sexta-feira, 19 de junho de 2009

A mulher mais linda da cidade

Das 5 irmãs, Cass era a mais moça e a mais bela. E a mais linda mulher da cidade. Mestiça de índia, de corpo flexível, estranho, sinuoso que nem cobra e fogoso como os olhos: um fogaréu vivo ambulante. Espírito impaciente para romper o molde incapaz de retê-lo. Os cabelos pretos, longos e sedosos, ondulavam e balançavam ao andar. Sempre muito animada ou então deprimida, com Cass não havia esse negócio de meio termo. Segundo alguns, era louca. Opinião de apáticos. Que jamais poderiam compreendê-la. Para os homens, parecia apenas uma máquina de fazer sexo e pouco estavam ligando para a possibilidade de que fosse maluca. E passava a vida a dançar, a namorar e beijar. Mas, salvo raras exceções, na hora agá sempre encontrava forma de sumir e deixar todo mundo na mão.
As irmãs a acusavam de desperdiçar sua beleza, de falta de tino; só que Cass não era boba e sabia muito bem o que queria: pintava, dançava, cantava, dedicava-se a trabalhos de argila e, quando alguém se feria, na carne ou no espírito, a pena que sentia era uma coisa vinda do fundo da alma. A mentalidade é que simplesmente destoava das demais: nada tinha de prática. Quando seus namorados ficavam atraídos por ela, as irmãs se enciumavam e se enfureciam, achando que não sabia aproveitá-los como mereciam. Costumava mostrar-se boazinha com os feios e revoltava-se contra os considerados bonitos – “uns frouxos”, dizia, “sem graça nenhuma. Pensam que basta ter orelhinhas perfeitas e nariz bem modelado... Tudo por fora e nada por dentro...” Quando perdia a paciência, chegava às raias da loucura; tinha um gênio que alguns qualificavam de insanidade mental.
O pai havia morrido alcoólatra e a mãe fugira de casa, abandonando as filhas. As meninas procuraram um parente, que resolveu interná-las num convento. Experiência nada interessante, sobretudo para Cass. As colegas eram muito ciumentas e teve que brigar com a maioria. Trazia marcas de lâmina de gilete por todo o braço esquerdo, de tanto se defender durante suas brigas. Guardava, inclusive, uma cicatriz indelével na face esquerda, que em vez de empanar-lhe a beleza só servia para realçá-la.
Conheci Cass uma noite no West End Bar. Fazia vários dias que tinha saído do convento. Por ser a caçula entre as irmãs, fora a última a sair. Simplesmente entrou e sentou do meu lado. Eu era provavelmente o homem mais feio da cidade – o que bem pode ter contribuído.
– Quer um drinque? – perguntei.
– Claro, por que não?
Não creio que houvesse nada de especial na conversa que tivemos essa noite. Foi mais a impressão que causava. Tinha me escolhido e ponto final. Sem a menor coação. Gostou da bebida e tomou várias doses. Não parecia ser de maior idade, mas, não sei como, ninguém se recusava a servi-la. Talvez tivesse carteira de identidade falsa, sei lá. O certo é que toda vez que voltava do toalete para sentar do meu lado, me dava uma pontada de orgulho. Não só era a mais linda mulher da cidade como também das mais belas que vi em toda a minha vida. Passei-lhe o braço pela cintura e dei-lhe um beijo.
– Me acha bonita? – perguntou.
– Lógico que acho, mas não é só isso... é mais que uma simples questão de beleza...
– As pessoas sempre me acusam de ser bonita. Acha mesmo que eu sou?
– Bonita não é bem o termo, e nem te faz justiça.
Cass meteu a mão na bolsa. Julguei que estivesse procurando um lenço. Mas tirou um longo grampo de chapéu. Antes que pudesse impedir, já tinha espetado o tal grampo, de lado, na ponta do nariz. Senti asco e horror.
Ela me olhou e riu.
– E agora, ainda me acha bonita? O que é que você acha agora, cara?
Puxei o grampo, estancando o sangue com o lenço que trazia no bolso. Diversas pessoas, inclusive o sujeito que atendia no balcão, tinham assistido à cena. Ele veio até a mesa:
– Olha – disse para Cass, – se fizer isso de novo, vai ter que dar o fora. Aqui ninguém gosta de drama.
– Ah, vai te foder, cara!
– É melhor não dar mais bebida pra ela – aconselhou o sujeito.
– Não tem perigo – prometi.
– O nariz é meu – protestou Cass, – faço dele o que bem entendo.
– Não faz, não – retruquei, – porque isso me dói.
– Quer dizer que eu cravo o grampo no nariz e você é que sente dor?
– Sinto, sim. Palavra.
– Está bem, pode deixar que eu não cravo mais. Fica sossegado.
Me beijou, ainda sorrindo e com o lenço encostado no nariz. Na hora de fechar o bar, fomos para onde eu morava. Tinha um pouco de cerveja na geladeira e ficamos lá sentados, conversando. E só então percebi que estava diante de uma criatura cheia de delicadeza e carinho. Que se traía sem se dar conta. Ao mesmo tempo que se encolhia numa mistura de insensatez e incoerência. Uma verdadeira preciosidade. Uma jóia, linda e espiritual. Talvez algum homem, uma coisa qualquer, um dia a destruísse para sempre. Fiquei torcendo para que não fosse eu.

(Charles Bukowski. “A mulher mais linda da cidade”. A mulher mais linda da cidade e outras histórias. Trad. Albino Poly Jr. Porto Alegre, L&PM, 1996.)
 
 


terça-feira, 16 de junho de 2009

Cura de um cego

Consta que um homem cego de nascença perambulava por terras áridas e longínquas, num mundo escuro e largo, à procura de quem o curasse, quando ouviu o tropel da multidão que passava. Perguntou o que era. Anunciaram-lhe que Ele passava por ali. Conhecendo de ouvido seu poder, rogou-Lhe um milagre. “Que queres que eu te faça?”, Ele indagou. Respondeu o cego: “que eu veja”. “Tens certeza?”, replicou Ele, desapontado. “Por misericórdia”. “Pois assim seja feito; tua cegueira te perdeu, mas tua obstinação te salvará”. E o cego pôs-se a enxergar. Consta também que esse homem, antes sem visão, tendo então vivido e visto, furou os próprios olhos, num assomo de desespero, à maneira tebana.


(Leila Guenther. O vôo noturno das galinhas. Ateliê Editorial, 2006)

sábado, 6 de junho de 2009

Móvel e provisório

Tenho um carro. É simples, mas é meu (ainda o estou pagando) e me permite me locomover para qualquer lugar que seja. Não que eu precise ir para muito longe. Mas a sensação de pelo menos poder ir é reconfortante. A mobilidade é um grande dom. Posso levar também. Posso levar um doente ao hospital, antes que a morte o leve. Posso ser mais rápida que a morte. Na verdade eu fiz isso há alguns dias. Levei alguém a um hospital com o meu carro. Alguém que não voltou. Eu fiquei esperando – eu passei a vida esperando – mas ele não voltou. Era para ele voltar, não havia dúvidas quanto a isso, mas não deu certo. Ele ficou e eu fui. Depois de algum tempo parada, a gente se espanta com a capacidade que ainda tem de ser móvel. E se espanta mais ainda com o caráter provisório das coisas. A vida era provisória e eu não sabia. O amor era provisório e eu não sabia. Joguei no lixo do banheiro o presente com que eu esperava aquele que não voltou, peguei algumas roupas, o notebook, o cachorro e as coisas dele – casinha, cobertor, ração, brinquedo (ele precisa de mais coisas que eu, percebi com infinita surpresa) –, pus tudo no carro e parti. Na estrada vi tudo ficando para trás numa velocidade absurda. O que eu era, o que sou, se despregou de mim como pele velha e ficou parado no mesmo lugar, enquanto a viagem prosseguia. Não preciso mais do que eu era, do que sou, constato também com infinita surpresa. Chego a algum lugar. Sei apenas que é também provisório. Depois de usar a rede via linha telefônica, sei que vou precisar de uma banda larga. Mas já me decidi: será uma internet 3g, dessas que a gente pluga no notebook, também móvel, e vai para onde quiser. Se eu voltar a ter uma casa, sei que não haverá telefone fixo. Só celular. Móvel. Minhas roupas, onde estou, continuam na mala. Abriram-me um espaço no guarda-roupa mas não quero usá-lo. Minha mala é meu melhor guarda-roupa agora. De repente me dou conta de que móvel e provisório são sinônimos. Eu sou móvel, portanto sou provisória. Agora que estou perdida eu me encontrei. A gente se acostuma com tudo e muito rapidamente. A gente se acostuma com a falta que os outros fazem. O cachorro não. Ele precisa de mais coisas do que eu. Nem parece que um dia descendeu de um lobo nômade. Ele tem necessidade de que tudo esteja no seu devido lugar. Ele ainda não aceitou que não há lugar para a gente. Por isso ele chora sem parar.




(Leila Guenther)

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Depois do fim

Já conhecia bem a sua parte – seu quarto. Nele, deitava-se agora na cama, pois, após experimentar todo o chão e demais reentrâncias, achou que a cama (sob a qual permaneciam imóveis os livros com manchas amarelecidas não porque velhos, mas porque mofavam tão logo entravam naquele cômodo ou em qualquer outro daquela casa) era o melhor que lhe caía. Bastava perambular com os olhos para entender que atrás da cômoda se apinhavam teias de aranhas poeirentas porque nunca limpavam ali, e tampouco eram retirados do lugar os objetos que repousavam sobre ela: os porta-retratos, dispostos estranhamente, cujas fotografias antigas se escondiam umas atrás das outras, a caixa de prata já preta que não continha jóias, mas pedaços de bijuterias estragadas, papeizinhos e um rosário em desuso. A caixinha escurecia, como tudo que de prata fosse em seu corpo.
Sobre a bicicleta ergométrica sedentária, ao canto, amontoavam-se as roupas limpas, mas nunca passadas a ferro, que ninguém passava roupa naquela casa. Não as guardava no armário, que seria inútil ter de tirá-las de dentro dele para que fossem novamente usadas. Ao lado do guarda-roupa se formava um vão onde cabia o velho violão sem cordas e, se mexesse ali, aí sim veria com nitidez a poeira alçando voo para se depositar no umbral da janela, fazendo-a, ao longo do tempo, emperrar como sempre. Através de seu vidro era possível ver as manchas gordurosas dos dedos antes limpos como o resto do corpo que agora jazia sobre a cama. Todas essas coisas entulhadas davam-lhe a impressão de que, embora o movimento fosse ínfimo, seria certamente acompanhado de uma pausa. E devia haver um momento em que tudo para. Tinha certeza disso quando observava a inércia que se apossava de seus membros, um a um. Sequer erguia as mãos para algum gesto de desalento, o corpo não se mexia, exceto os olhos. Breve eles também cessariam o movimento inútil de vagar por esse lugar já tão conhecido, até a hora em que resolvessem tornar a se abrir.
(Leila Guenther. O vôo noturno das galinhas. Ateliê Editorial, 2006.)