terça-feira, 26 de julho de 2022

poema dadaísta tupiniquim tirado de umas manchetes do jornal

Nos 100 anos da Semana de Arte Moderna, um número especial da revista Germina Literatura publicou textos de escritores que dialogassem com o Modernismo. Daqui da retaguarda compus este poema inspirado pela vanguarda dadaísta. Para ver melhor e ver outros, clique aqui.




segunda-feira, 25 de julho de 2022

A forma como descobri as 2 espécies de morte

quando pequena eu tinha coelhos e eles me fascinavam tanto

que durante o dia todo não desgrudava deles.

olhava-os sem parar mas jamais me ocorreu

que eram animais que comiam e foi assim

que morreram. eu não conseguia entender por que

isso tinha acontecido se eles sabiam que

eu os amava. para mim só existia um tipo

de morte e era de pena ou tristeza.

depois, um tio me perguntou o que eu dava de

comer aos coelhos e eu achei estranhíssimo.

disse que não lhes dava nada, perguntaram aos

maiores e todos responderam que se

os bichinhos eram meus, seria de imaginar que eu os

alimentava. grande comoção pela morte

dos coelhos.

todos acharam que eu era boba e desnaturada.

eu não me importei, mas pensei

que de agora em diante daria comida a

todas as coisas de que eu gostasse porque isso queria

dizer que havia duas espécies de morte: a de

fome e a de pena.

 

(Cecilia Vicuña, poeta chilena, traduzida por Marcelo Donoso e por mim)





sexta-feira, 22 de julho de 2022

Harawi para Dona María Andrea Parado

 


Harawi1 para Dona María Andrea Parado2


Onde ficou o seu corpo, María Andrea, em que acaso habita? Huamanga chora e meu rosto se transformou na tuna3 que apodreceu de tanto amadurecer.

Que será de mim?

Onde encontrarei suas tranças prateadas, seu cabelo caboclo e prodigioso? Que direi às nossas filhas para apaziguar seus prantos, suas indagações, seu soluço de cordeiro, elas que perderam a luz que fervia seu sangue, seu sol primeiro?

As velas frias da catedral não servem para lhes dar consolo, de onde virá o calor das mãos que acariciavam gentes e animais, de onde virá meu alento desconsolado?

Diga-me onde deixaram o mapa de seu corpo, a figura diminuta que levava as mensagens pensando em seu povo, de nossas filhas seu afeto e luto.

Sangues de liberdade clamam suas veias, a África pulsa e sapateia uma canção em quéchua. Pressagio desgraças com sua ausência, a casa de pedra ensombrecida, suas sombras procurando seu corpo ao lado da videira que se esparrama como um traço de tinta que ditava aquilo que você não podia escrever. Os ditongos noturnos.

O infernal Carratalá4 abriu bocas em seu corpo, dele caíram sementes, plantas novas e dignas, como o eucalipto que se mexe por causa de ventos novos, com o sangue derramado que continuará tingindo as ruas de Huamanga, Huanta, virão massacres de quem seguir o seu exemplo. Em Cangallo procurarão o sal de suas feridas, o presságio de seu sono eterno.

Sol de insultos clamam por você, caminhos de pedra inconclusa, sopro de Quilcamachay.

Que será de nossa vida sem seus desejos? Quem dará sentido à noite escura, ao encanto de Apu5, ao voo da águia sobre nossos cabrestos?

Arderá seu corpo. O novo grito em sua garganta que encerrou a tortura, a paz das aflições de seu corpo inconfessável.

A visão inebriante de seu martírio. De joelhos seu olhar olhando o céu.

Resignada ao último suplício, murmurando: Venha, mundo novo!

(Julio César Zavala. Tradução minha e de Marcelo Donoso)

 

1 Harawi: tipo de música e/ou poesia andina difundido no império inca.

2 María Andrea Parado (1761-1822): mártir da Independência do Peru. Mestiça, falante de quéchua, foi torturada e morta por não delatar os companheiros revoltosos. Não sabendo escrever, ditava cartas enviadas aos guerrilheiros com informação sobre a movimentação dos inimigos.

3 Tuna: fruta típica peruana.

4 Carratalá: General José Carratalá, comandante das forças de repressão contra os que lutavam pela Independência. Incendiou e arrasou povoados como Cangallo.

5 Apu: do quéchua senhor; espírito das montanhas.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Tio Vânia em Hiroshima, mon amour

Ainda não sei se Drive my car, de Ryûsuke Hamaguchi, Oscar de melhor filme estrangeiro de 2022, é o filme mais japonês ou mais russo que já vi, ou se, por ambos os motivos, é o mais universal.

Em tempos:

1. Foi o filme em que mais vezes vi pronunciada uma palavra que os japoneses evitam: não ();

2. O nome da personagem feminina que paira sobre o filme inteiro tem um nome (Oto) que, associado ao tratamento respeitoso japonês (sam), parece, aos meus ouvidos, se transformar em outra palavra (otosan), pai, que é o que falta à jovem motorista; oto também significa som, como me lembrou uma amiga, algo chave na obra;

3. O título Drive my car é nome de uma música dos Beatles que não é tocada no filme (baseado no conto “Homens sem mulheres”, de Haruki Murakami, que possui um romance cujo título é também o nome de uma canção dos Beatles, como lembrou outro amigo);

4. A vida que o vermelho confere a um ser inanimado, no cinza do filme, me lembrou o que Wim Wenders, apaixonado pelo cinema japonês, fez com os objetos de Paris, Texas;

4. Colocar numa peça sobre o nada (Tio Vânia) - numa montagem em que são falados vários idiomas - uma atriz muda, que se expressa pela linguagem dos sinais, é tão significativo quanto belo;

5. Tudo na vida é teatro.