domingo, 22 de setembro de 2013

História da África Contemporânea


Lançamento do livro de Mauricio Parada, Murilo Sebe Bon Meihy e Pablo de Oliveira de Mattos.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Criando uma revista: Anuário de Literatura


Entrevista concedida por Walter Carlos Costa*
Universidade Federal de Santa Catarina
* Estudou Filologia Românica na Katholieke Universiteit Leuven, Bélgica. Tem Doutorado sobre as traduções de Borges para o inglês pela University of Birmingham, Reino Unido, e Pós-doutorado pela UFMG. É professor do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras da Universidade Federal de Santa Catarina.
Anuário: Como surgiu a ideia de lançar um periódico junto à Pós-Graduação em Literatura e qual era o público-alvo?
Walter: Sempre gostei muito de revista, algo que pode ajudar a congregar, organizar e fortalecer os partidários de uma ideia ou atividade e pode ter vastas consequências teóricas e práticas. Lembro sempre de Antonio Gramsci (que li na tradução de Carlos Nelson Coutinho, uma das primeiras do mundo, e depois em italiano) que dizia que uma revista é como um partido político, ou seja, um órgão que pode ter um impacto direto na vida cultural. Não por acaso, as revistas constituem um elemento central na história dos movimentos estéticos, como se pode constatar, entre outros, na história do modernismo, futurismo e surrealismo. Eu sempre gostei muito de editar, ou seja, de publicar os outros. Acredito que existe uma paixão, ou pulsão, de editar, como existe uma paixão de escrever e uma paixão de traduzir. A paixão de traduzir conjuga as duas, porque o tradutor escreve através de outro escritor, ou, como disse belamente o tradutor holandês August Willemsen em uma palestra na UFSC, ele é “autor da obra alheia” (ver http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/article/view/4727/3979). Essas paixões obedecem a aspectos diferentes de personalidade, embora possam ocorrer na mesma pessoa. A paixão pela edição me acompanha desde o ensino fundamental, que eu tive a sorte de fazer no interior do Estado de S. Paulo, onde a escola pública era excelente. No meu caso, o “grupo escolar”, que é como se chamava a escola na época, encorajava os alunos a publicarem jornais murais e eu cheguei mesmo a editar um jornalzinho impresso. Quando entrei na UFSC, em 1982, eu vinha de décadas de leitura de revistas culturais nacionais e estrangeiras e a participação ocasional em diferentes publicações. Aqui, fui apresentado a Cleber Teixeira, editor da Noa Noa, que ele fundara no Rio e que trouxera para Florianópolis para onde se mudou com a esposa, que trabalhava na Eletrosul. Com Cleber, um dos grandes editores alternativos do país e que publicou, em edições de pequenas tiragens e extremo cuidado, as primeiras traduções revolucionárias de Augusto de Campos, entre outros, de Stéphane Mallarmé e John Donne, me aprofundei no conhecimento do mundo da edição. De 1982 a 1988, ano em que parti para Birmingham, Inglaterra, para fazer meu doutorado, montei, com colegas do CED (onde eu tinha 20 horas) um Núcleo de Publicações, que publicava a revista Perspectiva (que continua ativa), os Cadernos do CED e o Boletim do CED. No LLE (onde eu tinha 20 horas também) a colega Carmen Rosa Caldas-Coulthard me convidou para renovar com ela a revista Ilha do Desterro, da PGI (Pós-Graduação em Inglês), que tinha sido fundada por Dilvo I. Ristoff. Dessa época data também a edição de plaquettes com textos traduzidos por alunos da PGI, onde eu atuava ao mesmo tempo que na Pós-Graduação em Literatura. Cabe recordar que, naqueles anos, um mestre podia ser professor de um programa de pós. Para a edição dessas publicações, eu frequentava assiduamente a Imprensa Universitária e conversava longas horas com o diretor e com os funcionários de diferentes seções, desde a composição até a impressão e a encadernação. Assim, eu vivia o mundo gráfico diretamente, tanto na editora Noa Noa, que tinha sua sede na Rua Vidal Ramos, como na Imprensa Universitária. Também fui indicado para fazer parte do Conselho Editorial da Editora da UFSC, então sob a dinâmica gestão do escritor Salim Miguel, de quem me tornei amigo. Ali, durante anos, participei de reuniões regulares e escrevi dezenas de pareceres e pude acompanhar todos os passos da edição de uma grande quantidade de livros. Ao voltar do doutorado, em 1992, vinha com interesse redobrado pela edição. Continuei o trabalho de edição no CED e no LLE (onde tinha ajudado a fundar outra revista, a Fragmentos, de língua e literatura estrangeiras) e ao mesmo tempo comecei a participar da editora Paraula, fundada por Dorothée de Bruchard em Porto Alegre e depois transferida para Florianópolis. Na Paraula, especializada em edições bilíngues, eu cuidei de contatos com as gráficas e editei uma revista, a Arca, que teve apenas três números monográficos (Mário de Andrade, Voltaire e Eça de Queirós) e que publicou vários artigos de mestrandos em literatura da UFSC. Logo depois, assumi a coordenação da Pós em Literatura e uma de minhas prioridades era justamente estimular a publicação de professores e alunos. Na época havia poucos periódicos na UFSC e apenas uma minoria de colegas publicava de forma regular. O programa já contava com uma revista, a Travessia, dirigida pela colega Zahidé Muzart dentro de um enfoque com o qual eu me identificava plenamente: o do pluralismo e o do respeito e estímulo à diferença de orientação e ponto de vista. Cheguei a organizar dois números monográficos da Travessia, sobre Guimarães Rosa e Manuel Bandeira, que incluíram colaboradores de várias instituições e também de alunos do programa, alguns dos quais são atualmente professores da UFSC. Como o programa já dispunha de uma revista, que acolhia colaborações de colegas do programa e de outras universidades, e onde os alunos publicavam apenas ocasionalmente, achei que era importante criar um órgão que pudesse estimular a publicação dos alunos, através do aproveitamento dos trabalhos das disciplinas. Como acreditava, e continuo acreditando, que uma revista apenas de alunos limitaria a publicação, pensei em uma revista prioritariamente dos alunos mas com participação de artigos de docentes. Da mesma forma que a Travessia publicava (como deve ser) artigos de colegas de outras instituições do país e do exterior, fazendo com que as produções dos colegas locais aparecessem lado a lado com a produção de colegas nacionais e internacionais, na revista dos alunos haveria artigos dos alunos ao lado de artigos dos professores. Nos dois casos, acredito que a fórmula serve para promover o diálogo e a competência. Assim, foi criada a Anuário, sob a direção de uma mestranda (Daisi Vogel, hoje colega do Jornalismo) e com uma comissão editorial que incluía outra aluna e dois professores, o colega Alckmar Luiz dos Santos, que tinha acabado de entrar na UFSC, e eu. A iniciativa, me parece, foi bem recebida por muitos alunos e por parte dos colegas.
Anuário: Gostaríamos que o Sr. comentasse sobre a escolha do nome do periódico.
Walter: Acredito que veio naturalmente por se tratar de uma publicação anual e de um programa de pós-graduação em estudos literários, seguindo uma longa tradição de periódicos com a palavra no título, como na célebre Anales de Buenos Aires, que foi dirigida por Jorge Luis Borges, e a não menos célebre Annales d'histoire économique et sociale, que deu origem à inovadora Escola dos Annales, que renovou a historiografia francesa e mundial.
Anuário: Quais as principais dificuldades enfrentadas para que o mesmo fosse editorado e impresso nos inícios dos anos 90?
Walter: Não houve maiores dificuldades. Desde que entrei na UFSC, me envolvi com edição de periódicos e livros e conhecia bem como funcionava toda a cadeia da edição, da captação e editoração dos originais à sua impressão e distribuição. Claro que não tínhamos as fantásticas facilidades de hoje, devidas ao desenvolvimento do computador pessoal e da internet, mas dispúnhamos na UFSC de todos os meios necessários para uma edição de qualidade. O CCE dispunha de duas revistas consolidadas, Travessia e Ilha do Desterro, e várias novas estavam despontando em outros centros. A Imprensa Universitária, embora lenta, fazia um trabalho competente e a Editora da UFSC começava a se destacar entre as editoras universitárias, inclusive por iniciativas pioneiras do Salim Miguel de parcerias com o Banco do Brasil, com empresas como a Fiat e com prefeituras. Para o primeiro número contei também com a assessoria gráfica de Cleber Teixeira, da Noa Noa, e de Dorothée de Bruchard, da Paraula, que fez o design da capa. A editoração propriamente dita foi feita no próprio programa, onde montamos um esquema de editoração eletrônica; neste número ela foi feita pelo colega Alckmar e por mim. Convém assinalar ainda que a editora-chefe, a então mestranda Daisi Vogel, já tinha ampla experiência jornalística em veículos de circulação nacional. A impressão foi feita na Imprensa Universitária, que eu conhecia bem; assim, pude acompanhar pessoalmente todas as fases do primeiro número da Anuário. O custo da editoração foi zero porque feita por nós mesmos e o custo da impressão foi coberto por uma cota que o CCE possuía na Imprensa Universitária.
Anuário: Acerca da migração do Anuário de Literatura para o meio digital e o abandono do meio impresso, o Sr. gostaria de comentar algo?
Walter: Sempre gostei de livro e, depois de uma rápida rejeição inicial, me entusiasmei, de forma permanente, com as possibilidades da edição eletrônica e da internet. Gosto de ler em todos os suportes e creio que os suportes todos se complementam. É natural que as pessoas educadas no papel, prefiram esse suporte, que foi, quando surgiu, tão revolucionário como a edição digital atualmente. Neste momento, depois de décadas de convívio com a leitura, a escrita e a editoração em meio digital, acredito que há uma tendência a que certos tipos de texto apareçam e circulem preponderantemente, ou exclusivamente, nesse suporte, tanto pela comodidade de uso como por problemas de custo. Desse modo, as obras de referência, como enciclopédias e dicionários, tendem, cada vez mais, a aparecer apenas em formato digital; outras, como os livros de ficção, ensaio e poesia, tendem a aparecer tanto em formato digital como impresso. Não devemos esquecer, e o ponto é importante, que todo arquivo digital, pode ser impresso em qualquer momento e que todo arquivo impresso pode ser transformado em arquivo digital. No caso dos periódicos acadêmicos, me parece lógico que se migre total ou parcialmente ao meio digital. Talvez a melhor fórmula seja a edição em meio digital, com alguns exemplares impressos, o que é perfeitamente possível e não representa um custo excessivo. Por comodidade, a tendência é os periódicos aparecerem em formato digital apenas. Me parece sábia, portanto, a decisão da Anuário de Literatura de migrar para o meio digital porque os custos são mínimos e a difusão máxima. A decisão permite também uma maior autonomia aos responsáveis, que não dependem de liberação de verbas e podem se concentrar na edição dos textos. Em relação ao meio digital, gostaria ainda de destacar dois aspectos, um de experiência pessoal de uso do Portal Capes de Periódicos e outro sobre o Portal UFSC. Como os próprios periódicos, e como um número crescente de pesquisadores, fui migrando, da leitura em papel para a leitura na tela. Embora ainda seja mais agradável ler em papel, o uso do texto digital oferece vantagens excepcionais para a pesquisa, entre elas, naturalmente, a facilidade de busca. Desde o início de sua implantação, fui um usuário entusiasta do Portal Capes de Periódicos, uma iniciativa inédita em termos mundiais. Algumas revistas internacionais que eu lia em biblioteca (como a Hispanic Review e a Luso-Brazilian Review) ou que eu assinava (como a Variaciones Borges) passei a poder consultar diretamente no computador, de qualquer lugar do mundo, porque logo consegui uma conexão VPN da UFSC, que me permite o acesso a distância a todo o conteúdo digital a que a UFSC tem direito de acessar por assinatura própria (como a base PROQUEST de teses e dissertações, uma maravilha que comecei explorar há pouco) ou por assinatura via CAPES. Embora o conteúdo da área de Humanidades seja apenas uma fração da disponível na área de exatas e tecnológicas, e seja sobretudo de material em língua inglesa (não contendo, portanto, algumas excelentes revistas em francês, alemão, italiano e espanhol), o já disponível é vastíssimo, sobretudo através dos portais Jstor, Project Muse e das editoras Oxford, Cambridge, Wiley e Springer. Há também uma enorme quantidade de material de referência (enciclopédias e dicionários), sobretudo da editora Gale. O Portal UFSC é outra maravilha e tem sido montado de forma eficaz e inteligente por uma equipe da BU, sob a coordenação da Andréa Figueiredo Leão Grants. Graças a esse trabalho, o precioso conteúdo publicado pelas revistas da área de Letras da UFSC está agora disponível, em dois cliques, a todos os interessados, que incluem, naturalmente, os próprios pesquisadores do CCE.
Anuário: O Sr. atuou no Programa de Pós-Graduação em Literatura lecionando aulas de teoria literária e hoje atua junto ao Programa de Pós-Graduação em Tradução. Como o Sr. avalia suas escolhas acadêmicas e quais os autores que marcaram mais significativamente essa trajetória?
Walter: Eu atuei por décadas na Pós-Graduação em Literatura e gostaria de ter continuado a atuar. No entanto, em 2003, junto com alguns colegas, montamos a PGET (Pós-Graduação em Estudos da Tradução), que surgiu, aliás, de outra revista, inicialmente um anuário, que ajudei a fundar, a Cadernos de Tradução, cujo primeiro número saiu em 1996. Com o novo curso, aumentaram os encargos e em certo momento eu quis simplificar um pouco minha vida, me concentrando nas novas tarefas, entre elas a publicação de revistas e livros. Mas o que mais pesou na minha decisão de deixar a Pós-Graduação em Literatura foi o clima de conflito, que sempre existiu no curso, mas que foi se agravando nos últimos anos. Minha saída do programa não implicou o abandono de meu interesse pela teoria literária, literatura brasileira, literatura comparada, literaturas estrangeiras e estudos literários e culturais, em geral. Continuo lendo, pesquisando e escrevendo sobre literatura, e participando de eventos e bancas na UFSC e em outras instituições do país e do exterior. Só, infelizmente, não oriento mais dissertações e teses sobre literatura que não envolvam de alguma forma a tradução, salvo na graduação, onde tenho a felicidade de orientar iniciação científica e TCCs de estudos literários. Minhas escolhas acadêmicas foram condicionadas por minha formação anterior e pelas condições concretas da UFSC e também pela concepção de carreira acadêmica que eu tive, ou fui tendo, porque fui mudando, ao longo dos anos. Em primeiro lugar, minha formação anterior foi, até certo momento, mais cultural que acadêmica. Meu primeiro período de formação intelectual se deu, junto com uma ótima educação formal de escola pública, por leituras pessoais, sobretudo do Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo e revistas culturais como Leitura e Revista Civilização Brasileira e a participação em grupos de criação literária, sobretudo de poesia. Meu segundo período foi o do estudo de muitas e o aprendizado de algumas línguas estrangeiras: aprendi espanhol, francês, holandês, inglês e italiano mas estudei também alemão, russo e japonês, embora nunca tenha integrado essas línguas no meu cotidiano. Tenho, porém, planos de retomar o alemão. Meu terceiro período foi o curso de Letras em Leuven, Bélgica, depois de ter iniciado o mesmo em Santiago do Chile. Nesses anos, além do estudo sistemático do francês e do espanhol e suas literaturas, li extensivamente revistas e suplementos literários franceses, hispânicos, flamengos e holandeses. Li também obras e correspondências completas de vários escritores franceses, em especial Rousseau, Mallarmé e Flaubert. Comecei a ler, de modo mais regular, filosofia, de tal modo que até pouco tempo atrás eu tinha lido mais os filósofos que os literatos. Meu quarto e quinto períodos, já como professor da UFSC, foi o doutorado na Inglaterra e o pós-doutorado na UFMG. Na Inglaterra convivi durante quatro anos com outro enfoque, que comecei a admirar particularmente através da obra de Borges, o do contato direto com as obras e do desenvolvimento de hipóteses próprias, independentemente das correntes hegemônicas da hora. Finalmente, o pós-doutorado significiou a retomada do contato com a cultura mineira, que eu tinha frequentado bastante em meus anos belgas quando preparei uma dissertação sobre a primeira tradução francesa de Grande Sertão: Veredas. Minhas escolhas acadêmicas giraram em torno de um autor sobretudo: Jorge Luis Borges; na pesquisa sobre sua obra pude dar abrigo a meus impulsos de criatividade e erudição, assim como o de autonomia e universalidade. Ao escolher me concentrar no estudo de um autor que é ao mesmo tempo ficcionista, poeta, ensaísta e pensador, além de tradutor e editor, eu conciliava, de alguma forma, os diferentes períodos de minha formação e também minhas diferentes pulsões. Através de Borges eu me aprofundei em certos filósofos, como Schopenhauer e Hume, e passei a conhecer a literatura fantástica na concepção borgiana, que inclui tanto as da modernidade ocidental como as antigas e medievais do Oriente e do Ocidente. Com ele aprendi também a valorizar o texto traduzido como lugar não apenas de informação mas de meditação e discussão estética e comecei a ler de forma sistemática as traduções para línguas diferentes de grandes textos literários, inclusive das traduções para outras línguas de obras brasileiras. Como exemplo, possuo uma pequena borgiana em casa, não apenas com as edições em espanhol das obras de Borges, e obras de crítica, mas também diferentes traduções para o português, francês, inglês, holandês, italiano e alemão. Com frequência, leio e releio não apenas Borges em espanhol mas nessas diferentes traduções e, não raro, é nas traduções, não no original, que descubro aspectos antes não vistos, ou apenas entrevistos. Antes de meu período belga e britânico, eu tinha lido extensamente teoria, com destaque para os formalistas russos e estruturalistas tchecos e franceses. Meus anos ingleses e a frequentação da obra de Borges contribuíram para me deixar cético em relação às teorias, que procuro acompanhar e usar com moderação, dando mais ênfase ao embate direto com a obra e seus arredores. Apesar disso, leio regularmente teoria e sou, como boa parte dos colegas de estudos literários, fascinado pelos escritos de Mikhail Bakhtin e Walter Benjamin. Sou também leitor assíduo e admirador dos críticos Antonio Candido e Davi Arrigucci Jr. Me parece que os dois aliam erudição, análise própria e elegância, algo comum nos estudos literários franceses e ingleses mas meio raro no Brasil, onde os estudos literários se profissionalizaram e se sofisticaram muitíssimo mas tendem a ser escritos em jargão acadêmico e estão, muitas vezes, demasiado colados às metodologias e autores da moda. Fazendo um balanço, eu não mudaria muita coisa, salvo o de me concentrar não apenas na produção de artigos mas na produção de livros próprios, o que pretendo fazer nos próximos anos. É importante lembrar que é muitíssimo mais fácil pesquisar, escrever e publicar atualmente na UFSC, e na maioria das federais, do que foi durante boa parte de minha carreira. Ainda estamos longe das condições de trabalho dos colegas das estaduais paulistas, mas hoje nossos salários são incomparavelmente melhores e já não é tão comum, como antes, darmos 14 horas por semana, e até mais, em diferentes disciplinas de língua e literatura, embora aconteça ainda, infelizmente, com professores substitutos e em estágio probatório.
Anuário: E por fim, agradeceríamos se o Sr. referisse alguns textos de autores contemporâneos lidos com prazer.
Walter: Sempre procurei integrar, em minhas leituras, autores internacionais e nacionais, de várias épocas e países, mas minha predileção recaiu em autores mais antigos, como os do Século de Ouro na Espanha e dos séculos 18 e 19 na França, Inglaterra e Estados Unidos. Dos autores do século 20 eu li (e ensinei) mais os hispano-americanos, entre outros, na prosa, além de Borges, Juan Rulfo, José Lezama Lima, Juan Carlos Onetti e Felisberto Hernández, que acabo de traduzir com Pablo Cardellino (As Hortensias, Grua, São Paulo, 2012); na poesia, tenho lido (e ensinado) os poetas do século 20 e inclusive vários do século 21. Os “contemporâneos” que leio com mais prazer já não estão entre nós: os brasileiros Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues e Machado de Assis, o tcheco Franz Kafka, os húngaros Sandor Márai e Gyula Krúdy, os norte-americanos Emily Dickinson e Herman Melville, os russos Anton Thekhov e Lev Tolstói, os britânicos Laurence Sterne, Oscar Wilde e Gilbert Keith Chesterton, entre tantos. Mas entre os contemporâneos mesmo, sou grato à leitura de alguns ficcionistas, poetas e ensaístas estrangeiros e brasileiros. No caso dos estrangeiros, entre muitos, gostaria de lembrar a obra excepcional dos ficcionistas uruguaios, entre eles Mario Levrero e Henry Trujillo. Embora a literatura nacional venha sendo acompanhada de perto pela universidade, através de cursos e trabalhos de TCC, mestrado, doutorado e pós-doutorado, e por diferentes periódicos, sobretudo pela Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, da UnB, falta um acompanhamento da produção literária recente. Só uma parcela mínima dos milhares de lançamentos é resenhada na imprensa. Na ficção, gostei muito de ler os livros dos mineiros Maria Esther Maciel, Luis Alberto Brandão e Marcílio França Castro: os três têm uma escrita muito elegante, algo pouco frequente na ficção atual, que parece privilegiar a narrativa em detrimento do estilo. Gosto muito também do livro O voo noturno das galinhas, de Leila Guenther, escritora nascida em Blumenau, de ascendência alemã e japonesa e que vive atualmente em Campinas, SP. O livro, que já tem uma competente tradução peruana (El vuelo nocturno de las gallinas, traducción de Armando Alzamora, Borrador Editores, Lima, 2010), chama a atenção pela destreza narrativa, densidade de ideias, alta tensão emocional e escrita contida. Na poesia, leio com deleite, entre outros, os livros de Paulo Henriques Britto, de quem tenho a honra de ser amigo, Claudia Roquette-Pinto e Nelson Ascher, todos eles poetas de dicção própria e com uma obra em pleno florescimento. No ensaio, gostaria de destacar a obra do teórico Luis Costa Lima, que é um exemplo de desenvolvimento independente; de Paulo Henriques Britto, que vem elaborando uma muito original teoria e crítica da tradução poética, tema também das contribuições de José Lira e Álvaro Faleiros; do polonês-brasileiro Henryk Siewierski que atua tanto no Brasil quanto na Polônia; de Jerusa Pires Ferreira, a grande especialista em literatura oral no país; de Júlio Castañon Guimarães, que, ao lado de uma sólida obra de poeta e tradutor, cultiva o ensaio erudito e bem escrito, nos melhores moldes internacionais. Vale a pena igualmente chamar a atenção para a literatura traduzida, onde aparecem alguns dos melhores textos dos últimos anos: cabe assinalar, entre tantos tradutores-escritores de qualidade, as contribuições do veterano Boris Schnaiderman (um tradutor que revê minuciosamente a tradução a cada republicação) e a dos jovens Paulo Werneck e Caetano Waldrigues Galindo: os dois últimos realizaram uma verdadeira revolução na tradução do diálogo, respectivamente, em Zazie no metrô, de Raymond Queneau (Cosac Naify, 2009) e Ulysses, de James Joyce (Penguin Companhia das Letras, 2012).
Florianópolis, 20 de outubro de 2012.

domingo, 8 de setembro de 2013

O Livro da Grande Desordem e da Infinita Coerência

Espetáculo oferece ao público experiência estética deslumbrante
Utilizando o conceito de arte total como procedimento, o espetáculo "O Livro da Grande Desordem e da Infinita Coerência" justapõe elementos visuais, sonoros e textuais com excelência rara.
A montagem dirigida e protagonizada por André Guerreiro Lopes proporciona uma experiência estética ímpar, ao retratar o universo do autor sueco August Strindberg (1849-1912) combinando com mesma potência todos os elementos cênicos disponíveis.
A paranoia de seu romance autobiográfico "Inferno" e o simbolismo de sua peça "O Sonho" são retratados por meio de uma atmosfera onírica, criada a partir de um cenário soturno e um sofisticado desenho de luz.

Lenise Pinheiro/Folhapress
André Guerreiro Lopez (esq.), Eduardo Mossri, Djin Sganzerla (sentada) e Helena Ignez em cena da peça
André Guerreiro Lopez (esq.), Eduardo Mossri, Djin Sganzerla (sentada) e Helena Ignez em cena da peça
Existe apuro igual tanto pelos aspectos visuais macro --cenografia, iluminação, projeção de vídeo-- quanto pelos micro --a gestualidade milimétrica das mãos de Djin Sganzerla, a expressão enigmática de Eduardo Mossri.
Cada cena forma quadros estilizados independentes.
O figurino de Sonia Ushiyama é elegante e apropriado ao enredo, com casacos acinturados para os atores e vestuário longo para as atrizes. Junto com a maquiagem dark, o figurino compõe o ambiente expressionista da peça.
A trilha sonora é executada ao vivo por Gregory Slivar. À frente de uma parede de luz, que lhe dá um recorte de sombra silhuetado, toca piano, violino e flauta, além de coordenar sons pré-programados em computador.
A concepção de "paisagem sonora" prioriza também a musicalidade ruidosa de diversos objetos espalhados pelo palco.
André Guerreiro conduz com maestria a encenação.
Como ator, invoca as microcenas que vão formando a narrativa fragmentária, doando-se com paixão ao papel (estratégia muitas vezes arriscada no campo da atuação) sem erros. Em outros momentos ele desliza como um bailarino contemporâneo, abusando de movimentos descontínuos a abruptos.

PEÇA DENTRO DA PEÇA
Ao dirigir e atuar simultaneamente, potencializa as camadas de interpretação do espetáculo, já que até mesmo seu personagem ficcional dirige a peça dentro da peça.
A discussão matrimonial entre Djin e Mossri tem intensidade dramática perturbadora, assim como o debate entre professor e aluno.
Helena Ignez faz rápidas aparições com um livro nos braços. Com sua vocalização grave, transita pelo tablado recitando trechos esparsos, ampliando a estranheza que a obra de Strindberg sugere.
A arriscada sobreposição de tantos elementos poderia ruir o sistema cênico proposto, causando superabundância de significantes e significados, não fosse o andamento tranquilo entre as cenas.
Nunca há excessos. Se a ação é tomada por efeitos de luz mirabolantes, a penumbra volta na sequência. Quando o labirinto sonoro ameaça perturbar a compreensão, o ritmo lento ressurge. E a pantomima e o diálogo estão em harmonia. Obra de arte completa, sem ressalvas.

O LIVRO DA GRANDE DESORDEM E DA INFINITA COERÊNCIA
QUANDO sex. e sáb., às 21h; dom., às 18h
ONDE Sesc Santana (av. Luís Dumont Villares, 579; tel. 0/xx/11/ 2971-8700)
QUANTO R$ 24
CLASSIFICAÇÃO 14 anos
AVALIAÇÃO ótimo

(Marcio Aquiles, Folha de São Paulo, "Ilustrada", 5/9/2013)

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Gol de tabela


 
GALO 1
 
No princípio era o colo e chorava no berço e tatuava na sombra e amava mais que a mãe e sobre todas as coisas e antes de mais nada e com todas as palavras.
 
GALO 2
 
No princípio era o verbo e chorava no campo e tatuava nas costas e amava mais que a Júlia e sobre todas as coisas e antes de mais nada e com todas as palavras.
 
GALO 3X0
 
No princípio era a bola e chorava na várzea e tatuava na grama e amava mais que todas as coisas e antes de mais nada e apesar de todas as palavras.
(Adriana Versiani)

 

Como um sopro quase divino
o grande momento teve início em um Fla-Flu.
O piso era amarelo e a pequena bola deslizava
suavemente nos arranjos descuidados dos volantes.

Apenas uma preliminar,
e era preciso aprender o manejo da palheta
fixando os olhos entre os dedos lisos e brancos.

O pensamento antevendo a longa jornada noite adentro.

Como uma infância para sempre
guardada nas trêmulas bandeiras
de ataques e defesas.

(Camilo Lara)

 

Pelada Poética: antologia. Júlio Abreu, Mário Alex Rosa (org.) Belo Horizonte, Scriptum, 2013.