quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Antropoceno


 

Está parecendo que eu odeio a humanidade
Desde que vi as morsas caindo de montanhas
Em que nunca deveriam ter subido
As morsas quicando
Uma, duas, três vezes e caindo estateladas
No meio da multidão de morsas

Na costa da Rússia, eu que nunca estive lá
Chorei como quem passava a amar somente os bichos
E as plantas que cultivo no meu apartamento
Sob um pedacinho de sol
Que os arquitetos deixaram por compaixão
Ou por esquecimento

Soube então que faltavam geleiras às morsas
E que elas agora se viravam nas pedras
Amontoadas, que algumas subiam as montanhas e
O resultado já disse
Elas caem e fica parecendo que eu
Odeio a humanidade

Como se eu não soubesse que gente
Também é bicho
Como se eu não entendesse que é preciso amar
A minha própria espécie
Fica parecendo que eu não compreendo
Que nós caímos quando a morsa cai.

(Adriane Garcia, Estive no fim do mundo e me lembrei de você. Peirópolis)

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Carta aberta ao rei do Butão

Peço asilo em seu país 

Porque o meu desapareceu 

Dizem que se descolou 

Do resto da América 

E começou a afundar

Em breve nos afogaremos todos

Embora sempre há quem ache

Que ele não 

 

Ofereço o que sei e o que posso aprender

Posso trabalhar em benefício

Das crianças mais remotas

Como todos daí fazem 

Em vez do tal serviço militar

 

Posso tirar leite de iaque 

E viver de chá de manteiga 

Mas se Padmasambhava* me orientar, 

Também posso tirar leite de pedra

 

Espero que me conceda 

Como faz a todos os seus cidadãos 

Um tear e um pedaço de terra

Para que eu me fie em algo

E não me afogue nunca mais 

 

No seu serviço de saúde 

Universal e gratuito

Tenho fé que consertem minha cabeça 

Onde mora a pior de todas as enchentes 

 

E não me importo 

Que a caça e a pesca sejam proibidas 

Porque eu mesma já não tenho vontade 

De comer seres que são 

Mais inteligentes do que eu

 

Aí tem tudo, é outra civilização 

Tem monges bonitos pra gente meditar

E um monte de livro

para traduzir de seus Platões

 

Peço asilo ao rei do Butão 

 

Um rei que, na Constituição,

Estabelece ser deposto 

Se não for bom a seu povo 

Não é melhor que um presidente 

Que não quer sair do trono?

 

Mas o que eu gostaria mesmo 

Era de subir na parte mais alta 

Do mosteiro de Taktstang, 

Encarapitado no extremo de uma rocha

Desde que o Desperto acordou

Lá terei certeza de que não me afogarei 

E de que enfim empreenderei meu voo

Com a bênção de todas as dakinis** 

Que caminham sobre o ar

(Leila Guenther)

* Padmasambhava: místico considerado o fundador da escola tântrica do budismo tibetano. A ele eram atribuídas qualidades mágicas, como estar em vários lugares ao mesmo tempo.

** dakinis: deidades femininas do budismo Vajrayana. Significa “aquelas que atravessam o céu” ou “as que se movimentam no espaço”. Estão ligadas à transformação.



(fotografia de Matthieu Ricard, monge budista, biólogo molecular, escritor e fotógrafo)