sábado, 21 de abril de 2012

Porque Frida Kahlo existiu

(Frida Kahlo, Diego e eu)

Quando Frida era criança, esta casa era branca e vermelha. Uma grande casa de família arruinada. O pai, Guilhermo, fotógrafo nascido na Alemanha, tinha de gastar muito do seu tempo a fazer retratos de famílias para ganhar dinheiro. A mãe, Matilde, foi ensombrando entre os partos, e foram cinco (o único bebé varão morreu).
Mas havia irmãs e amigos, o espírito insolente do grupo de escola, este jardim de árvores tropicais, a rua onde bulia uma intimidade mexicana, indígena, arcaica. Coyoacán foi o mundo de Frida como o Yorkshire foi o mundo de Emily Brontë. E tal como Emily também Frida cresceu a saber o que poucos aprendem: que o amor é o mais forte instinto de sobrevivência, mais forte do que a fome.
Ela não se apaixonou inesperadamente por Diego. Em adolescente ouviu falar naquele Pantagruel tantos anos mais velho, várias vezes casado e separado e pai de filhos, e decidiu que seria ele. Então apareceu-lhe no ateliê, diz a lenda.
As pessoas normais perdem tempo a pensar no que deviam ter feito, e algumas pessoas vêem o que há a fazer como uma pedra. Ser diferente podia ter acabado com Frida, mas ela estava destinada a viver contra todas as previsões. De uma forma um pouco cosmogónica – mas estar aqui ajuda-nos a não ter medo disso –, estava destinada a alterar para sempre o México. Porque Frida Kahlo existiu, o México é mais forte, mais complexo, mais desarmante. Na dor como no riso, ela continua os deuses e portanto é o futuro.
É uma crença antiga, a de que os deuses marcam os seus. Frida tornou-se diferente logo em criança, quando uma poliomielite a deixou com uma perna atrofiada. Frida perna-de-pau, cantavam as crianças. As crianças, todas as crianças, são ajudantes de deuses, marcam os diferentes. Olhem para os retratos de Frida, ela está quase sempre de saia até os pés. Vem daí aquele lema, que não tem nada de ressentimento e tem tudo de vitalidade: defenderse de los cabrones.
E Diego – principio / constructor / mi niño / mi novio / pintor / mi amante / “mi esposo” / mi amigo / mi madre / mi padre / mi hijo / yo / universo – foi esse instinto primordial que a fez levantar o pescoço mesmo depois de 35 operações à coluna, vários abortos, a amputação dos dedos do pé e a seguir da perna.
Talvez, se um deus a marcou, outro lhe tenha dado Diego para que ela encontrasse a cada dia uma razão maior. Se assim foi, Frida Kahlo sobreviveu devido a Diego Rivera, mas Diego existiu para que Frida Kahlo vivesse.

(Alexandra Lucas Coelho, Viva México. Edições
Tinta-da-China, 2010)

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Partes homólogas

A história que escrevi sobre os irmãos siameses Wang e Chu, "Partes Homólogas", já está no número 13 de Desenredos.

Cicatrizes doem



3
Sou lírica.

Trago lábios tensos e a lâmina que barbeou
meu pai a quem beijei antes da morte.

Meses inteiros na câmara escura, a luz
me remete a impropérios de toda ordem.

Sou lírica.

4
Estrume no canteiro dos mortos, olho
encantada essa desintegração, esse novo
alimento. Somos nós a nova geração de seres
que se alimentam de veneno puro, três doses
de veneno puro e só existem chapéus e um
canal que liga as Américas. A minha fonte
primordial anda suspensa, na corda bamba
da decadência: Veneza sucumbindo às águas.
Trago na mala a navalha com a qual retalhei
meu pai. Era tarde? Mastiguei um pouco da
carne e os cães brancos me perseguiram.
Nevava nos trópicos, os rios congelando e eu
correndo e pulando de um bloco para outro.
Lavei o sangue da navalha no canal que liga as
Américas.


(Adriana Versiani dos Anjos. A lâmina que matou meu pai. Edições Lâminas do Brasil. Belo Horizonte, 2012)