sábado, 20 de fevereiro de 2010

O imitador de vozes


CARIDADE

Uma velha senhora, vizinha nossa, foi longe demais em sua índole caridosa. Tinha acolhido em sua casa um pobre turco, conforme acreditava, que, de início, mostrou-se de fato agradecido por não mais precisar viver num barraco de canteiro de obras destinado à demolição mas, em vez disso, e graças à caridade da velha senhora, poder morar agora num casarão situado no meio de uma grande jardim. Fez-se útil ali, trabalhando como jardineiro, e a velha senhora não apenas vivia lhe comprando roupas novas como verdadeiramente o mimava. Um dia, o turco compareceu à delegacia de polícia e declarou ter matado a velha senhora que, por caridade, o acolhera em sua casa. Estrangulou-a, como constatou em visita imediata ao local do crime a comissão designada pelo tribunal, quando a comissão perguntou ao turco por que havia matado, ou seja, estrangulado a velha senhora, ele respondeu: Por caridade.


INVERSÃO

Embora eu sempre tenha odiado jardins zoológicos e na verdade achado suspeitas as pessoas que os visitam, não escapei de ir certa vez ao zoológico de Schönbrunn e, a pedido de meu acompanhante, um professor de teologia, deter-me diante da jaula de macacos para observar aqueles aos quais ele, meu acompanhante, alimentava com a comida que, para esse fim, tinha levado no bolso. O tempo passou e o professor de teologia que me pedira que fosse com ele a Schönbrunn, um ex-colega da faculdade, já havia dado aos macacos toda a comida que trouxera consigo quando, de repente, os próprios macacos, por sua vez, puseram-se a coletar a comida que se espalhara pelo chão e, através das grades da jaula, ofereceram-na a nós. O professor de teologia e eu ficamos tão chocados com o súbito comportamento dos macacos que, no mesmo instante, demos meia-volta e partimos de Schönbrunn pela primeira saída que encontramos.



O ERRO DE MOOSPRUGGER

O professor Moosprugger contou ter ido à estação ferroviária buscar um colega a quem não conhecia pessoalmente mas apenas mediante troca de correspondência. Esperara, na verdade, encontrar outra pessoa em lugar daquela que desembarcou na estação. Quando chamei a atenção de Moosprugger para o fato de que quem chega é sempre uma pessoa diferente daquela que esperávamos encontrar, ele se levantou e foi-se embora com o único propósito de romper e abandonar todos os contatos que já estabelecera na vida.



AUMENTO

No tribunal distrital de Wels, uma senhora com quarenta e oito condenações anteriores, que o juiz, logo na abertura deste seu mais recente julgamento, como relata o jornal local, caracterizou como ladra anciã e bem conhecida da justiça e cuja presente acusação se devia ao furto de um monóculo inteiramente inútil para ela, roubado havia pouco de uma falecida frequentadora da ópera, a qual já não conseguia andar fazia muitos anos, não ia mais à ópera e, por essa mesma razão, não apenas nunca mais utilizara o monóculo mas também o esquecera por completo, como se verificou ao longo do julgamento – essa senhora, pois, logrou ter sua pena de apenas três meses de prisão aumentada mediante um safanão que desferiu no juiz tão logo proferida a sentença. Esperava conseguir no mínimo nove meses de prisão, porque não suportava mais viver em liberdade, alegou ela.



(Thomas Bernhard, O imitador de vozes. Trad. Sergio Tellaroli. São Paulo, Companhia das Letras, 2009.)

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