Tive a alegria de ler em primeira mão e ajudar a revisar esta CARTA DE NIPO-BRASILEIROS E NIPO-BRASILEIRAS pela democracia, organizada, entre outros, por Alexandre Kishimoto.
domingo, 16 de outubro de 2022
Carta aberta de nipo-brasileiros e nipo-brasileiras
terça-feira, 26 de julho de 2022
poema dadaísta tupiniquim tirado de umas manchetes do jornal
Nos 100 anos da Semana de Arte Moderna, um número especial da revista Germina Literatura publicou textos de escritores que dialogassem com o Modernismo. Daqui da retaguarda compus este poema inspirado pela vanguarda dadaísta. Para ver melhor e ver outros, clique aqui.
segunda-feira, 25 de julho de 2022
A forma como descobri as 2 espécies de morte
quando pequena eu tinha coelhos e
eles me fascinavam tanto
que durante o dia todo não desgrudava
deles.
olhava-os sem parar mas jamais me
ocorreu
que eram animais que comiam e foi
assim
que morreram. eu não conseguia
entender por que
isso tinha acontecido se eles sabiam
que
eu os amava. para mim só existia um
tipo
de morte e era de pena ou tristeza.
depois, um tio me perguntou o que eu
dava de
comer aos coelhos e eu achei estranhíssimo.
disse que não lhes dava nada,
perguntaram aos
maiores e todos responderam que se
os bichinhos eram meus, seria de
imaginar que eu os
alimentava. grande comoção pela morte
dos coelhos.
todos acharam que eu era boba e
desnaturada.
eu não me importei, mas pensei
que de agora em diante daria comida a
todas as coisas de que eu gostasse
porque isso queria
dizer que havia duas espécies de
morte: a de
fome e a de pena.
(Cecilia Vicuña, poeta chilena,
traduzida por Marcelo Donoso e por mim)
sexta-feira, 22 de julho de 2022
Harawi para Dona María Andrea Parado
Harawi1
para Dona María Andrea Parado2
Onde
ficou o seu corpo, María Andrea, em que acaso habita? Huamanga chora e meu
rosto se transformou na tuna3 que apodreceu de tanto amadurecer.
Que será de mim?
Onde encontrarei suas tranças prateadas, seu cabelo caboclo e prodigioso? Que direi às nossas filhas para apaziguar seus prantos, suas indagações, seu soluço de cordeiro, elas que perderam a luz que fervia seu sangue, seu sol primeiro?
As velas frias da catedral não servem para lhes dar consolo, de onde virá o calor das mãos que acariciavam gentes e animais, de onde virá meu alento desconsolado?
Diga-me onde deixaram o mapa de seu corpo, a figura diminuta que levava as mensagens pensando em seu povo, de nossas filhas seu afeto e luto.
Sangues de liberdade clamam suas veias, a África pulsa e sapateia uma canção em quéchua. Pressagio desgraças com sua ausência, a casa de pedra ensombrecida, suas sombras procurando seu corpo ao lado da videira que se esparrama como um traço de tinta que ditava aquilo que você não podia escrever. Os ditongos noturnos.
O infernal Carratalá4 abriu bocas em seu corpo, dele caíram sementes, plantas novas e dignas, como o eucalipto que se mexe por causa de ventos novos, com o sangue derramado que continuará tingindo as ruas de Huamanga, Huanta, virão massacres de quem seguir o seu exemplo. Em Cangallo procurarão o sal de suas feridas, o presságio de seu sono eterno.
Sol de insultos clamam por você, caminhos de pedra inconclusa, sopro de Quilcamachay.
Que será de nossa vida sem seus desejos? Quem dará sentido à noite escura, ao encanto de Apu5, ao voo da águia sobre nossos cabrestos?
Arderá seu corpo. O novo grito em sua garganta que encerrou a tortura, a paz das aflições de seu corpo inconfessável.
A visão inebriante de seu martírio. De joelhos seu olhar olhando o céu.
Resignada ao último suplício, murmurando: Venha, mundo novo!
(Julio César Zavala. Tradução minha e de Marcelo Donoso)
1 Harawi: tipo de música e/ou poesia andina
difundido no império inca.
2 María Andrea Parado (1761-1822): mártir
da Independência do Peru. Mestiça, falante de quéchua, foi torturada e morta
por não delatar os companheiros revoltosos. Não sabendo escrever, ditava cartas
enviadas aos guerrilheiros com informação sobre a movimentação dos inimigos.
3 Tuna: fruta típica peruana.
4 Carratalá: General José Carratalá,
comandante das forças de repressão contra os que lutavam pela Independência.
Incendiou e arrasou povoados como Cangallo.
5 Apu: do quéchua senhor; espírito das montanhas.
quinta-feira, 21 de julho de 2022
Tio Vânia em Hiroshima, mon amour
Ainda não sei se Drive
my car, de Ryûsuke Hamaguchi, Oscar de melhor filme estrangeiro de 2022, é o filme mais japonês
ou mais russo que já vi, ou se, por ambos os motivos, é o mais universal.
Em tempos:
1. Foi o filme em que mais vezes vi
pronunciada uma palavra que os japoneses evitam: não (iê);
2. O nome da personagem feminina que
paira sobre o filme inteiro tem um nome (Oto) que, associado ao
tratamento respeitoso japonês (sam),
parece, aos meus ouvidos, se transformar em outra palavra (otosan), pai, que é o que falta à jovem motorista; oto também significa som, como me lembrou uma amiga, algo
chave na obra;
3. O título Drive my car é nome de uma música dos Beatles que não é tocada no filme
(baseado no conto “Homens sem mulheres”, de Haruki Murakami, que possui um romance
cujo título é também o nome de uma canção dos Beatles, como lembrou outro amigo);
4. A vida que o vermelho confere a um ser inanimado, no cinza do filme, me lembrou o que Wim Wenders, apaixonado pelo cinema japonês, fez com os objetos de Paris, Texas;
4. Colocar numa peça sobre o nada (Tio Vânia) - numa montagem em que são
falados vários idiomas - uma atriz muda, que se expressa pela linguagem dos
sinais, é tão significativo quanto belo;
5. Tudo na vida é teatro.
quinta-feira, 23 de junho de 2022
O karma da física
Karma, em sânscrito, significa “ação”. Algumas vertentes do budismo, especialmente o Zen, incorporaram a noção de karma como causalidade, ou seja, uma relação de causa (ação) e efeito (reação). Não é destino, algo predeterminado, imutável, escrito nas estrelas, que cai como um castigo divino sobre nossas cabeças. Está mais para as leis da física: se alguém tem uma arma de fogo em casa e brinca com ela, tem mais probabilidade de sofrer ou provocar um acidente com ela do que quem não tem arma de fogo em casa. Tampouco se trata de uma lei moral. Assim, da mesma forma, se alguém cortar meu pescoço com uma faca, sairá sangue, por melhor que eu seja. Esta lei atinge a todos, indistintamente, mesmo aqueles que se acreditam superiores aos demais ou especiais e que, por isso, acham que nada lhes acontecerá e que não têm nunca de responder às consequências de seus atos - a física e o budismo nos mostram que estamos o tempo todo submetidos às leis da causalidade, do karma: quem planta erva venenosa não colhe alface.
quarta-feira, 22 de junho de 2022
Navegando para Bizâncio
I
Ali os velhos não têm vez. Gente jovem
Reunida, os pássaros cantando nas árvores
— Essas gerações que
se acabam —,
Rios de salmão, mares de anchova,
Garoupa, gado ou galinha, festejando o verão inteiro
O que nasce, se desenvolve e morre.
No baile todo mundo esquece
A sabedoria que não some.
II
Um velho não vale nada,
É só um trapo de bengala, a menos
Que bata palma, cante e se esgoele
Para cada farrapo do seu paletó usado;
Não há nem escola de canto, só o estudo
Dos monumentos de sua própria grandeza;
Por isso naveguei até chegar
Na cidade santa de Bizâncio.
III
Vocês, entendidos do fogo sagrado de Deus,
Que brilha como as pastilhas da parede,
Saiam dessa ciranda em volta da fogueira
E sejam os mestres cantores de minha vida.
Queimem meu coração doido de desejo
Que amarrado a um animal moribundo
Não sabe o que é; me prendam
Na arapuca da eternidade.
IV
Longe da natureza nunca vou modelar
Minha carapaça a partir de coisa natural,
Mas do jeito que os ourives gregos
Forjam o ouro e com ele banham o metal
Para manter acordado o Imperador dorminhoco;
Ou vou cantar aboletado num galho de ouro
Para essas pessoas da sala de jantar
O que passou, o que passa e o que vai passar.
(W. B. Yeats, tradução minha)
terça-feira, 14 de junho de 2022
Um teto todo nosso
No dia 12 de junho estive na Feira de Livros do Pacaembu para participar da foto que reuniu mais de 400 escritoras, iniciativa de mulheres como a Natalia Timerman, e estava na primeira página da Folha de S. Paulo do dia 13. Em um determinado momento, quando já havia uma multidão de escritoras no estádio, entraram os coletivos de escritoras negras, com cartazes de “Mulheres negras importam”. Neste instante, todas as mulheres lá dentro começaram a aplaudi-las imediatamente, de uma vez, de forma frenética. Acho que todas nós sentimos a mesma coisa: a aclamação foi algo instintivo, impulsivo, orgânico. Veio de dentro de cada uma de nós para desembocar numa força coletiva que talvez nem conhecêssemos. De todo o ato lindo que culminou na foto histórica, este para mim foi o momento mais bonito. Eu chorei.
Aqui estamos, vivas.
segunda-feira, 6 de junho de 2022
De trovador para trovador
BRIGHTON DOS SONHOS
Tom Waits cantando – eu o escuto
estou numa casa de
shows – me colocaram
numa apresentação para
uma grande plateia
minha apresentação foi
boa – não posso
vê-lo – estou no
camarim – mas posso ouvi-lo –
sua música começa – e
é tão
bonita e original e
sofisticada – tão
melhor
que a minha - um misto
de
aspereza e doçura –
moderna e sentimental
– até o Kitsch usado
com tanta habilidade –
queria
poder fazer isso –
então ele
começa a cantar – tão
bem –
desço para escutá-lo –
imaginando uma grande
multidão de adoradores
– mas
ele está cantando numa
pequena sala
com metade da lotação
– uma espécie
de auditório
secundário – vamos embora
ele põe seu braço em
volta
do meu ombro – ele
parece
bem – um pouco abatido
–
um pouco mais velho –
mas em total
posse de si mesmo
(Leonard Cohen, tradução minha)
terça-feira, 17 de maio de 2022
No princípio era o Som, e o Som estava com Ela, e o Som era Ela
Como todos os adolescentes que gostavam de rock
e música alternativa nos anos noventa, eu conhecia o trabalho da islandesa Björk
por causa da banda em que tocou, The Sugarcubes. Apesar de conhecer de antes a
exuberância de sua voz, só passei a realmente admirá-la em sua carreira solo. E
não foi nem no primeiro álbum, Debut, mas a partir do terceiro, Homogenic, que
escutei há quase vinte e cinco anos. Então minha vida se dividiu entre a.H. e
d.H. (o h aí de Homogenic).
A primeira música que ouvi do álbum foi “Bachelorette”,
e eu tive aquela sensação que tenho muito de vez em quando de que não poderia
mais viver sem aquilo. Algumas canções me trouxeram isso ao longo dos anos. Não
se trata de adorá-la, de ficar com ela martelando na cabeça, de achá-la bonita.
É outra coisa: é a certeza de que ela causou uma ruptura tal na ordem das
coisas que a vida se transformou. Que eu me transformei. “Soukora”, de Ali
Farka; “The sheltering sky” de Ryuichi Sakamoto; “Jisas Yu Holem Hand Blong Mi”,
do Choir of All Saints, da Melanésia, são algumas delas, junto com a já citada
da Björk.
Parece mais claro para mim que, a partir de
Homogenic, surge um paradoxo: nada mais haveria de novo sob o sol e, ao mesmo
tempo, tudo poderia ser completamente novo, as possibilidades musicais seriam infinitas.
Pelo menos para ela, que, além da própria Voz, também incorporou poemas de e.e. cummings, corais esquimós (inuit),
sons de pássaros gravados por um ornitólogo francês, orquestras, toda a tecnologia da
música eletrônica, músicos de todas as partes (como o vocalista, poeta, meditador e visionário Thom Yorke, do Radiohead) e instrumentos musicais cujo som incompreensível e inédito para mim me remete àquele que sairia do instrumento de Maiakóvski, que dizia executar seus versos na flauta
de suas próprias vértebras. A única coisa que não muda nunca em Björk, desde
criança, é sua voz, porque não há como aprimorar a perfeição.
Björk
carrega tudo o que já passou, todas as vozes humanas e não humanas do mundo para
transformá-las em algo que não alcançaremos jamais, porque não podemos estar onde
ela está, ou seja, constantemente a anos-luz de nós, do nosso presente. Estaremos
sempre atrás, contemplando hoje o rastro luminoso de um cometa que já passou
por aqui há muito e que, como é da natureza dos cometas, guarda a história do
universo inteiro.
Parafraseando o provérbio ioruba, Björk criou o Som ontem com a Voz que inventou amanhã.
sábado, 23 de abril de 2022
quarta-feira, 16 de março de 2022
A culpa é dos pratos
A culpa é dos pratos
Que me destruíram
Mesmo quando poucos
São mais do que eu
Mesmo quando me lembro
Do mestre vietnamita
Que morreu lutando pelo amor
E que dizia
“Enquanto estivermos lavando os pratos
Deveríamos apenas lavar os pratos”
Não posso mais vencer os pratos
Que me ultrapassam e
me reduzem a cacos
Mesmo quando dormem pacíficos
No armário de madeira
Para que tanto prato, meu Deus,
Pergunta meu coração
Porém meus olhos
Vocês já sabem
Então vem alguém
Que lava os pratos quando eles me
atacam
E me lembra que perto
Bem perto
Há quem não tenha pratos para lavar
Nem o que pôr dentro deles
E aí me envergonho
De querer arremessá-los pela janela
Contra a parede
Ou contra os homens
Com toda a força
Que não tive para lavá-los.
(Leila Guenther)
Es culpa de los platos
Que me han destruido
Aun siendo pocos
Son más de lo que soy
Aun cuando me acuerdo
Del maestro vietnamita
Que murió luchando por el amor
Y que decía
“Mientras estamos lavando
platos
Debemos sólo lavar platos”
Ya no puedo vencer a los
platos
Que me sobrepasan y me hacen
pedazos
Aun cuando duermen pacíficos
En el mueble de madera
Para qué tantos platos, Dios
mío,
Pregunta mi corazón
Pero mis ojos*
Ustedes ya lo saben
Entonces alguien viene
Y lava los platos cuando sufro
su ataque
Y me recuerda que aquí cerca
Muy cerca
Hay quien no tiene platos que
lavar
Ni qué ponerles adentro
Y entonces me avergüenzo
De querer tirarlos por la
ventana
Contra la pared
O contra los hombres
Con toda la fuerza
Que no he tenido para lavarlos.
(traducción de Marcelo Donoso)
* Referencia a poema de Carlos
Drummond de Andrade