terça-feira, 30 de novembro de 2010

Alices




Li a versão integral de Alice no País das Maravilhas, que conhecia de adaptações infantis, pela primeira vez aos 33 anos, na cama da enfermaria de um hospital, nos dias anteriores à minha alta, quando eu, já recuperados alguns movimentos, conseguia pelo menos virar sozinha as páginas de um livro, depois de passar quase dez dias em coma em uma Unidade de Tratamento Intensivo. Foi um presente, em vários sentidos. Porque afirmam que eu “nasci de novo”, posso dizer que este foi o primeiro livro que li na minha (segunda) vida. E o país das maravilhas, para mim, passou a ser algo muito concreto, mas de difícil definição, pois eu não poderia jamais admitir que, quando as coisas não vão bem, não é para o colo de minha mãe, os braços do amado ou o ombro do amigo que meus pensamentos se dirigem, mas para aquele quarto coletivo de hospital público, sem espelhos, onde recebo, em paz no meio dos mais variados barulhos, os cuidados de rosângelas, marias da graça, sandras e outras funcionárias - enfermeiras e faxineiras de cujo nome já não me lembro.

Leila Guenther. Este lado para cima. Sereia Ca(n)tadora/ Revista Babel, 2011.


quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Apresentação de O vôo noturno das galinhas no Peru



Gabriel Ruiz Ortega, Leila Guenther, Julia Wong Kcomt e Leonardo Dolores em foto de Salomon Senepo Gonzales

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Notas de rodapé para um texto inexistente

(52)

Julio Ramón Ribeyro – escritor peruano, walseriano em sua discrição, sempre escrevendo como que na ponta dos pés para não tropeçar em seu próprio pudor ou não tropeçar, porque nunca se sabe, em Vargas Llosa – sempre abrigou a suspeita, que se foi tornando convicção, de que há uma série de livros que fazem parte da história do Não, embora não existam. Esses livros fantasmas, textos invisíveis, seriam aqueles que um dia batem a nossa porta e, quando vamos recebê-los, por um motivo frequentemente fútil, esfumam-se; abrimos aporta e não estão mais ali, foram embora. Certamente era um grande livro, o grande livro que estava dentro de nós, aquele que realmente estávamos destinados a escrever, nosso livro, o mesmo que nunca mais vamos poder escrever nem ler. Mas esse livro, que ninguém duvide disso, existe, está como que suspenso na história da arte do Não.
“Lendo Cervantes há pouco”, escreve Ribeyro em La tentación del fracaso, “passou por mim um sopro que, infelizmente, não tive tempo de captar (por quê?, alguém me interrompeu, o telefone tocou, não sei), pois lembro que me senti impulsionado a começar algo... Depois tudo se dissolveu. Todos nós guardamos um livro, talvez um grande livro, mas que no tumulto de nossa vida interior raras vezes emerge, ou o faz tão rapidamente que não temos tempos de arpoá-lo”.

(Enrique Vila-Matas, Bartleby e companhia. Trad. Maria Carolina de Araújo e Josely Vianna Baptista. Cosac Naify, 2004)

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

I Semana de Letras da Unifesp

Estarei aqui, no dia 27, às 18h.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Otras voces

Saiu aqui uma entrevista que dei ao escritor peruano Juan Valle a propósito da tradução de O vôo noturno das galinhas para o espanhol. O lançamento será no dia 4 de novembro, na II Feria Itinerante del Libro CAELIT UNFV 2010, promovida pela Universidad Nacional Federico Villarreal, Lima, Peru. Armando Alzamora, o tradutor do livro, fez a gentileza de verter as respostas para a língua de Garcilaso.


quinta-feira, 14 de outubro de 2010


Quando chegar ao topo da montanha, continue escalando.

(Provérbio zen)

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Li Po


DIANTE DO VINHO

Amigo, crê-me, não afastes essa taça!
O vento de primavera chega todo sorridente.
Pessegueiros e ameixeiras, tão velhos conhecidos,
Inclinam suas flores e as entreabrem para nós.
Os verdelhões alegres cantam nas árvores verdes;
A lua brilhante observa nossas taças de ouro.
Ontem éramos jovens de pele rosada;
E eis que agora os cabelos brancos nos envelhecem.
A selva invade o palácio do rei de Tchao;
Os cervos atravessam o terraço de Kou-sou.
Nesses velhos palácios de imperadores e príncipes,
Os portões guardam apenas a poeira!
Por que não aceitar essa bebida?
Onde estão agora os homens do passado?


SAUDAÇÃO SOLITÁRIA AO LUAR

Entre as flores um jarro de vinho:
Bebo sozinho, sem amigo algum.
Erguendo minha taça, convido o luar;
Eis minha sombra diante de mim: somos três.
A lua – que pena – não sabe beber;
E a sombra em vão me segue.
Companheiros de um instante, ó lua e sombra!
Nas brincadeiras alegres, festejemos a primavera!
Quando canto, a lua vagueia.
Quando danço, minha sombra, perdida, se deforma.
Já que ficaremos velhos, alegremo-nos juntos;
E, uma vez embriagados, que cada um regresse.
Que dure para sempre nossa ligação sem alma:
Nós nos reencontraremos pela Via-Láctea distante!



(da Anthologie de la poésie chinoise classique. Trad. Leila Guenther)

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Antologia canina IV

(Golias, o chihuahua, acaba de fazer cinco anos)


O OLHO QUE VÊ

Os cães pequenos olham para os cães grandes;
Observam as intratáveis dimensões
E as curiosas imperfeições de odor.
Eis um grupo de machos compenetrados:
Os homens jovens olham de cima os mais velhos,
Consideram-lhes a mente de meia-idade
Observam-lhes as correlações inexplicáveis.

Tsin-Tsu disse:
Somente nos cães pequenos e nos jovens
Encontramos a observação minuciosa.

(Ezra Pound, trad. Mário Faustino)

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A esposa do mercador do rio: uma carta

Quando ainda usava franja no cabelo,
Eu brincava perto do portão principal, colhendo flores,
Você vinha sobre pernas de pau, brincando de cavalo,
Andava ao meu redor, brincando com ameixas azuis.
E assim vivíamos na aldeia de Chokan:
Duas crianças, sem desgosto nem malícia.

Aos quatorze anos o desposei, meu senhor.
Por timidez, nunca ria.
De cabeça baixa, olhava para o muro.
E, mesmo chamada mil vezes, nunca olhava para trás.

Aos quinze parei de resistir,
Desejei que minhas cinzas se misturassem às suas
Para sempre e para todo o sempre.
Para que eu deveria subir até o mirante?

Aos dezesseis você partiu.
Foi para além de Ku-to-yen, pelo rio sinuoso,
E faz cinco meses que está ausente.
Lá no alto os macacos fazem um triste barulho.
Você arrastava os pés quando foi embora.
Perto do portão, agora, o musgo cresce; diversos tipos de musgo,
Enraizados demais para serem arrancados!
As folhas caem cedo neste outono, com o vento.
As borboletas, aos pares, já amarelecem, neste agosto,
Sobre as ervas do jardim do poente;
Elas me ferem. Estou envelhecendo.
Se estiver descendo pelos estreitos do rio Kiang,
Avise-me logo, por favor,
E eu irei, para encontrá-lo,                                                                                                     Até as alturas de Cho-fu-Sa.

(Ezra Pound, trad. Leila Guenther)


domingo, 26 de setembro de 2010

WabiSabi: coreografia + fotografia + poesia



(foto: Juliano Gouveia dos Santos)

Acabou de sair em Cronópios um trabalho que fiz com o fotógrafo Juliano Gouveia dos Santos a propósito do espetáculo WabiSabi, de 2008, da coreógrafa Susana Yamauchi.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Este pão que venho abrir

Este pão que venho abrir foi outrora centeio,
este vinho sobre uma ramada desconhecida
ficou submerso nos seus frutos;
o homem em cada dia, em cada noite o vento
arrancaram a alegria dos cachos e derrubaram as searas.

Com o vinho, outrora o sangue de estio
palpitava na carne que ornamentava a videira,
outrora neste pão
era feliz sob o vento o centeio;
mas o homem despedaçou o sol e abateu o vento.

Esta carne que despedaças, este sangue
que traz a desolação pelas veias,
eram os cachos e o centeio
nascidos das raízes e da seiva dos sentidos;
este meu vinho que bebes, este pão de que te alimentas.

(Dylan Thomas, trad. de Fernando Guimarães)

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Mulher-dervixe


Mira Hunter dançando ao som de Mercan Dede

quinta-feira, 16 de setembro de 2010


Não fui, na infância, como os outros
e nunca vi como outros viam.
Minhas paixões eu não podia
tirar de fonte igual à deles;
e era outra a origem da tristeza,
e era outro o canto, que acordava
o coração para a alegria.
Tudo o que amei, amei sozinho.
Assim, na minha infância, na alba
da tormentosa vida, ergueu-se,
no bem, no mal, de cada abismo,
a encadear-me, o meu mistério.
Veio dos rios, veio da fonte,
da rubra escarpa da montanha,
do sol, que todo me envolvia
em outonais clarões dourados;
e dos relâmpagos vermelhos
que o céu inteiro incendiavam;
e do trovão, da tempestade,
daquela nuvem que se alteava,
só, no amplo azul do céu puríssimo,
como um demônio, ante meus olhos.


(Edgar Allan Poe, Ficção completa, poesia & ensaios. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado. Rio de Janeiro, Aguilar, 1965)

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Morro do Isolamento

O profeta mora em uma gruta do Morro do Isolamento. Os homens bebem cachaça, vinho nacional e cerveja. Compram remédios e querosene. Os homens bebem porque precisam ficar tontos. Todos, às vezes, precisam ficar bêbados, e por isso bebem. Quando as mulheres dos homens ficam desesperadas elas despejam querosene na roupa e se matam com fogo. O profeta sabe de tudo. Ele sabe que muitas famílias usam pratos no almoço e no jantar. Os pratos não são eternos. Cedo ou tarde eles se quebram. Às vezes são partidos quando a mulher está nervosa com o homem. Às vezes a culpa é de uma criança. Às vezes é de uma empregada. De qualquer modo eles se quebram; e às vezes toda a família se quebra em redor dos pratos quebrados. O profeta sabe. Ele passa a mão suja pela barba suja. Sai da gruta. Vai andando devagar. Desce o Morro do Isolamento e passeia pelos quintais miseráveis dos subúrbios de Niterói. Não, o profeta não vai roubar galinhas. Ele recolhe frascos vazios, pratos quebrados, leva para a sua gruta os cacos, as garrafas sujas e vazias. Espalha tudo pelo chão e medita, já possui, entre outras coisas, uma corrente de chuveiro. Achou-a no lixo. O profeta não tem chuveiro, e não pensa nunca em tomar banho. Mas achou aquela corrente e medita. O profeta às vezes sente fome. Possui uma pequena criação: uma cobra pequena e sem veneno, e um tatu enfermo. Os três vivem em boa paz na gruta do Morro do Isolamento, entre cacos de vidro, pratos quebrados, a corrente de chuveiro e meditações.
Às vezes as crianças muito pobres, os homens doentes e as mulheres feias vão ouvir o profeta. Muitos acreditam nele. Muitos não acreditam. Ele acredita. O Morro do Isolamento se povoa de crentes e descrentes. À noite, uns e outros descem o morro. O profeta faz uma festinha para o tatu. O tatu, muito enfermo, suspira tristemente. A cobra, a humilde cobra sem veneno, dá um bocejo e vai dormir. A gruta está escura. A noite lá fora está escura. Apenas existe uma luzinha tremelicando. É no cérebro do profeta. Ele passa a mão pela cara suja, pela barba suja. Na escuridão do Morro do Isolamento o profeta está se rindo devagarinho. Ele sabe de tudo. Lá na cidade, onde há luz elétrica, homens e mulheres, as garrafas se esvaziam e os pratos se quebram. A vida se quebra e se esvazia. E tudo fica sujo como a barba do profeta. Na escura gruta do Morro do Isolamento, o profeta está chorando devagarinho. Se a cobra fosse grande e feroz, e tivesse veneno mortal, ele diria:
- Vai, cobra, e morde e mata os homens ruins, só respeitando as crianças e os pobres.
Se o tatu não fosse doente e fosse enorme e terrível, ele diria:
- Vai, tatu, e cavouca a terra vil, e derruba as casas e só respeita as miúdas e miseráveis.
Mas na gruta escura do Morro do Isolamento a cobrinha sem veneno está dormindo, e o tatu está enfermo. O profeta passa a mão pela barba suja, deita na terra e começa a roncar. O ronco do profeta estremece o Morro do Isolamento, abala Niterói e o mundo.

(Rubem Braga, O conde e o passarinho. Rio de Janeiro, Record, 2002)

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Programa Perfil Literário

Dirigido por Oscar D'Ambrosio, o programa Perfil Literário, da Rádio Unesp, para o qual dei uma entrevista em 2009, agora também está sendo disponibilizado pelo Cronópios. Clique aqui para ouvir.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

As melhores editoras do Brasil

(...) A pesquisa promovida pelo Valor não teve a intenção de medir a eficiência empresarial, mas indicar as editoras que mais se destacam culturalmente. A votação se encaminhou naturalmente para a ênfase nas áreas artístico-literária e das ciências humanas e muitos dos votantes mencionaram a capacidade de interferir na vida cultural e de formar leitores como critérios para medir a qualidade de uma editora. Aos 21 especiliastas consultados, foi pedido que fossem escolhidas as três melhores casas editoriais. Ficaram de fora as áreas mais especializadas, como as dos livros técnicos, os de autoajuda e os didáticos e paradidáticos, embora a grande movimentação nesses setores nos últimos anos, em que ocorreram grandes fusões e incorporações, certamente influi no quadro geral. (...)


(Márcio Ferrari, "Letras maiúsculas", Valor Econômico, 23/7/2010)



RANKING DAS MELHORES EDITORAS
As mais votadas pelo júri

1. Companhia das Letras
2. Cosac Naify
3. 34, Martins Fontes, Record
4. UFMG
5. Ateliê, Hedra, Iluminuras, Unicamp
6. Contraponto, Difel, Edusp, Escrituras, Perspectiva, UnB, Vozes, WMF Martins Fontes, Zahar

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Para Sylvia Plath




VISITA

Lucas, um amigo, um
daqueles três ou quatro que ficam para sempre
como um eu isolado,
uma pedra no leito do rio
submetida a todas as mudanças, tornou-se teu amigo.
Ouvi falar disso, alarmado. Desperdiçava
a minha juventude lá longe num escritório perto de Slough,
manhã e tarde entre Slough e Holborn,
juntando o ordenado para custear o salto para a liberdade
e o outro lado da terra – uma queda livre
para me desfazer da minha crisálida num torvelinho.
Nos fins-de-semana reingressava
na Alma Mater. A minha namorada
tinha o mesmo professor e uma aula todas as semanas
contigo e a tua rival americana.
Destestava-te. Alimentou com instantâneos
teus e dela não sei que
inflamável celulóide para o meu futuro
silencioso e insaciável, a minha cabra-cega,
luz interior de procura. Depois da meia-noite
fiquei num jardim com o meu amigo,
a atirar com torrões de terra a uma janela escura.

Bêbado, ele tinha certeza que era a tua.
Meio bêbado, eu não sabia que ele se enganava.
Nem sabia que estava a ser avaliado,
para o principal papel masculino do teu drama,
a mimar os primeiros gestos, tão fáceis
como se estivesse de olhos fechados para sentir melhor o meu papel.

Como uma marioneta puxada por fios,
ou as pernas electrocutadas de uma rã morta.
Dancei por entre aqueles movimentos – observado e avaliado
somente pela escuridão cheia de estrelas e uma sombra.
Desconhecido para ti e sem te conhecer.
Desejando encontrar-te, e perdendo-te, e perdendo-te outra vez.
Lançando terra a um vidro que não podia proteger-te
porque tu não estavas lá.

Dez anos depois da tua morte
encontro numa página do teu diário, como nunca antes,
a comoção da tua alegria
quando soubeste disso. Depois a comoção
das tuas orações. E sob essas orações o pânico
de que as orações não produzissem o milagre,
depois, debaixo do pânico, o pesadelo
que veio a rolar para te esmagar:
a tua alternativa – o velho e impensável
desespero e a nova agonia
juntos num mesmo inferno familiar.

De repente leio tudo isto –
as tuas palavras, autênticas como se flutuassem,
da tua garganta e língua para se plasmarem numa página –
No exacto momento em que a tua filha, já há muitos anos,
vagueando até onde eu trabalhava sozinho,
olhou-me fixamente no rosto, confusa, e perguntou de repente:
“Pai, onde está a Mãe?” A terra gelada
do jardim, como eu cravei as minhas mãos nela.
À minha volta o gigantesco relógio de geada
dessa meia-noite. E em algum lugar
dentro dela, sem querer sentir nada,
a pulsação de uma febre. Em algum lugar
dentro da dormente terra
o nosso futuro a tentar acontecer.
Ergo o olhar – como para encontrar a tua voz
com o seu urgente futuro
que rebentou dentro de mim. Depois volto a olhar
o livro com palavras impressas.
Há dez anos que estás morta. Isto é apenas uma história.
A tua história. A minha história.




UM VESTIDO DE MALHA COR-DE-ROSA

No teu vestido de malha cor-de-rosa
e antes que alguma coisa pudesse macular alguma coisa
estavas no altar. Bloomsday.

Chovia – por isso, a única coisa que levava
com menos de três anos de uso
era um chapéu de chuva acabado de comprar.
A minha gravata – solitária, pesada, negro veterano da RAF –
era o símbolo gasto de uma gravata.
O meu casaco de bombazina – três vezes tingido de preto, estafado
mal conseguia aguentar-se.

Eu era um útil genro do pós-guerra!
Não era bem o Príncipe-Rã. Talvez mais o Guardador de Porcos
a roubar desta filha os sonhos de grandeza
num futuro iluminado pelos focos das torres de vigia.

Nenhuma cerimónia podia recrutar-me,
fora deste uniforme. Vestia todo o meu guarda-roupa –
À exceção de uma ou outra peça alternativa, igual às outras.
O meu casamento, tal como a Natureza, queria esconder-se.
Mesmo assim – se nos íamos casar
era melhor que fosse na Abadia de Westminster. Por que não?
O deão explicou-nos a razão. Foi assim que
eu soube que tinha uma igreja de paróquia.
São Jorge dos Limpa-Chaminés.
Tivemos que apertar-nos para caber no casamento.
A tua mãe, corajosa até nesta
Jogada de Negócios Estrangeiros Norte-Americanos,
fez o papel de todas as damas de honor e do resto dos convidados,
representou até – magnanimamente –
a minha família
que não ouviu falar de nada.
Eu só tinha convidado os seus antepassados.
E nem sequer confidenciei que te tinha roubado
a um amigo chegado. Para padrinho – o escudeiro
que pegasse nas alianças por um momento –
solicitamos o sacristão. Cúmulo da afronta:
Ele estava a meter crianças dentro de um autocarro
Para as levar ao Jardim Zoológico – debaixo daquele aguaceiro!
Os animais aprisionados tiveram de ter paciência
enquanto nos casávamos.
Estavas transfigurada.
Tão esbelta e nova e nua,
um agitado ramo úmido de lilases.
Tremendo, soluçando de alegria, eras a profundidade do oceano,
repleta de Deus.
Disseste que viste os céus abrirem-se
Mostrando riquezas, prestes a cair sobre nós.
Levitando ao teu lado, fiquei sujeito
a um tempo verbal estranho: o futuro enfeitiçado.

Na desolada ressonância daquele altar em dia de semana
vejo-te
a lutar para conteres as chamas
no teu vestido de malha cor-de-rosa
e nas pupilas dos teus olhos – grandes jóias cujas faces
eram lacrimosas chamas, na verdade grandes jóias
agitadas num copo de dados erguido para mim.

(Ted Hughes, Cartas de Aniversário. Trad. Manuel Dias. Lisboa, Relógio D’Água, 2000)

terça-feira, 1 de junho de 2010

Sur la "justice"


 
O papel de Paris como geradora tanto de ideias como de maneirismos, vogas e modas também contribui para o seu status de cidade grande. As cidades pequenas não estabelecem padrões internacionais de moral, não como Paris tem feito desde o século XVIII, quando os philosophes redefiniram o contrato social e Voltaire defendeu um criminoso condenado chamado Jean Calas, que ele acreditava ser inocente. Voltaire estava certo e conseguiu limpar o nome de Calas, fazendo valer a Paris a fama mundial de lugar onde a justiça sempre triunfa — ao menos se algum escritor famoso puder ser convencido a abraçar a boa causa. Um século depois o romancista Émile Zola confirmou a regra ao empunhar a pisoteada bandeira de Alfred Dreyfus, um oficial judeu do exército francês condenado por uma corte militar antissemita por vender segredos à Alemanha. Em 1894, Dreyfus foi mandado para a ilha do Diabo, na Guiana Francesa. Anos mais tarde ele seria solto e, por fim, reabilitado, depois que Zola reabriu o caso na imprensa. (Uma reprodução do seu famoso artigo de primeira página, “J’accuse!”, foi projetado por inteiro na fachada da Assembleia Nacional, na noite de 13 de janeiro de 1998, em comemoração ao centenário do histórico evento.)
Suponho que essas duas histórias podem ser interpretadas mais como testemunho da importância dos escritores na França do que como evidência da justiça francesa. Com certeza o mundo anglófono nunca presenciou nada parecido com o julgamento do escritor Jean Genet, em 1943, pelas repetidas condenações por furto. Genet se deparava com a prisão perpétua como punição por ser um reincidente contumaz, mas Jean Cocteau, que havia descoberto Genet e providenciado a publicação de seu primeiro romance, Nossa Senhora das Flores, apresentou uma declaração que foi lida na corte: “Ele é Rimbaud, não se pode condenar Rimbaud”. Cocteau insinuou que o juiz entraria para a história como um filisteu se tomasse a decisão errada. Nem por um momento Cocteau argumentou que Genet era inocente, mas simplesmente que era um gênio. Seu testemunho livrou Genet, sem qualquer punição.
Esses casos exemplares, e mesmo surpreendentes, deveriam ser ponderados em contraste com a justiça peremptória e muitas vezes arrogante exercida sobre os cidadãos comuns. Na França, não há habeas corpus, e até pouco tempo atrás pessoas perfeitamente inocentes podiam ser mantidas durante meses, anos até, em prisão preventiva se um juiz considerasse que elas sabiam mais do que estavam dizendo. Como escreveu Mavis Gallant sobre o juiz na França: “Ele pode detê-lo até que você mude de ideia. Se, no fim, você for inocente, não há recurso contra a lei. Você não pode nem abrir um processo pleiteando a simbólica quantia de um franco por danos, ainda que a detenção preventiva lhe tenha custado o emprego, o equilíbrio doméstico e a sua reputação”. Nos anos 1960, com a eclosão da Guerra da Argélia, centenas de árabes definharam nas prisões francesas por longos períodos, sem nem sequer ser julgados, muito menos condenados.


(Edmund White, O flâneur: um passeio pelos paradoxos de Paris. Trad. Reinaldo Moraes. São Paulo, Companhia das Letras, 2001)

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Hoje de madrugada

O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali ao canto; me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranquilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar ao verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhas em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.
Não me mexi na cadeira quando percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma caligrafia rápida e nervosa; foi una frase curta que ela escreveu, me empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos: "vim em busca de amor" estava escrito, e em cada letra era fácil de ouvir o grito de socorro. Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa. Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me devolvê-lo aos olhos: "responda" ela tinha escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada; provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia. E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava. Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: "não tenho afeto para dar", não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos, enquanto ela deitava o bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim talvez que ela pensava refazer-se do seu ímpeto.
Não demorou, minha mulher deu a volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca. Sem me virar, subi o braço, fechei minha mão ao alto, retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos. Desci lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim se deslocou, o pano da camisola esboçou um voo largo, foi num só lance para a janela, tinha até verdade naquela ponta de teatralidade. Mas as venezianas estavam fechadas, ela não tinha o que ver, nem mesmo através das frinchas, a madrugada lá fora ainda ressonava. Espreitei um instante: minha mulher estava de costas, a mão suspensa na boca, mordia os dedos.
Quando ela veio da janela, ficando de novo à minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos, e nem com o traço de demência lhe pervertendo a cara. Retomei o rabisco enquanto ela espalmava as mãos na superfície, e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pelos, subindo afoito, me lambendo a perna feito uma chama. Fiz a tentativa com vagar, seu pé de início se atracou voluntarioso na barra, e brigava, resistia, mas sem pressa me desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sob a cadeira. Voltei a erguer os olhos, sua postura, ainda que eloquente, era de pedra: a cabeça jogada em arremesso para trás, os cabelos escorridos sem tocar as costas, os olhos cerrados; dois frisos úmidos e brilhantes contornando o arco das pálpebras; a boca escancarada, e eu não minto quando digo que não eram os lábios descorados, mas seus dentes é que tremiam.
Numa arrancada súbita, ela se deslocou quase solene em direção à porta; logo freando porém o passo. E parou. Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar. Pode ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse por esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta reflexão, minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto feito sonâmbula.


(Raduan Nassar, Menina a caminho, São Paulo, Companhia das Letras, 1997)

sábado, 20 de fevereiro de 2010

O imitador de vozes


CARIDADE

Uma velha senhora, vizinha nossa, foi longe demais em sua índole caridosa. Tinha acolhido em sua casa um pobre turco, conforme acreditava, que, de início, mostrou-se de fato agradecido por não mais precisar viver num barraco de canteiro de obras destinado à demolição mas, em vez disso, e graças à caridade da velha senhora, poder morar agora num casarão situado no meio de uma grande jardim. Fez-se útil ali, trabalhando como jardineiro, e a velha senhora não apenas vivia lhe comprando roupas novas como verdadeiramente o mimava. Um dia, o turco compareceu à delegacia de polícia e declarou ter matado a velha senhora que, por caridade, o acolhera em sua casa. Estrangulou-a, como constatou em visita imediata ao local do crime a comissão designada pelo tribunal, quando a comissão perguntou ao turco por que havia matado, ou seja, estrangulado a velha senhora, ele respondeu: Por caridade.


INVERSÃO

Embora eu sempre tenha odiado jardins zoológicos e na verdade achado suspeitas as pessoas que os visitam, não escapei de ir certa vez ao zoológico de Schönbrunn e, a pedido de meu acompanhante, um professor de teologia, deter-me diante da jaula de macacos para observar aqueles aos quais ele, meu acompanhante, alimentava com a comida que, para esse fim, tinha levado no bolso. O tempo passou e o professor de teologia que me pedira que fosse com ele a Schönbrunn, um ex-colega da faculdade, já havia dado aos macacos toda a comida que trouxera consigo quando, de repente, os próprios macacos, por sua vez, puseram-se a coletar a comida que se espalhara pelo chão e, através das grades da jaula, ofereceram-na a nós. O professor de teologia e eu ficamos tão chocados com o súbito comportamento dos macacos que, no mesmo instante, demos meia-volta e partimos de Schönbrunn pela primeira saída que encontramos.



O ERRO DE MOOSPRUGGER

O professor Moosprugger contou ter ido à estação ferroviária buscar um colega a quem não conhecia pessoalmente mas apenas mediante troca de correspondência. Esperara, na verdade, encontrar outra pessoa em lugar daquela que desembarcou na estação. Quando chamei a atenção de Moosprugger para o fato de que quem chega é sempre uma pessoa diferente daquela que esperávamos encontrar, ele se levantou e foi-se embora com o único propósito de romper e abandonar todos os contatos que já estabelecera na vida.



AUMENTO

No tribunal distrital de Wels, uma senhora com quarenta e oito condenações anteriores, que o juiz, logo na abertura deste seu mais recente julgamento, como relata o jornal local, caracterizou como ladra anciã e bem conhecida da justiça e cuja presente acusação se devia ao furto de um monóculo inteiramente inútil para ela, roubado havia pouco de uma falecida frequentadora da ópera, a qual já não conseguia andar fazia muitos anos, não ia mais à ópera e, por essa mesma razão, não apenas nunca mais utilizara o monóculo mas também o esquecera por completo, como se verificou ao longo do julgamento – essa senhora, pois, logrou ter sua pena de apenas três meses de prisão aumentada mediante um safanão que desferiu no juiz tão logo proferida a sentença. Esperava conseguir no mínimo nove meses de prisão, porque não suportava mais viver em liberdade, alegou ela.



(Thomas Bernhard, O imitador de vozes. Trad. Sergio Tellaroli. São Paulo, Companhia das Letras, 2009.)

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Direto de Portugal VI

(Foto: Gérard Castello Lopes)




SANTO NOME

Respiro pesadamente entre as algas.
Os peixes morrem com o seu olhar louco à beira das
lajes.
Deste cais vejo que anoitece e lançam as redes os meus
homens do mar.
Irmãos do sal, consumidos de iodo, junto aos violinos.
Vem, Senhora dos Litorais, e sobre a falésia tange as
minhas cordas em sobressalto.
Murmura o meu nome, o meu santo nome entre os demais.
O destino dos cardumes é o destino de um homem, um
homem é o silêncio profundo,
o silêncio é o enigma da sua ilha.
De aromas e perigos se entrelaçam os portos.
Às vezes, pela inquietação dos mastros, passava a alegria.



PERPLEXIDADE

Perfila-se o cereal à vista dos moinhos.
As pás movem o silêncio da colina,
desarticulando os lábios de quem sobe,
debaixo do sol.
Respira-se devagar,
de frente para o horizonte, à hora exacta do
mundo.
As mós cantam o entardecer do pão.
O teu vulto segue a escuridão do corvo e
voas em silêncio,
declinando a sombra.
Como vertiginosa poeira escoa-se o centeio
entre os dedos.
As aldeias contemplam a saudade da tua
boca nas minhas folhas,
queimando-as lentamente, ao acaso dos pêndulos.
Já partiste, sem ruído, como o ar que deixa
a seara,
entregando-se ao temor das foices.
Não sei como convocar-te quando a noite
me assusta,
rodeada de incêndios.



INSULARIDADE

Uma ilha mente.
Uma ilha é um obscuro ventre de inacessível
ouro derramado,
incandescente.
Os nervos estremecem ao fundo das crateras.
O sangue corre pelas ribeiras onde enlouqueci,
na fermentação das canas,
alheio às conspirações.
Os filhos esquecem a minha arte sem doçura,
recusando o fruto.
As vinhas apodrecem e nem o sonho as
devolve.
Há um amargo caule que mergulha na
exactidão da lava,
corolas silenciosas, por florir.
É sempre tarde quando amanhece na orquídea.


EXPIAÇÃO

Quando chego
Já duas corolas vivas decoram os alpendres.
Uma haste em consumida luz respira junto
aos degraus.
Não tem valor esta mansão que do abandono fez
o seu hóspede,
a hora fúnebre.
O luto rege a obscura linhagem dos
indesejados filhos.
Todas a pressa é a de matar uma rosa alucinada e
o mal é só esse:
a contemplação dos despojos:
a garganta ferida, algumas raízes que à lama
devem o dom da expiação.
O dia é cego.
Nem o pecado resgata a desolação das planícies.






(José Agostinho Baptista, Paixão e cinzas. Lisboa, Assírio & Alvim, 1992)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Direto de Portugal V

(Foto: Gérard Castello Lopes)

Repito que vivo enclausurado na agilidade de um animal nascido
Correndo ao lado dele, correndo para ele - era assim
Que eu queria que fosse a linguagem veloz:
Uma casa para a infância com trepadeiras
Para que as palavras ficassem como frutos no alto.

Repito a corrida na memória quando estou parado
Penso velozmente que o amor, como Dante disse, é um estado
De locomoção. É um motor. E fico a trabalhar no mecanismo secreto
Do amor.

Sei que estou em viagem na palavra que se move.

Repito o trajecto para ver o poema de novo - era assim
Que eu queria que fosse a linguagem de uma coisa amada
Correndo ao meu lado, correndo para mim no mecanismo violento
Do amor. Era nele que eu queria a casa com trepadeiras
Onde as palavras ficassem silenciosas e altas como um pátio interior.


*

Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse

Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor, na operação poderosa
Do amor

Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados

Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue

Na água corrente

Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar


*


Há uma mulher a morrer sentada
Uma planta depois de muito tempo
Dorme sossegadamente
Como cisne que se prepara
Para cantar

Ela está sentada à janela.
Sei que nunca
Mais se levantará para abri-la
Porque está sentada do lado de fora
E nenhum de nós pode trazê-la para dentro

Ela é tão bonita ao relento
Inesgotável

É tão leve como um cisne em pensamento
E está sobre as águas
É um nenúfar, é um fluir já anterior
Ao tempo
Sei que não posso chamá-la das margens

(publicado aqui em “Trança de poemas”, 26 de maio de 2009)


*


As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.

É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas

Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos

As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.


(Daniel Faria, Poesia. Famalicão, Quasi)

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Direto de Portugal IV

( Foto: Alfredo Cunha)


CASTELOS DE PORTUGAL

A taberna da Cruz do Campo
onde cheguei tão novo — queria-vos
falar, mas não recordo bem,
da bicicleta que me levou, antes
de pedir (deve ter sido) a laranjada
que prenunciava outros hábitos.
O taberneiro tinha o que se esperava:
um resto de vida e de inquéritos
mornos que chegaram para saber
que a filha dele e a minha mãe
haviam sido colegas, passeando
talvez não muito longe em desiguais
bicicletas. No pequeno mundo.

Também já não existirá, suponho,
a taberna de Pontével quase
em frente à igreja, onde entrei e saí
assustado com o vinho escuro que
iluminava no vómito do balcão os rostos.
Aí quis morrer, em vez da «mentira do amor».

Apenas a terceira obedecerá ao título,
fazendo cair sobre mim a metáfora:
ficava em Penedono e esperava,
depois da juventude, o fim.
Sob o castelo — alto, preenchendo o Verão —
onde alguém me levou e nunca mais amei.

Era a isso que eu chamava o meu país,
ruínas que não quero juntar.


DEPOIS DE TEBAS

Os mortos, como sabes,
não te podem ajudar.
Confundes-te com eles, fazes teu
tudo o que não disseram.
A cabeça da mãe, na fotografia,
abençoa o crime e a desavença.
Tem óculos, sorri, no jardim com gansos
que não passavam afinal de patos.

Entraste, pelo mesmo portão,
nas casas em que se prepara a peste
e não te atreverás sequer a escrever
o insuficiente livro da infância,

o cheiro, como dizer, das tangerinas.


LAGAR

As mães, e até as que não eram mães,
achavam salutar que mergulhasses no mosto,
na promessa apenas desse vinho tinto
que ao enrijecer os músculos
despertava a alma para infâmias e paixões.

Que diriam agora, se o pudessem dizer,
essas mães? Deixa, qualquer abismo serve:
perdeste a infância e não encontraste o mundo.


CAFÉ DO HORTELÃO II

É quase um regresso. A salamandra
está no mesmo sítio, a cadela
ainda não morreu. Mas espera-me
um sorriso de viúva que em vão
procura ser igual. Não vou ter de acordar
ninguém para me servir um brandy,
uma cerveja, o vinho que arrefece
no esquife de alumínio ao lado do balcão.

O café, pequena taberna, já só abre
à tarde, por algumas horas, obedecendo
mal, como pode, à tirania do hábito.
Pergunto-me o que farão agora
os meus silenciosos amigos,
a breve confraria de álcool
que apostava comigo na infâmia.
Nunca mais vi o Pintéve, o Falcão,
desconheço onde bebem,
mas tenho a certeza que bebem.

Uma vez faltou a luz e ficámos
toda a noite em silêncio de La Tour,
encostados a um candeeiro de petróleo.

Doutra vez faltou a vida,
senhor Hortelão, a vida. Quem
pudesse pintar a ausência.




(Manuel de Freitas, Beau Séjour. Lisboa, Assírio & Alvim, 2003.)

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Direto de Portugal III

(Foto: Alfredo Cunha)


A NOITE ABRE MEUS OLHOS

No sangue do filho do homem
uma parcela trémula
um silêncio demasiado precioso
para a listagem das grandes transformações

Caminhei sempre para ti sobre o mar encrespado
na constelação onde os tremoceiros estendem
rondas de aço e charcos
no seu extremo azulado

Ferrugens cintilam no mundo,
atravessei a corrente
unicamente às escuras
construí minha casa na duração
de obscuras línguas de fogo, de lianas, de liquens

A aurora para a qual todos se voltam
leva meu barco da porta entreaberta

o amor é uma noite a que se chega só


ÓSTIA

Um desses atrasos no aeroporto de Fiumicino
e eis-nos em salto desprovido por estas ruas
além do parque arqueológico
a cidade assemelha-se a um acampamento desolado
varandas cheias de caixotes e detritos
(devem ser exíguas as casas econômicas)
muros com imprecações aos de Roma
e a débil força messiânica entregue
aos ídolos do futebol

Sem darmos conta já estávamos encalhados
numa qualquer estrada secundária
junto a um matagal circundado de rede
onde um letreiro quase ao acaso
diz ter morrido
Pier Paolo Pasolini


PLÁTANOS

Depois de ter fechado tudo, abro de novo a porta
e corro cambaleante para a vazia escuridão
assusta-me a certas horas a companhia
do que não adormece
a resistência disso no nosso espaço
movido por outras forças

Mas também me ocorre acender primeiro a luz
e só depois
sentir um medo louco da casa que me acolhe
dos seus redemoinhos imperceptíveis
que julgo cada vez mais perto
como se estivesse para ser morto
às mãos do próprio Deus

Não sei bem acordar vivo destas coisas:
aproveito o ruído do entardecer e grito muito alto
deixo-te um instante só (um instante só)
para fechar os olhos que tanto ardem
ou atiro das margens folhas ao rio
para medir o tempo de uma vida
a naufragar


PONTOS LUMINOSOS

No silêncio basta um sopro e todo o tempo estremece
como se afasta cantando mais para dentro
a própria noite

Guardei para ti relâmpagos inúteis
prata feita de medidas vagas
a inclinada superfície implacável
cordas e alçapões

Do ponto mais alto do céu a 56 milhões de quilômetros
um dia me dirás
“desde a idade do gelo nunca estivemos tão próximos”




(José Tolentino Mendonça, A estrada branca. Lisboa, Assírio & Alvim, 2005)

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Direto de Portugal II

(túmulo de Inês de Castro em Alcobaça. A foto é minha)



– Senhor – digo eu –, agradeço-te a minha morte. E ofereço-te a morte de D. Inês. Isto era preciso para que o teu amor se salvasse.
– Muito bem – responde o rei. – Arranquem-lhe o coração pelas costas, e tragam-mo.
De novo me ajoelho entre os pés dos carrascos que andam de um lado para outro. Ouço as vozes do povo, a sua ingénua excitação. Escolhem-me um sítio nas costas para enterrar o punhal. Estremeço. Foi o punhal que entrou na carne e me cortou algumas costelas. Uma pancada de alto a baixo, um sulco frio ao longo do corpo – e vejo o meu coração nas mãos de um carrasco. Um moço do rei espera com a bandeja de prata batida junto à minha cabeça, e nela depõem o coração fumegante. A multidão grita e aplaude; só o rosto de D. Pedro está triste, embora nele brilhe uma súbita luz interior de triunfo. Percebo como tudo está ligado, como é necessário as coisas se completarem. Não tenho medo. Sei que vou para o inferno, visto eu ser um assassino e o meu país ser católico. Matei por amor do amor – e isso é do espírito demoníaco. O rei e a amante são também criaturas infernais. Só a mulher do rei, D. Constança, é do céu. Pudera, com a sua insignificância, a estupidez, o perdão a todas as ofensas. Detesto a rainha.
O moço sobe a escada com a bandeja onde meu coração parece um molusco sangrento. D. Pedro volta-se, a bandeja aparece junto ao parapeito da janela. O rei sorri. Ergue o coração na mão direita e mostra-o ao povo. O sangue escorre-lhe entre os dedos e pelo pulso abaixo. Ouvem-se aplausos. Somos um povo bárbaro e puro, e é uma grande responsabilidade encontrar-se alguém à cabeça de um povo assim. Felizmente o rei está à altura do cargo, entende a nossa alma obscura, religiosa, tão próxima da terra. Somos também um povo cheio de fé. Temos fé na guerra, na justiça, na crueldade, no amor, na eternidade. Somos todos loucos.




(Herberto Helder, “Teorema”. Os passos em volta)