quinta-feira, 23 de junho de 2022

O karma da física

Karma, em sânscrito, significa “ação”. Algumas vertentes do budismo, especialmente o Zen, incorporaram a noção de karma como causalidade, ou seja, uma relação de causa (ação) e efeito (reação). Não é destino, algo predeterminado, imutável, escrito nas estrelas, que cai como um castigo divino sobre nossas cabeças. Está mais para as leis da física: se alguém tem uma arma de fogo em casa e brinca com ela, tem mais probabilidade de sofrer ou provocar um acidente com ela do que quem não tem arma de fogo em casa. Tampouco se trata de uma lei moral. Assim, da mesma forma, se alguém cortar meu pescoço com uma faca, sairá sangue, por melhor que eu seja. Esta lei atinge a todos, indistintamente, mesmo aqueles que se acreditam superiores aos demais ou especiais e que, por isso, acham que nada lhes acontecerá e que não têm nunca de responder às consequências de seus atos - a física e o budismo nos mostram que estamos o tempo todo submetidos às leis da causalidade, do karma: quem planta erva venenosa não colhe alface.






quarta-feira, 22 de junho de 2022

Navegando para Bizâncio

I

Ali os velhos não têm vez. Gente jovem
Reunida, os pássaros cantando nas árvores
Essas gerações que se acabam ,
Rios de salmão, mares de anchova,
Garoupa, gado ou galinha, festejando o verão inteiro
O que nasce, se desenvolve e morre.
No baile todo mundo esquece
A sabedoria que não some.

II


Um velho não vale nada,
É só um trapo de bengala, a menos
Que bata palma, cante e se esgoele
Para cada farrapo do seu paletó usado;
Não há nem escola de canto, só o estudo
Dos monumentos de sua própria grandeza;
Por isso naveguei até chegar
Na cidade santa de Bizâncio.

III


Vocês, entendidos do fogo sagrado de Deus,
Que brilha como as pastilhas da parede,
Saiam dessa ciranda em volta da fogueira
E sejam os mestres cantores de minha vida.
Queimem meu coração doido de desejo
Que amarrado a um animal moribundo
Não sabe o que é; me prendam
Na arapuca da eternidade.

IV


Longe da natureza nunca vou modelar
Minha carapaça a partir de coisa natural,
Mas do jeito que os ourives gregos
Forjam o ouro e com ele banham o metal
Para manter acordado o Imperador dorminhoco;
Ou vou cantar aboletado num galho de ouro
Para essas pessoas da sala de jantar
O que passou, o que passa e o que vai passar.

(W. B. Yeats, tradução minha)




terça-feira, 14 de junho de 2022

Um teto todo nosso

No dia 12 de junho estive na Feira de Livros do Pacaembu para participar da foto que reuniu mais de 400 escritoras, iniciativa de mulheres como a Natalia Timerman, e estava na primeira página da Folha de S. Paulo do dia 13. Em um determinado momento, quando já havia uma multidão de escritoras no estádio, entraram os coletivos de escritoras negras, com cartazes de “Mulheres negras importam”. Neste instante, todas as mulheres lá dentro começaram a aplaudi-las imediatamente, de uma vez, de forma frenética. Acho que todas nós sentimos a mesma coisa: a aclamação foi algo instintivo, impulsivo, orgânico. Veio de dentro de cada uma de nós para desembocar numa força coletiva que talvez nem conhecêssemos. De todo o ato lindo que culminou na foto histórica, este para mim foi o momento mais bonito. Eu chorei. 

Aqui estamos, vivas.







segunda-feira, 6 de junho de 2022

De trovador para trovador

 


BRIGHTON DOS SONHOS

Tom Waits cantando – eu o escuto

estou numa casa de shows – me colocaram

numa apresentação para uma grande plateia

minha apresentação foi boa – não posso

vê-lo – estou no camarim – mas posso ouvi-lo –

sua música começa – e é tão

bonita e original e

sofisticada – tão melhor

que a minha - um misto de

aspereza e doçura –

moderna e sentimental – até o Kitsch usado

com tanta habilidade – queria

poder fazer isso – então ele

começa a cantar – tão bem –

desço para escutá-lo –

imaginando uma grande

multidão de adoradores – mas

ele está cantando numa pequena sala

com metade da lotação – uma espécie

de auditório secundário – vamos embora

ele põe seu braço em volta

do meu ombro – ele parece

bem – um pouco abatido –

um pouco mais velho – mas em total

posse de si mesmo

 

(Leonard Cohen, tradução minha)