sexta-feira, 8 de maio de 2009

A música que inspirou meu conto "Avalanche"

Well I stepped into an avalanche,
it covered up my soul;
when I am not this hunchback that you see,
I sleep beneath the golden hill.
You who wish to conquer pain,
you must learn, learn to serve me well.
You strike my side by accident
as you go down for your gold.
The cripple here that you clothe and feed
is neither starved nor cold;
he does not ask for your company,
not at the centre, the centre of the world.

When I am on a pedestal,
you did not raise me there.
Your laws do not compel me
to kneel grotesque and bare.
I myself am the pedestal
for this ugly hump at which you stare.

You who wish to conquer pain,
you must learn what makes me kind;
the crumbs of love that you offer me,
they're the crumbs I've left behind.
Your pain is no credential here,
it's just the shadow, shadow of my wound.

I have begun to long for you,
I who have no greed;
I have begun to ask for you,
I who have no need.
You say you've gone away from me,
but I can feel you when you breathe.

Do not dress in those rags for me,
I know you are not poor;
you don't love me quite so fiercely now
when you know that you are not sure,
it is your turn, beloved,
it is your flesh that I wear.
(Leonard Cohen, "Avalanche")



A última vez que a garota veio vê-lo parecia fazer tanto tempo que, por fúria ou em sinal de castigo, ele mordeu suas costas até deixar nelas várias manchas circulares, assim desenhadas por causa dos arcos dos dentes, e que, por sua vez, formavam um outro círculo, maior e mais perfeito, urdido com a simetria dos que acreditam no método acima de tudo. Ela aceitou a fúria, ou o castigo, com olhos semicerrados e as sobrancelhas franzidas dos sofredores, erguendo, enquanto isso, o quadril livre das manchas como uma tela em branco, esperando a destreza dos dentes nas nádegas, embora estas nunca, nunca mesmo, por mais forte que fosse a violência recebida, exibissem quaisquer sinais de maus-tratos. “Feitas para apanhar”, dizia ele das nádegas, desejando tomar a parte pelo todo. Hoje ela está atrasada e por um momento ele suspeita que ela não venha, que não venha nunca mais. Depois, entre um gole e outro de alguma bebida, ele se anima e acredita que sim, que ela virá, que, ali, no lugar que erigiram para a profanação, o espaço exíguo de uma cama, ela precisa tanto do sofrimento quanto ele precisa ferir. Não se trata de um sofrimento qualquer, infligido a qualquer um que o suporte, mas nela, que, apesar das fortes nádegas, não é nem jamais foi, e ele o sabe, talhada para a dor. O que ela suporta, pois, é como o heroísmo dos queimados vivos. Ela tampouco permitiria que outro a ferisse, porque ele, com seu método, tem a medida exata ao calcular o peso que depositará nas próprias mãos, grossas e largas, feitas para espancar, quando o chicote descreve no ar uma parábola, e só a ele, que lhe descobriu a vocação servil, cabe o direito à propriedade. Enquanto aguarda, ajeita delicadamente no aparador da entrada o maço de flores que comprou para ela, cantando repetidas vezes os versos you who wish to conquer pain,you must learn what makes me kind... com todas as suas variantes, e imagina-a entrando porta adentro, esbaforida, correndo para beijá-lo, tropeçando nos móveis, cheirando as flores e falando da visceralidade do último filme a que assistiu, do livro que está lendo, do poema que tentou escrever, sempre viscerais como o filme, porque essa é a única coisa que a atrai na arte. Eles conversarão então sobre livros e ele lerá, a pedido dela, mais algum capítulo de um romance interrompido na última vez. Beberão vinho e irão para a cama, onde costumam passar horas seguidas dedicados não apenas ao estetismo de seus corpos mas às trivialidades do cotidiano, às memórias vividas, que não raro despertam lágrimas e um poderoso sentimento de redenção. No começo, ela lhe beijará os pés por entre os dedos, deixando um pequeno rastro de saliva na superfície sinuosa, para depois se deitar sobre o peito dele, brincando com seus pêlos, devagar, como se já ensaiasse o sono que os afastaria. Ele a apertará contra si num gesto quase brusco, como que para despertá-la, cravando as unhas em suas costas até que no rosto dela se possa ver, com o canto do olho, a expressão de mártir. Com rapidez, alcançará uma sacola embaixo da cama, onde guarda o chicote, as cordas, correntes e algemas. Já não percebe a progressão na intensidade dos seus gestos que, de um tempo para cá, têm feito mais altos os gritos dela e mais duradouras as feridas. Com uma longa corrente, ele a amarrará dos pulsos erguidos no alto da cabeça aos tornozelos, criando motivos geométricos cuja intersecção se dá entre os seios, sobre o ventre e no meio das coxas. Apertará os mamilos com pregadores de roupas que ela recusará num primeiro momento, mas que, logo em seguida, ela mesma irá alcançar e estender-lhe com a boca, para seu regozijo. Ainda presa, mas com os seios soltos, terá seu corpo, incapaz de movimento, virado de bruços e espancado até a exaustão dos braços dele. Ele, logo que detiver os olhos em suas costas, admirará todos os ferimentos que causou, pensando que ela, sem dúvida, fica muito mais bonita assim, com o sangue na superfície da pele agora avermelhada corando sua eterna palidez de morta. Mas à dolorosa contração dela ao seu toque de carinho, será tomado pelo desespero dos sonâmbulos que despertam depois do crime. Arrependido, ele se amaldiçoará, ensejando o movimento de recolher todos os instrumentos do sortilégio e levá-los para o lixo, na impossibilidade de arremessar lá, também, as próprias mãos. Ela o deterá, advogando que antes o sofrimento na cama do que fora dela, e ele, por fim, instaurando o momento em que o ideal de cada um, tão oposto mas tão complementar, conflui para um mesmo ponto, cuidará de suas feridas, uma a uma, com zelo de samarita. Se ela vier.

(Leila Guenther, O vôo noturno das galinhas. Ateliê Editorial, 2006)

Um comentário:

  1. é uma musica que deve ser ouvida pela manhã deitado embaixo de uma arvore olhando as colinas com seus nevoeros sendo consumidos pelo sól;mesmo que não entenda o idioma sente-se a suavidade do silencio.

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