quarta-feira, 23 de março de 2016

Criando mundos

Como meu material de trabalho é a palavra, a linguagem escrita, sempre me intrigou o funcionamento das artes que lidam com outro tipo de matéria-prima, como a música ou as plásticas. Costumo pensar em mundos criados pelo Verbo. Enredos, tramas, enfim, todo o entrelaçamento de ideias que habita uma cabeça. O trabalho de Paulo Sayeg, no entanto, conta para mim essa mesma história, a história da Criação, mas através da imagem. Não a do mundo como ele é, mas como o Criador o vê. Seu traço perfeito, em vez de estabelecer limites, rasga como uma navalha as fronteiras entre o real, realista, e o irreal, fantástico, mágico, para criar algo que na verdade não é uma coisa nem outra, mas algo único, que tem sua própria verossimilhança, suas próprias regras, uma espécie de universo à parte, ou outra dimensão. Paulo Sayeg é um criador de mundos. E, uma vez que adentramos neles, já não queremos mais sair.

(Texto que escrevi sobre Paulo Sayeg, que ilustrou meu livro de poemas, a propósito da sua exposição na Acierno, que começa hoje)


(ilustração de Paulo Sayeg para Viagem a um deserto interior, Ateliê Editorial, p. 39)

quinta-feira, 10 de março de 2016

El Botón de Nácar

A lembrança cinematográfica mais pungente do ano de 2015 se relaciona com duas imagens de El Botón de Nácar, de Patricio Guzmán, autor do soberbo Nostalgia de la Luz, no qual se traça um paralelo entre povos indígenas da Patagônia que mantinham uma profunda relação com o mar (que os chilenos perderam, apesar da extensão de seu litoral), exterminados durante o processo “civilizatório”, e prisioneiros políticos exterminados durante a ditadura militar (arremessados de aviões e helicópteros) neste mesmo mar do sul, convertido, portanto, em cemitério: a pintura corporal de um dos povos retratados no documentário, os Selknam, e a expressão de Gabriela Paterito, remanescente dos Kawésqar, ao afirmar que sua língua nativa não conhecia palavras nem para deus nem para polícia: “Não precisávamos deles”, diz ela.