quinta-feira, 28 de maio de 2009

"A fera" na Universidade do Texas

Ivan Teixeira, professor da Universidade do Texas e da Universidade de São Paulo, fala de um curso sobre o Conto Brasileiro, que ele ministrou recentemente nos EUA:

Prezada Leila,
Como vai, tudo bem?
Escrevo para dar um alô sobre a leitura de seu conto "A Fera", na turma de graduação em que acabo de dar um curso intitulado "Brazilian Short Story". O curso foi em português. Seu propósito era fornecer uma visão de conjunto sobre a instauração e prática do conto no Brasil. Foram lidos textos de Álvares de Azevedo, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Antônio de Alcântara Machado, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan e seu. Foi lido também uma estória de Poe. Na verdade, além de fornecer um panorama dessa prática textual no Brasil, pretendeu-se fornecer elementos teóricos sobre análise e interpretação do texto literário.
Foi um curso muito funcional e alegre. Os alunos, no geral, são ótimos e gostam de ler em português. Só havia um aluno brasileiro. Os demais eram americanos, de origem latina ou anglo-saxônica.
Por coincidência, o tema da solidão foi trazido à baila, visto que tínhamos lido "A Terceira Margem do Rio" e "O Búfalo". Digo coincidência da escolha de três textos sobre o mesmo motivo. Mas falar da misantropia parece inevitável diante de seu belo texto. A voz isolada de "A Fera" foi associada ao discurso existencial das duas outras personagens afastadas do entendimento com as pessoas. O que mais chamou a atenção foi choque entre realidade e fantasia, donde a discussão se dirigiu para a verdadeira identidade da figura da caixa.
Não tendo a forma de narrativa propriamente dita, o conto foi entendido como uma espécie de "baby annoucement", que é um tipo de texto que as pessoas escrevem para anunciar o nascimento de alguém querido. No caso, o nascimento da paixão do misantropo pela companhia, por quem ele sente, agora, forte apego, embora diga o contrário.
Falou-se também da hipótese de que o texto, sem contar uma estória, procura analisar uma situação que, enfim, não é tão estática quanto parece. Como a situação é interiorizada, concluiu-se que é possível entender o texto como conto de personagem, no sentido de fazer decorrer sua singularidade das propriedades psicológicas de uma figura ímpar.
Por fim, falou-se da possível adequação entre o estilo sereno e sóbrio e a temática da auto-análise de um solitário que se afasta da vizinhança como possível forma de preservação da identidade. Em seguida, observamos que o relato dele é oblíquo, pois sugere o contrário do que afirma. Surgiu, aí, a hipótese de que a ironia melancólica seria uma possível caracterização para definição da figura de retórica que suporta o conto.
Deixo esse micro-relatório despretensioso como forma de agradecimento pela oferta do conto.
Abraço cordial,
Ivan.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Se Dexter Gordon cantasse

Quando à noite ofereço um pouco de whisky a Turíbio, estendendo meu copo em direção a seu nariz, ele vira a cabeça para o lado, num gesto de desprezo. Mas não se afasta, porque sabe que a música vai começar.
Então nos pomos a escutar as diversas versões de “’Round Midnight”. Depois de o whisky fazer algum efeito, imito Dexter Gordon, no filme homônimo, quando, olhando para um bêbado que acabou de cair para trás, pede ao barman, com sua voz rouca e mole: “Quero tomar o que esse aí tomou”.
Turíbio tem a felicidade de só precisar da música: em pouco tempo ele já está em paz, dormindo, com sua imensa cabeça de buldogue apoiada sobre minhas coxas.

(Leila Guenther)

Náusea em alto-mar

Preciso dizer isso. Tenho pressa. Quando tudo se confunde, se os motivos deste vagar constante se perdem, quando não sei mais se busco alguém ou se outro me persegue, então me lembro de você. Poderia ser este o motivo, talvez seja. Esta viagem não tem nome, nem destino, mas você foi sócia deste itinerário. Até ir embora, ou me impelir a ir. Falo sem mágoa, nem poderia ser diferente. Fiz uma escolha. Não tenho medo de ficar só. O nome disso é tristeza. Te vejo ir e sei que fui eu quem causou este estranhamento, fui eu que soltei sua mão quando você tentava me segurar. Senti seus dedos escorrendo por minha pele, o contato frio e úmido. Evitei olhar em seus olhos, sabia que os encontraria também úmidos. Sei desta dor porque também a sinto. E por que fiz isto? Me pergunto neste momento em que sua imagem se distancia, sem palavras. Você foi embora, para o refúgio de sua casa, ou se mudou de cidade, qualquer coisa longe de mim. Os caminhos se afastaram, e me pergunto como deixei que se fosse alguém que gosto tanto. A pulsão da vida me assalta, me faz prisioneiro de vontades tolas, me desgoverna. Refaço minha história a cada minuto, ainda que me custe um bocado. Sigo atrás de uma alegria que quase vem, quase, e que eu insisto em buscar. Piso um chão movediço, me delicio com suas armadilhas, rio e choro pelos mesmos motivos, sou pura contradição. Te quero e te deixo ir. Vivo hoje, quem sabe de mim amanhã? Vou pegar meu barco, minha nau trôpega, com suas velas atrevidas e frágeis, e vou seguir viagem. Vou em busca de um destino, uma razão que justifique a travessia, um lugar em que possa atracar – ainda que por pouco tempo. Sei pouco do mundo, mas acaricio uma certeza: as águas que me levam não passam mais por sua cidade.


(José Eduardo Gonçalves. Vertigem. Rio de Janeiro, Record, 2003)

Entre a Diversidade e a Identidade: Segundo Encontro com a Literatura Brasileira Contemporânea

Programa

1. Literatura Brasileira Contemporânea e Poesia (30/08/09)
a. Alberto Martins
b. Edner Morelli
mediador: Maurício Silva

2. Literatura Brasileira Contemporânea e Romance (06/09/09)
a. Lourenço Mutarelli
b. Santiago Nazarian
mediador: Joel Rosa

3. Literatura Brasileira Contemporânea e Conto (13/09/09)
a. Bruno Zeni
b. Leila Guenther
mediador: Rita Couto

4. Literatura Brasileira Contemporânea e Webliteratura (20/09/09)
a. Sandra Souza
b. Edson Cruz
mediador: Selma Tuareg



Horário e Local
Memorial da América Latina (Sala dos Espelhos)
Dias 30/08; 06/09; 13/09; 20/09
Sábado, das 10h. às 12h.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Trança de poemas

Há uma mulher a morrer sentada
Uma planta depois de muito tempo
Dorme sossegadamente
Como cisne que se prepara
Para cantar

Ela está sentada à janela.
Sei que nunca
Mais se levantará para abri-la
Porque está sentada do lado de fora
E nenhum de nós pode trazê-la para dentro

Ela é tão bonita ao relento
Inesgotável

É tão leve como um cisne em pensamento
E está sobre as águas
É um nenúfar, é um fluir já anterior
Ao tempo

Sei que não posso chamá-la das margens

(Daniel Faria)


lua entre folhas
nada
mais
não fosse a procura
de crateras
no coração

saudade de tudo:
sol e criança desconhecida
na janela de um ônibus

olho mudo
deixado em jardim
que nunca mais será visto

dor que começa
em todo último minuto
e estica-se magra
amarga lágrima
de tudo

(Ricardo Lima)

Os detetives perdidos na cidade escura.
Ouvi seus gemidos.
Ouvi seus passos no Teatro da Juventude.
Uma voz avançando como uma flecha.
Sombra de cafés e parques
Frequentados na adolescência.
Os detetives que observam
Suas mãos abertas,
O destino manchado com seu próprio sangue.
E você não pode nem mesmo se lembrar
Onde estava a ferida,
Os rostos que você amou um dia,
A mulher que salvou a sua vida.

(Roberto Bolaño, trad. de Rodrigo Garcia Lopes)

sexta-feira, 8 de maio de 2009

A música que inspirou meu conto "Avalanche"

Well I stepped into an avalanche,
it covered up my soul;
when I am not this hunchback that you see,
I sleep beneath the golden hill.
You who wish to conquer pain,
you must learn, learn to serve me well.
You strike my side by accident
as you go down for your gold.
The cripple here that you clothe and feed
is neither starved nor cold;
he does not ask for your company,
not at the centre, the centre of the world.

When I am on a pedestal,
you did not raise me there.
Your laws do not compel me
to kneel grotesque and bare.
I myself am the pedestal
for this ugly hump at which you stare.

You who wish to conquer pain,
you must learn what makes me kind;
the crumbs of love that you offer me,
they're the crumbs I've left behind.
Your pain is no credential here,
it's just the shadow, shadow of my wound.

I have begun to long for you,
I who have no greed;
I have begun to ask for you,
I who have no need.
You say you've gone away from me,
but I can feel you when you breathe.

Do not dress in those rags for me,
I know you are not poor;
you don't love me quite so fiercely now
when you know that you are not sure,
it is your turn, beloved,
it is your flesh that I wear.
(Leonard Cohen, "Avalanche")



A última vez que a garota veio vê-lo parecia fazer tanto tempo que, por fúria ou em sinal de castigo, ele mordeu suas costas até deixar nelas várias manchas circulares, assim desenhadas por causa dos arcos dos dentes, e que, por sua vez, formavam um outro círculo, maior e mais perfeito, urdido com a simetria dos que acreditam no método acima de tudo. Ela aceitou a fúria, ou o castigo, com olhos semicerrados e as sobrancelhas franzidas dos sofredores, erguendo, enquanto isso, o quadril livre das manchas como uma tela em branco, esperando a destreza dos dentes nas nádegas, embora estas nunca, nunca mesmo, por mais forte que fosse a violência recebida, exibissem quaisquer sinais de maus-tratos. “Feitas para apanhar”, dizia ele das nádegas, desejando tomar a parte pelo todo. Hoje ela está atrasada e por um momento ele suspeita que ela não venha, que não venha nunca mais. Depois, entre um gole e outro de alguma bebida, ele se anima e acredita que sim, que ela virá, que, ali, no lugar que erigiram para a profanação, o espaço exíguo de uma cama, ela precisa tanto do sofrimento quanto ele precisa ferir. Não se trata de um sofrimento qualquer, infligido a qualquer um que o suporte, mas nela, que, apesar das fortes nádegas, não é nem jamais foi, e ele o sabe, talhada para a dor. O que ela suporta, pois, é como o heroísmo dos queimados vivos. Ela tampouco permitiria que outro a ferisse, porque ele, com seu método, tem a medida exata ao calcular o peso que depositará nas próprias mãos, grossas e largas, feitas para espancar, quando o chicote descreve no ar uma parábola, e só a ele, que lhe descobriu a vocação servil, cabe o direito à propriedade. Enquanto aguarda, ajeita delicadamente no aparador da entrada o maço de flores que comprou para ela, cantando repetidas vezes os versos you who wish to conquer pain,you must learn what makes me kind... com todas as suas variantes, e imagina-a entrando porta adentro, esbaforida, correndo para beijá-lo, tropeçando nos móveis, cheirando as flores e falando da visceralidade do último filme a que assistiu, do livro que está lendo, do poema que tentou escrever, sempre viscerais como o filme, porque essa é a única coisa que a atrai na arte. Eles conversarão então sobre livros e ele lerá, a pedido dela, mais algum capítulo de um romance interrompido na última vez. Beberão vinho e irão para a cama, onde costumam passar horas seguidas dedicados não apenas ao estetismo de seus corpos mas às trivialidades do cotidiano, às memórias vividas, que não raro despertam lágrimas e um poderoso sentimento de redenção. No começo, ela lhe beijará os pés por entre os dedos, deixando um pequeno rastro de saliva na superfície sinuosa, para depois se deitar sobre o peito dele, brincando com seus pêlos, devagar, como se já ensaiasse o sono que os afastaria. Ele a apertará contra si num gesto quase brusco, como que para despertá-la, cravando as unhas em suas costas até que no rosto dela se possa ver, com o canto do olho, a expressão de mártir. Com rapidez, alcançará uma sacola embaixo da cama, onde guarda o chicote, as cordas, correntes e algemas. Já não percebe a progressão na intensidade dos seus gestos que, de um tempo para cá, têm feito mais altos os gritos dela e mais duradouras as feridas. Com uma longa corrente, ele a amarrará dos pulsos erguidos no alto da cabeça aos tornozelos, criando motivos geométricos cuja intersecção se dá entre os seios, sobre o ventre e no meio das coxas. Apertará os mamilos com pregadores de roupas que ela recusará num primeiro momento, mas que, logo em seguida, ela mesma irá alcançar e estender-lhe com a boca, para seu regozijo. Ainda presa, mas com os seios soltos, terá seu corpo, incapaz de movimento, virado de bruços e espancado até a exaustão dos braços dele. Ele, logo que detiver os olhos em suas costas, admirará todos os ferimentos que causou, pensando que ela, sem dúvida, fica muito mais bonita assim, com o sangue na superfície da pele agora avermelhada corando sua eterna palidez de morta. Mas à dolorosa contração dela ao seu toque de carinho, será tomado pelo desespero dos sonâmbulos que despertam depois do crime. Arrependido, ele se amaldiçoará, ensejando o movimento de recolher todos os instrumentos do sortilégio e levá-los para o lixo, na impossibilidade de arremessar lá, também, as próprias mãos. Ela o deterá, advogando que antes o sofrimento na cama do que fora dela, e ele, por fim, instaurando o momento em que o ideal de cada um, tão oposto mas tão complementar, conflui para um mesmo ponto, cuidará de suas feridas, uma a uma, com zelo de samarita. Se ela vier.

(Leila Guenther, O vôo noturno das galinhas. Ateliê Editorial, 2006)

O vinho de Nick Tosches

A nossa era é, cada vez mais, a era do pseudoconhecimento, o modo pelo qual tentamos tolamente nos diferenciar da maioria medíocre. Sentar-se ao redor de uma garrafa de suco azedo, falando de toques delicados de groselha-preta, fumaça de carvalho, trufas ou de qualquer outro absurdo refinado que a natureza teria usado para enriquecer o seu sabor é ser um cafone de primeira grandeza. Porque, se há algum toque delicado a ser percebido em qualquer vinho, é provável que seja o de pesticida e esterco. Sobre um Château Margaux 1978, um connaisseur pronuncia: “Após uma hora exposto ao ar, este vinho desabrocha, revelando aromas de cassis doce, chocolate, violetas, tabaco e doce baunilha acarvalhada. Em cerca de dez anos, este vinho pode evoluir para a clássica mistura Margaux de cassis, trufas negras, violetas e baunilha”. Como se isso não fosse absurdo o bastante, “um traço de pimentão se esconde no cassis”.
Como um nariz tão sofisticado pode não ter detectado a merda de vaca com a qual essa celebrada propriedade de Bordeaux fertiliza suas videiras? Um verdadeiro conhecedor de vinhos, se tal coisa existisse, detectaria o pesticida e o esterco antes de tudo: ele não seria um goûteur de vin, e sim um goûteur de merde. Mas não existe conhecimento real de vinho sem ser o daqueles que sabem que a verdadeira alma do vinho, l’âme du vin, é o vinagre. Só saboreia realmente maravilhas quem bebe, puros, aqueles raros vinagres envelhecidos, denominados da bere: a coisa pra valer, um néctar bem distante do suco glorificado dessa indústria de adjetivos e falsidade, que já foi a bebida simples e nobre de camponeses simples e nobres – bem mais nobres e conhecedores do que os otários endinheirados de hoje em dia, engambelados a acreditar que a degustação de vinho pede mais palavras do que “bom”, “ruim” ou “cala essa boca e bebe logo”.


(Nick Tosches, A última casa de ópio. Trad. Michele de Aguiar Vartuli. São Paulo, Conrad, 2006)