente (esse infantilmente pode ser entendido em vários sentidos) som e significado. No entanto, essa divisão ainda estava restrita aos títulos das obras. Essa relação só mudou quando, no livro de interpretação, me deparei com o início de um texto chamado “Mudança” (era o primeiro capítulo de Vidas Secas, vim a saber por minha mãe, e o vi também mencionado em livros como os de Ganymedes José, que li aos montes): “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes”. O texto que se seguiu mudou minha vida para sempre, mesmo que eu desconhecesse o significado de juazeiro, aió, pederneira, excomungado, viventes (e de tantas outras palavras, mais para a frente, como atenazar, que ninguém além de Graciliano usa), porque foi a partir daí que o som se uniu ao significado, tendo eu que procurar todas as palavras que não conhecia no velho dicionário que havia em casa, cujas folhas iam caindo como se fosse uma árvore.
Segui por vários caminhos, tantas leituras, lendo palavras, sons, imagens discrepantes, olhares, plantas, bichos, mas “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes” continua comigo como um mantra, uma oração. Eu queria, por isso, dizer (tentando recuperar minha infância por meio dos versos de Manuel Bandeira, em “Porquinho-da-Índia") que Graciliano Ramos foi meu primeiro namorado (naquela época de menina em que para namorar bastava desejar, mesmo que o objeto do sentimento não soubesse), mas tudo o que me ocorre agora é parafrasear o próprio Graciliano: "Foi esse o primeiro contato que tive com o amor."

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Sobre poesia, ainda


Sobre poesia, ainda é um título deliberadamente amplo, cujas palavras permanecem pulsando a cada página. A vírgula – e Tarso de Melo, poeta meticuloso, sabe bem disso – demarca um pequeno intervalo entre o substantivo e o advérbio, admitindo ao menos duas possibilidades quanto à noção de tempo aqui presente: se, por um lado, se poderia considerar anacrônica a intenção de ainda se dizer algo sobre poesia neste momento, por outro, a mesma palavra parece assinalar a urgência de uma publicação como esta, que ressalta o quanto ainda há para ser dito (ou repetido em novas formas, novos contextos).
Essa oscilação consciente do título, de certo modo, atravessou até mesmo o processo de produção do livro, entre a enquete despretensiosa e o mapeamento do contemporâneo. A princípio, em 2015, Tarso provocou alguns de seus pares com cinco perguntas enviadas por e-mail, divulgando as respostas recebidas no blog Contra tanto silêncio. O murmúrio dessas primeiras vozes foi ganhando eco e, desde então, Tarso decidiu organizá-las neste volume, incluindo agora outras vinte e duas para compor uma pequena amostra do que pensam aquelas e aqueles que escrevem poesia hoje no Brasil.
Como destacam Diana Junkes e Fabio Weintraub no posfácio, ainda que haja evidentes confluências em alguns momentos, o leitor poderá notar também pontos de divergência nesse mosaico. Isso se dá não apenas pela variedade de formações desses poetas, mas pela própria dificuldade de definição do que é a poesia  – signo que, afinal, nos reúne – e de como ela se manifesta. Dando a palavra a essas diferentes vozes, desarmadas de seus objetos criativos (os poemas), Tarso de Melo propõe um gesto democrático, o que inclui também a discordância como elemento constitutivo de um ambiente verdadeiramente plural.
Entre o anacronismo (o excedente do que não se realizou) e a urgência (o impulso do que quer se realizar), esses poetas reunidos em Sobre poesia, ainda elaboram muitas outras respostas possíveis às indagações do presente, sintetizadas nas perguntas de Tarso. Mas, no fundo, diante de tanto horror, a própria reunião dessas vozes (des)encontradas é um sinal positivo que parece dizer: somos diversos e ainda estamos vivos.

(Renan Nuernberger, em Sobre poesia, ainda: cinco perguntas, cinquenta poetas. org. Tarso de Melo. Lumme Editor, 2018)



Participam:
Adelaide Ivánova, Adriano Scandolara, Alberto Pucheu, Ana Estaregui, Ana Rüsche, André Luiz Pinto, Andréa Catrópa, Annita Costa Malufe, Antonio Moura, Bruna Beber, Bruna Mitrano, Carla Diacov, Carlos Augusto Lima, Carlos Ávila, Carlos Felipe Moisés, Casé Lontra Marques, Dalila Teles Veras, Danielle Magalhães, Danilo Bueno, Dirceu Villa, Edimilson De Almeida Pereira, Eduardo Sterzi, Fernando Fiorese, Guilherme Gontijo Flores, Heitor Ferraz Mello, Helio Neri, Júlia De Carvalho Hansen, Júlia Studart, Leila Guenther, Leonardo Gandolfi, Lilian Aquino, Lubi Prates, Lucas Bronzatto, Manoel Ricardo de Lima, Marcos Siscar, Micheliny Verunschk, Nina Rizzi, Pádua Fernandes, Paulo Ferraz, Prisca Agustoni, Reynaldo Damazio, Ricardo Aleixo, Ronald Polito, Ruy Proença, Sérgio Alcides, Sergio Cohn, Simone Brantes, Thiago E, Thiago Ponce de Moraes e Yasmin Nigri.