quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O self-made man

Para ele tudo começou num momento de silêncio estilhaçante. Alguma coisa desprendeu-se e caiu. Instintivamente, seu coração compreendeu que essa ‘coisa’ era a idéia há tanto tempo acalentada de si mesmo como um indivíduo, uma entidade norte-americana chamada ‘self-made man’. Algo aprendido através de gerações de ancestrais irascíveis com a mesma linha dura do queixo e o mesmo nariz adunco. Tinha retratos deles no consolo de pedra de sua lareira. Ferrotipos do tempo da Guerra Civil, do seu tetra-tetra-tetravô, um homem chamado Lemuel P. Dodge, que perdeu uma orelha lutando pelo norte, um braço lutando pelo sul e finalmente foi enforcado por ‘adultério’ em Ojinaga e arrastado pelas ruas de terra até a cabeça se separar do tronco. Havia outros, homens com longas barbas e chapéus de palha com abas largas enfileirados no alto de gigantescas carroças de feno, forcados de madeira na mão, quase bíblicos contra o céu da pradaria. Ferroviários em vagões de gado, abanando chapéus-coco, explodindo as montanhas de granito para abrir caminho, determinados na sua convicção do ‘Destino Manifesto’. Depois, gerações seguintes, já com o misterioso lampejo da dúvida insinuando-se nos olhos. Pilotos de caça com capacetes de couro e echarpes de seda segurando as asas de um P-38, mas o bravo sorriso para as câmeras mostra agora uma sombra, como de ovelha que sabe que sua hora chegou.
Às vezes ele ficava à noite estudando aqueles rostos, o fogo tremeluzindo sobre a laje da lareira. Apanhava os porta-retratos para examinar melhor e andava pela sala lentamente, fumando e inclinando o vidro para evitar o brilho das chamas. Sentava com os retratos no colo e os limpava suave e carinhosamente com seu grande lenço azul. Sentia haver ali uma conexão, mais real do que se podia imaginar. Mais real do que os parentes vivos espalhados pelos mais remotos cantos do país, lugares que ele não tinha a menor intenção de visitar, como Tampa ou Seattle. Lugares que era como se estivessem no outro lado da Lua. A solidão era um fato da natureza, pensava. Tinha aprendido a não olhar além dela, evitar a traição da mente no que dizia respeito a mulheres, evitar toda a fantasia da sedução. Nunca valeu apena, no passado. Não podia confiar na mente para isso. Só lhe trouxe o terrível sofrimento. Agora, finalmente, chegava a um pequeno armistício consigo mesmo.
Levantou-se e pôs a foto no lugar, sobre a lareira. A de seu avô dirigindo uma caminhonete Modelo T, rebocando uma mula. Deteve-se algum tempo na imagem, ouvindo as corujas que alimentavam os filhotes no topo da velha tulipeira no quintal. Era um ritual noturno pelo qual esperava ansiosamente toda primavera. Costumava apanhar a lanterna e sair silenciosamente para a varanda, iluminando o tronco largo e fendido até prender o ninho num perfeito círculo de luz. Nesse ano eram dois os filhotes, e ficaram quietos assim que a luz atingiu seus olhos. A mãe, inclinada sobre eles, tinha uma pequena cobra negra nas garras. Virou de costas para a luz e bateu as asas, depois se acalmou. Filhotes da primavera revoaram chilreando, na frente da cena, substituindo os gritos estridentes das corujas, depois desaparecem, suas vozes abafadas pelo ronco distante de um caminhão a caminho do sul. Ele desligou a lanterna, esperando que as corujas recomeçassem a gritar, esperando que alguma coisa viesse ocupar o silêncio imóvel e crescente. Tentou ouvir bezerros mugindo à distância. Nada aconteceu. Procurou ouvir algum sinal do vento. Nada. Pigarreou para, pelo menos, ouvir a si mesmo, sentir a própria presença. Soou como o ruído de um homem. De qualquer homem. Um ser humano sem nada que o distinguisse. Como se um estranho estivesse ao seu lado na varanda. Virou a cabeça. Não havia ninguém. Apenas sua respiração. O sangue pulsando. Fez menção de falar, mas “com quem?”, pensou. “Dizer o quê? De que adianta?” Seu coração acelerou e toda a sua linguagem interior parecia ter se acumulado num nó latejante na base da nuca. Queimava como uma noz pequena e negra, fechando sua garganta. O pânico começou a dominá-lo. Já não havia nenhuma fronteira entre sua pele e a noite, entre sua respiração e o ar denso que o rodeava. Voltou-se para a árvore negra e maciça e olhou para cima. O olho da coruja mãe piscou para ele. Amarelo, depois negro. Os olhos dele desapareceram. O vazio o encheu por completo. Parecia correr em suas veias, tomando cada pensamento, cada sentido. Não deixou nada para trás, exceto a sensação dominante da própria respiração. Uma pulsação que ele não criava nem controlava. “Paz”, pensou. Com a rapidez do pensamento, a paz o deixou.


(Sam Shepard, Cruzando o paraíso. Trad. Aulyde Soares Rodrigues. São Paulo, Mandarim, 1996)

domingo, 30 de outubro de 2011

A permanência do figurativo I: Edward Hopper

Room in Brooklyn




New York Movie



Nighthawks



Stairway




Morning Sun


Gas




Early Sunday Morning



Room in New York



Seven a.m.



House by the Railroad


quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A teoria da vontade de morrer



Kitosch era um jovem nativo a serviço de um jovem fazendeiro branco de Molo. Uma quarta-feira de junho, o colono emprestou sua égua marrom a um amigo, para que este fosse à estação tomar o trem. Mais tarde, mandou Kitosch buscar a égua, ordenando-lhe que não a montasse em nenhuma hipótese, e que a trouxesse pelo cabresto. Kitosch, porém, saltou sobre a égua e cavalgou por todo o caminho de volta. No sábado, seu patrão foi informado da desobediência por alguém que vira o nativo sobre ela. E, na tarde de domingo, como punição, fez com que Kitosch fosse açoitado e depois amarrado num galpão, onde, na noite de domingo, viria a morrer.
(...)
Kitosch não teve muita oportunidade de exprimir sua intenção. Como estava trancado no galpão, sua mensagem foi expressa de modo singelo, com um único gesto. O vigia noturno declarou que ele havia chorado a noite toda. Mas não deve ter sido assim, pois à uma da manhã ele conversou com o toto que estava no galpão. Ele pediu ao menino que gritasse, pois o açoitamento o ensurdecera. À uma hora ele pediu ao toto que afrouxasse as amarras em seus pés, dizendo que de qualquer modo ele não poderia fugir. Quando o toto atendeu ao seu pedido, Kitosch disse-lhe que queria morrer. Pouco depois, ele se virou para um lado e para o outro, exclamou “Vou morrer!” e morreu.
Três médicos testemunharam no julgamento.
Para o médico-cirurgião do distrito, que realizara a autópsia, a morte fora causada pelos ferimentos e lesões que encontrara no corpo. Na opinião dele, nenhum cuidado médico imediato poderia ter salvo a vida de Kitosch.
No entanto, os dois médicos de Nairóbi, convocados pela defesa, eram de outra opinião.
De acordo com eles, o açoitamento em si não foi suficiente para provocar a morte. E um fator importante tinha de ser levado em conta: a vontade de morrer de Kitosch. Sobre essa questão, o primeiro médico afirmou que podia falar com autoridade, pois já vivera vinte e cinco anos no país e sabia como pensavam os nativos. Muitos médicos poderiam confirmar que o desejo de morrer, num nativo, poderia de fato ocasionar a morte. No caso em discussão, isto era especialmente evidente, uma vez que o próprio Kitosch deixara claro que queria morrer. E o outro médico o apoiou nesse ponto de vista.
Era bem provável, prosseguiu então o médico, que se Kitosch não tivesse tomado essa atitude, ele não teria morrido. Se, por exemplo, ele tivesse se alimentado, talvez não perdesse o ânimo, pois é sabido que a fome diminui a coragem. E acrescentou que o ferimento do lábio talvez não tivesse sido ocasionado por um chute, mas poderia ser apenas uma mordida do próprio Kitosch, desesperado com tanta dor.
O médico, além disso, acreditava que Kitosch só havia tomado a decisão de morrer após as nove horas, quando aparentemente havia tentado fugir. Tampouco ele morrera antes das nove. Ao ser surpreendido na tentativa de escapar, e ser amarrado de novo, o fato de ser um prisioneiro, segundo o doutor, poderia ter pesado em sua decisão.
Os dois médicos de Nairóbi então apresentaram suas conclusões sobre o caso. A morte de Kitosch, segundo eles, fora causada pelo açoitamento, pela fome e pela vontade de morrer, sendo esta última motivo de especial ênfase. O desejo de morrer poderia, disseram ainda, ter se originado como consequência do açoitamento.
Após o testemunho dos médicos, o caso passou a girar em torno daquilo que foi chamado no tribunal de “a teoria da vontade de morrer”. O médico-cirurgião do distrito, que fora o único a examinar o corpo de Kitosch, rejeitou essa teoria, e deu como exemplo pacientes seus com câncer que, mesmo querendo morrer, não haviam conseguido tal objetivo. Viu-se, porém, que todos eles eram europeus.
No final, o veredito do júri foi “culpado de lesões graves”. O mesmo veredito coube aos nativos implicados, mas levou-se em conta que, como haviam agido por ordem do patrão, um europeu, seria injusto enviá-los para a prisão. O juiz então determinou que fosse aplicada uma sentença de dois anos de reclusão no caso do colono, e de um dia no dos nativos.
Ao lermos os autos do processo, percebemos como é desconcertante e humilhante para os europeus o fato de os nativos poderem, por conta própria, decidir o momento em que querem abandonar a vida. A África é a terra materna dos nativos e, seja o que for que lhes fazemos, quando resolvem partir eles o fazem por sua livre e espontânea vontade, porque não desejam mais ficar. A quem cabe a responsabilidade pelo que se passa numa casa? Ao seu dono, àquele que a herdou.
Por causa do acentuado senso do que é certo e decoroso, a figura de Kitosch, com seu inquebrantável desejo de morrer, embora há tantos anos removida de nossa presença, se destaca com uma beleza toda própria. Nela ganha corpo a fugacidade das coisas selvagens que, na hora da necessidade, sabem que podem buscar refúgio em alguma outra parte. Aqueles que partem por livre e espontânea vontade, esses nunca podemos agarrar.




Karen Blixen (Isak Dinesen), A fazenda africana. Trad. Claudio Marcondes. São Paulo, Cosac Naify, 2005.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

sábado, 23 de julho de 2011

O selo "Sereia Ca(n)tadora" marca a volta da revista Babel com livro do escritor peruano Óscar Limache

"Sereia Ca(n)tadora" é um selo editorial de livros artesanais criado para marcar a volta da publicação da revista de poesia Babel. O primeiro título é um livro-piloto da coleção, que será realizada em associação com o Centro Camará de Pesquisa e Apoio à Infância e Adolescência, envolvendo jovens atendidos pela entidade em São Vicente, São Paulo, Brasil.
(...) o selo "Sereia Ca(n)tadora", no espírito cartonero, se somará à rede de editoras criadas na América Latina, juntando-se às brasileiras "Dulcineia Catadora" e "Katarina Kartonera", ampliando o espaço de intercâmbio entre escritores locais e de outros países, como "Eloísa Cartonera", na Argentina, o "Sarita Cartonera" no Peru, o "Yerba Mala" na Bolívia, "Yiyi Jambo" no Paraguai, Animita no Chile, "La Cartonera" no México, entre outros que já chegam a quase 20.
Esses projetos, muitas vezes associados, abrem a possibilidade de divulgação de escritores por toda a América Latina, trabalhando na contramão do mercado editorial que não tem interesse por poesia ou sequer conexão com a literatura produzida contemporaneamente. Daí o sentido especial do selo "Sereia Ca(n)tadora" publicar como livro-piloto do projeto um livro de Óscar Limache, traduzido pelo jornalista e escritor Alessandro Atanes. A escolha simboliza essas trocas e experiências editoriais que captam a gênese da contemporaneidade, repercutindo um movimento que se expressa na América Latina: nascido da crise através de uma solução que busca a simplicidade baseada em ideais comunitários e cooperativos, além de ecológicos e sociais, os livros são feitos com papelão catado nas ruas ou adquirido de cooperativas de catadores e papel reciclado, com capas pintadas uma a uma artesanalmente. Isso transforma os livros em objetos de arte, na contramão da tendência tecnológica que apregoa o seu desaparecimento para se transformar em algo virtual, encontrando uma relação lúdica com novos e antigos leitores, que faz o sucesso desses selos editoriais.
O selo "Sereia" vai publicar uma coleção de poetas da América hispânica traduzidos e uma coleção de poetas brasileiros ampliando o trabalho da revista que, assim como o selo Sereia, são editados pelo escritor Ademir Demarchi com um coletivo de colaboradores.
O primeiro título da coleção é o livro Voo de identidade, um sobrevoo poético sobre as Linhas de Nasca, série de inscrições de dimensões gigantescas desenhadas no deserto peruano antes da Era Cristã. Com sua poesia, Limache venceu o principal prêmio literário de seu país, o Copé de Oro e, apaixonado por poesia brasileira, traduziu em 2009 Preparativos de viagem, de Mário Quintana.
O livro foi feito com papelão catado nas ruas e teve as capas elaboradas uma a uma por Ademir Demarchi, Alessandro Atanes, Carmem Lúcia Brandalise e Paulo de Toledo; impressão por Alessandro Atanes e Marcelo Ariel e encadernação feita por Ademir Demarchi. O desenvolvimento do selo será feito no ano que vem [2011] pelo coletivo do Centro Camará com jovens atendidos pela instituição.






Títulos publicados até agora:

Voo de identidade (edição bilíngue), de Óscar Limache


HI-KRETOS e outras abstrações, de Paulo de Toledo


A morte de Herberto Hélder e outros poemas, de Marcelo Ariel


Olho por olho, de Regina Alonso


O amor é lindo, de Ademir Demarchi


Mal d'orror, de Paulo Franchetti


Oco do mundo, de Marco Aurélio Cremasco


O subidor de montanhas, de Mauro Faccioni


Dedo-de-moça, de Carlos Vogt


Este lado para cima, de Leila Guenther

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Ilha das Flores

De Jorge Furtado

quinta-feira, 2 de junho de 2011

O jogo favorito

Breavman conhece uma garota chamada Shell cujas orelhas foram furadas de tal forma que ela poderia usar longos brincos de filigranas. Os furos infeccionaram e agora ela tem uma minúscula cicatriz em cada lóbulo. Ele as entreviu por trás dos cabelos.
Uma bala rompeu a carne do braço de seu pai enquanto ele se erguia de uma trincheira. Um homem com trombose coronária se conforta em carregar uma ferida tomada em combate.
Na têmpora direita, Breavman possui uma cicatriz que Krantz causou com uma pá. Problemas por causa de um boneco de neve. Krantz queria usar limalha no lugar dos olhos. Breavman era e ainda é contra o uso de materiais estranhos à decoração de bonecos de neve. Nada de cachecóis de lã, chapéus, óculos. Seguindo a mesma tendência, não aprova encaixar cenouras na boca das abóboras esculpidas nem prender orelhas de pepino.
Sua mãe examina o corpo inteiro como uma cicatriz desenvolvida sobre alguma perfeição inicial que ela procurava em espelhos e janelas e calotas de pneu.
As crianças exibem cicatrizes como medalhas. Os amantes as usam como segredos a serem revelados. Uma cicatriz é aquilo que acontece quando o mundo se faz carne.
É fácil exibir um ferimento, as orgulhosas feridas do combate. Difícil é mostrar uma espinha.



(Leonard Cohen, The Favourite Game. A tradução do trecho é minha)

quarta-feira, 18 de maio de 2011

O Livro do Mundo

"Nel suo profondo vidi che s'interna,
legato con amore in un volume,
ciò che per l'universo si squaderna"

["Na sua profundidade vi que se recolhe,
ligado com amor em um volume,
aquilo que pelo universo está desencadernado"]






(Paraíso, Canto XXXIII, 85-87)


























Além de trazer de volta a primorosa tradução do erudito italiano João Trentino Ziller – publicada originalmente em 1953, em Minas Gerais –, esta edição da Divina Comédia de Dante Alighieri, (1265-1321) da Editora Unicamp e da Ateliê Editorial, traz uma apresentação de João Adolfo Hansen e oferece algo inédito ao leitor brasileiro: as ilustrações de Sandro Botticelli, perdidas durante séculos e identificadas somente na década de 1980.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

quarta-feira, 30 de março de 2011

Profissão de fé

Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.

(Graciliano Ramos)

sábado, 26 de março de 2011

A verdade de Sándor Márai

Como eu disse, nós nos gostávamos. E agora vou lhe dizer uma coisa, caso você não saiba: o amor, se for de verdade, é sempre mortífero. Quero dizer que seu objetivo não é a felicidade, o idílio, a mão na mão, o devaneio, até a minha morte, a morte dela, sob a tília em flor, atrás da qual, no alpendre, arde o brilho manso da luminária e o lar resplandece com seu perfume fresco... Isso é a vida, mas isso não é o amor. Ele é uma chama mais sombria, mais perigosa. Um dia vem na vida o desejo de conhecer a paixão exterminadora. Sabe, quando não queremos mais guardar nada para nós mesmos, não queremos que um amor nos proporcione saúde, paz, satisfação, mas queremos ser, por inteiro, ainda que a preço da extinção. Isso vem tarde; muitos não conhecem o sentimento, nunca... Eles são prudentes; não os invejo. E depois existem os glutões e metidos, que apenas experimentam todo pote que passa por eles... Esses são dignos de pena. E ainda existem os decididos e maliciosos, os batedores de carteira do amor, que roubam com a rapidez de um raio um sentimento, selecionam dos recessos do corpo uma fraqueza, e seguem adiante no escuro e na multidão que é a vida, rindo, alegres pela infelicidade alheia. E existem os medrosos e premeditados, que calculam tudo no amor como nos negócios, têm um calendário com tempos delimitados para o amor, vivem segundo anotações precisas. A maioria é assim; são imprestáveis. E depois acontece de um dia compreendermos o que a vida quer com o amor, por que ela deu esse sentimento aos homens... Queria ela um bem?... A natureza não é bondosa. Ela promete a felicidade com esse sentimento? A natureza não precisa dos sonhos humanos. A natureza deseja apenas criar e aniquilar, porque é seu trabalho. É cruel porque tem um projeto e é indiferente porque o projeto se estende além do homem. A natureza presenteou o homem com a paixão, mas exige que esta seja incondicional.
Em toda vida de verdade chega um momento em que mergulhamos numa paixão, como se nos atirássemos nas cataratas do Niágara. E, naturalmente, sem colete salva-vidas. Não acredito nos amores que começam como uma excursão ao piquenique da vida, de mochila e com cantos alegres na mata ensolarada... Sabe, o sentimento transbordante de “festejo” que permeia o início da maioria das relações humanas... Como ele é suspeito! A paixão não festeja. A força sombria que ao mesmo tempo cria e extermina o mundo não espera resposta de quem ela atinge, não se pergunta se ele está bem, não se ocupa muito dos sentimentos humanos de reciprocidade. Dá tudo e exige tudo: a paixão incondicional cuja energia mais profunda é a própria vida e a morte. Não se pode conhecer a paixão de outro modo... e como são poucos os que chegam lá! As pessoas fazem cócegas uma na outra e se acariciam na cama, mentem muito e falseiam os sentimentos, tiram, avarentas, do outro, o que é bom para elas, e da própria felicidade talvez empurrem um resto para o companheiro... E elas não sabem que tudo isso não é paixão. Não é por acaso que na história da humanidade os grandes pares amorosos são cercados pelo respeito quase devotado e perplexo destinado aos heróis, os empreendedores corajosos que em nome de uma questão humana desesperançada e digna arriscaram a pele, literalmente e na realidade, numa empreitada em que a mulher participa exatamente como o homem quando ele parte para reconquistar em combate O Santo Sepulcro. Os amantes corajosos e de verdade também buscam O Santo Sepulcro eterno e misterioso, por ele peregrinam e batalham, por ele se ferem e morrem... que mais eles querem?
Que outro sentido tem a entrega definitiva e sem medo que atira na direção um do outro os atingidos pela paixão fatal? A vida se expressa com força e logo vira as costas, indiferente, aos sacrificados. Em todos os tempos e em todas as religiões os amantes foram respeitados por isso: porque sobem à pira quando desabam nos braços um do outro. Os de verdade, você sabe. Os corajosos, os poucos, os escolhidos. Os demais somente esperam por uma mulher, como um animal subjugado, ou por uma hora entre braços brancos e agradáveis, um agrado à vaidade masculina ou feminina, ou cumprem a exigência de uma lei da disciplina da vida... Isso não é amor.


(Sándor Márai, De verdade. Trad. Paulo Schiller. São Paulo, Companhia das Letras, 2008)

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Uma visão do mundo

(Edward Hopper, Pennsylvania Coal Town)

O céu estava azul. Parecia música. Eu havia acabado de cortar a grama e o cheiro dela impregnava o ar. Isso me faz lembrar das declarações e promessas de amor que conhecemos na juventude. No fim de uma corrida, você se joga na grama ao lado da pista de saibro, quase sem fôlego, e o ardor com que abraça o gramado do colégio é uma promessa que seguirá pelo resto de seus dias. Pensando em coisas pacas, notei que as formigas pretas tinham vencido as formigas vermelhas e estavam retirando os corpos do campo de batalha. Um sabiá passou voando, perseguido por dois galos. O gato estava espreitando um pardal nos arbustos de groselha. Uma dupla de papa-figos passou se bicando e em seguida, a uns trinta centímetros dos meus pés, me deparei com uma cobra cabeça de cobre descascando o último pedaço da pele escura de inverno. O que senti não foi medo nem pavor; foi o choque da minha falta de preparo diante dessa variedade da morte. De repente surgia esse veneno mortal, tão pertencente à natureza quanto a água límpida correndo no riacho, mas era como se eu não tivesse espaço para ele em minhas considerações. Entrei em casa para buscar a espingarda, mas tive então o azar de topar com o mais velho dos meus dois cães, uma cadela que tem medo de armas de fogo. Assim que viu a arma, ela começou a latir e a ganir, atormentada sem dó por seus instintos e anseios. Seus latidos atraíram o outro cão, uma caçador nato, que veio saltando da escada pronto para ir buscar uma lebre ou pássaro, e, seguido pelos dois cães, um latindo de alegria e outro de horror, voltei ao jardim bem a tempo de flagrar a víbora sumindo dentro de um muro de pedra.
Depois disso, fui de carro à cidade, comprei um pouco de semente de grama e então fui ao supermercado da rota 27 para buscar os pãezinhos que minha mulher tinha encomendado. Acho que hoje em dia é bom ter uma câmera para gravar um supermercado numa tarde de sábado. Nossa linguagem é tradicional, um acúmulo de séculos de diálogo. Tirando o formato dos pães, não havia nada de tradicional à vista no balcão de padaria em que precisei aguardar minha vez. Éramos seis ou sete pessoas retidas por um velhinho com uma lista comprida, um pergaminho de compras. Espiando por cima de seu ombro, consegui ler:

6 ovos
hors-d’oeuvres

Ele notou que eu estava lendo o seu documento e o protegeu contra o peito, à maneira de um jogador de cartas cuidadoso. De repente, a música encanada mudou de uma canção romântica para um cha-cha-cha, e a mulher do meu lado começou a mexer timidamente os ombros e a executar uns passinhos de dança. “Gostaria de dançar, madame?”, perguntei. Ela era bem sem graça, mas quando estendi meus braços, ela se encaixou neles e dançamos por um ou dois minutos. Dava para ver que ela gostava de dançar, mas com uma cara daquelas não devia ter muitas oportunidades. Em seguida ela ficou muito vermelha, saiu dos meus braços e foi até o balcão de vidro, onde se pôs a analisar as bombas de creme. Senti que tínhamos dado um passo na direção correta e, depois de pegar os pãezinhos, dirigindo para casa, eu estava exultante. Um policial me parou na esquina da Alewives Lane para dar passagem a um desfile. A primeira a chegar foi uma jovem de botas e shorts que enfatizavam a formosura de suas coxas. Tinha um nariz enorme, usava um colbaque na cabeça e agitava um bastão de alumínio. Foi seguida por outra garota, de coxas ainda mais formosas e fornidas, que marchava com a pélvis tão projetada para a frente em relação ao resto do corpo que sua espinha fazia uma curva estranha. Usava óculos bifocais e parecia terrivelmente entediada pela projeção da pélvis. Uma banda de garotos, contendo aqui e ali um impostor grisalho, veio na retaguarda tocando “The caissons go rolling along”. Não carregavam faixas, não possuíam nenhum objetivo ou rumo discernível e tudo me parecia terrivelmente cômico. Fui rindo no caminho todo até em casa.
Mas minha mulher estava triste.
“Qual o problema, meu bem?”, perguntei.
“É só essa sensação horrorosa de que sou um personagem de um seriado cômico de televisão”, ela disse. “Afinal, sou atraente, sei me vestir, tenho filhos bonitos e estou de bem com a vida, mas tenho uma sensação horrorosa de que podem me desligar.” Minha mulher vive triste porque sua tristeza não é uma tristeza triste, infeliz porque sua infelicidade não é uma infelicidade esmagadora. Ela sofre porque seu sofrimento não é um sofrimento dilacerante e, quando lhe digo que essa infelicidade trazida pela inadequação da infelicidade pode ser um matiz novo no espectro do sofrimento humano, ela não se sente consolada. Oh, às vezes penso em deixá-la. Seria totalmente concebível construir uma vida sem ela nem as crianças, e eu poderia seguir em frente sem o companheirismo de meus amigos, mas não seria capaz de abandonar meus canteiros e jardins, não poderia me separar das portas de tela da varanda, que tanto consertei e pintei, e não posso me divorciar do caminho sinuoso de tijolos que construí ligando a porta lateral da casa às roseiras; e assim, por mais que minhas correntes estejam presas à grama e à tinta da casa, elas me prenderão até que eu morra. Na ocasião, porém, fiquei grato a minha mulher por ter dito o que disse, por haver atestado que as aparências da sua vida tinham o caráter de um sonho. As energias irreprimidas da imaginação haviam criado o supermercado, a víbora e o bilhete dentro da lata de graxa para sapatos. Comparados a isso, meus devaneios tinham a literalidade de um registro contábil de partidas dobradas. Agradava-me pensar que a nossa vida aparente tem o caráter de um sonho e que dentro dos nossos sonhos encontramos as virtudes do conservadorismo. Entrei em casa e encontrei a faxineira fumando um cigarro egípcio roubado e reconstruindo cartas rasgadas que haviam sido jogadas no cesto de lixo.


(John Cheever, 28 contos. Trad. Daniel Galera e Jorio Dauster. São Paulo, Cia das Letras, 2010)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O que li de mais bacana em 2010


1. André BERNARD, Madame Bovary, c'est moi! Trad. Fábio Fernandes. José Olympio, 2005.
2. Thomas BERNHARD, O imitador de vozes. Trad. Sérgio Tellaroli. Companhia das Letras, 2009.
3. Roberto BOLAÑO, Estrela distante. Trad. Bernardo Ajzenberg. Companhia das Letras, 2009.
4. Ray BRADBURY, Zen in the art of writing, Bantam Books, 1992.
5. Le CLÉZIO, Diego e Frida. Trad. Vera Lúcia dos Reis. Record, 2010.
6. Jonathan COE, A chuva antes de cair. Trad. Christian Schwartz. Record, 2009.
7. Alexandra Lucas COELHO, Caderno afegão, Tinta-da-China, 2009.
8. John FANTE, O vinho da juventude. Trad. Robeto Muggiati. José Olympio, 2010.
9. Ted HUGHES, Cartas de aniversário. Trad. Manuel Dias. Relógio D’Água, 2000.
10. Hiromi KAWAKAMI, Quinquilharias Nakano. Trad. Jefferson José Teixeira. Estação Liberdade, 2010.
11. William KENNEDY, Ironweed. Trad. Sérgio Flaksman. Cosac Naify, 2010
12. Jack KEROUAC, Os vagabundos iluminados. Trad. Ana Ban. L&PM, 2007.
13. José Tolentino MENDONÇA, A estrada branca, Assírio & Alvim, 2005
14. Chuck PALAHNIUK, Cantiga de ninar. Trad. Paulo Reis. Rocco, 2004.
15. José Miguel SILVA, Vista para um Pátio seguido de Desordem, Relógio D’Água, 2003.
16. Tzvetan TODOROV, A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. Difel, 2009.
17. Enrique VILA-MATAS, O mal de Montano, Cosac Naify, 2005.
18. Edmund WHITE, O flâneur: um passeio pelos paradoxos de Paris. Trad. Reinaldo Moraes. Companhia das Letras, 2001.
19. Edmund WHITE, Rimbaud: a vida dupla de um rebelde. Trad. Marcus Bagno. Companhia das Letras, 2010.