terça-feira, 7 de julho de 2009

Da salvação pelas obras




Em um outono, em um dos outonos do tempo, as divindades do Xintó congregaram-se, não pela primeira vez, em Izumo. Diz-se que eram oito milhões, mas sou um homem muito tímido e me sentiria um pouco perdido entre tanta gente. Além disso, não convém lidar com cifras inconcebíveis. Digamos que eram oito, já que o oito é, nessas ilhas, de bom agouro.
Estavam tristes, mas não o demonstravam, porque os rostos das divindades são kanjis que não se deixam decifrar. No verde cume de um monte sentaram-se em roda. De seu firmamento, ou de uma pedra ou um floco de neve, vinham vigiando os homens. Uma das divindades disse:
“Há muitos dias, ou muitos séculos, reunimo-nos aqui para criar o Japão e o mundo. As águas, os peixes, as sete cores do arco, as gerações das plantas e dos animais, tudo isso saiu a contento. Para que tantas coisas não os enfastiassem, demos aos homens a sucessão, o dia plural e a noite una. Outorgamos-lhes também o dom de ensaiar algumas variações. A abelha continua repetindo colmeias; o homem imaginou instrumentos: o arado, a chave, o caleidoscópio. Também imaginou uma arma invisível que pode ser o fim da história. Antes que esse fato insensato aconteça, eliminemos os homens”.
Ficaram pensando. Outra divindade disse sem pressa:
“É verdade. Eles imaginaram essa coisa atroz, mas também esta, que cabe no espaço que suas dezessete sílabas abarcam”.
Entoou-as. Estavam em um idioma desconhecido e não pude entendê-las.
A divindade maior sentenciou:
“Que os homens perdurem”.
Assim, por obra de um haiku, a espécie humana se salvou.



(Jorge Luis Borges, Atlas. Trad. Sérgio Molina. Globo, 1999)

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Você, de quem nunca estou distante

Não consigo lembrar de como era antes de conhecer você. Será que sempre fui como sou hoje? Lembro-me de estar perdido. Tenho certeza disso. Vagando. Indo de uma mulher para outra. Ficando, às vezes, apenas o tempo suficiente para compreender que a perplexidade delas era maior que a minha. Pelo menos, era o que parecia. Mas não me lembro de me sentir tão nervoso antes, tão desgastado. Eu as observava de uma certa distância, tomando banho de esponja em suas pias, raspando bolas negras com lâminas de barbear, movendo-se como rainhas em câmara lenta. Então, elas se transformavam nas garotas de antigamente, com risadinhas nervosas e dobrando as pernas longas sob o corpo. O modo como andavam com passos macios com os saltos altos e depois sacudiam o cabelo como os cavalos agitam a cauda.
Mas de você não guardo nenhuma distância. A cada movimento seu, sinto como se viajasse em sua pele. Cada olhar seu para fora da janela é como se estivesse completamente sozinha e sonhando com outros tempos. Não adianta balançar meus braços, acenando. Agora, tudo está ao contrário.



(Sam Shepard. Cruzando o paraíso. Trad. Aulyde Soares Rodrigues. São Paulo, Mandarim, 1996)