quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

De Cabral para Graciliano

Graciliano Ramos:

Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto de cicatriz clara.

*

Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordeste, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:

que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude.

*

Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:

e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.

*

Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente
a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos. 

(João Cabral de Melo Neto)


terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Do meu Livro de Travesseiro (I)


Lembranças que perdemos: um quimono bordado pelo bisavô com linhas de seda que ele próprio tingiu. Na altura da nuca, o símbolo da família, em lilás, que eu gostaria de ter tatuado para não me esquecer de como era. Da bisavó, um andor em miniatura, sobre o qual um pequenino casal de madeira se equilibrava. A caneta-tinteiro do avô que buscava a perfeição dos kanjis. O caderno de receitas da avó, escrito no português todo peculiar que ela inventou.
 
(Leila Guenther)
 

 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A fronteira


(La frontera, documentário de Salomón Senepo Gonzáles*)

* "Salomón Senepo González estudou Comunicação Audiovisual no Instituto Toulouse-Lautrec. Entre suas obras se destacam: En la tierra de los hombres que curan (1995), documentário que aborda a possível cooperação entre curandeiros andinos e médicos ocidentais na comunidade camponesa do Cusco; El otro camino (1999), curta protagonizado pelas crianças de rua de Lima; e Caminando por un sueño (2004), média metragem, ganhador do concurso de documentários Educación a Color, que aborda uma experiência educacional piloto, levada a cabo em um colégio estatal primário de menores de idade, em um assentamento humano de Ancón."
 
Em A fronteira, "o autor empreende uma viagem a Shimuyani, no coração da Amazônia, para reencontrar-se com suas origens culturais". (As informações são de DocTv Latinoamérica)
 

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Inspirado em Fassbinder

Entrevista com H. Wolf, autor de Os primeiros dias de 36 horas. Lisboa, Chiado Editora, 2013.


sábado, 1 de fevereiro de 2014

Com E maiúsculo

Faleceu Eustáquio Gomes, Escritor, homem de letras no melhor sentido da expressão: alguém que se dedicou a viver a literatura, lendo e escrevendo incansavelmente sem se importar com prestígio, imagem ou em ser melhor do que os outros num meio não raro marcado por competição e ressentimento capazes de abater os mais incautos. Não fazia marketing, não aparecia sob os holofotes do mundo literário. Tinha generosidade com os novos escritores, respeito pelos contemporâneos e admiração pelos antigos. Um cult: traduzido até para o russo, escreveu, entre tantas obras, A Febre Amorosa, considerada pela crítica uma mistura de Machado de Assis com Oswald de Andrade (aliás, no posfácio desse grande livro, teve a coragem de colocar as críticas positivas e negativas que lhe fizeram, talvez para mostrar que literatura é, antes de tudo, uma questão de gosto – ninguém faz tese sobre assunto de que não gosta, não é?). Demonstrou no romance um perfeito domínio da técnica narrativa, ironia, humor, inteligência e, não menos importante, conhecimento da língua (algo meio desprezado hoje em dia, mas essencial: difícil produzir arte sem dominar os instrumentos e os materiais, sejam eles o idioma, os pincéis, o gesso ou as teclas de um piano). Eustáquio também parecia ter algo que cada vez mais me interessa na estética oriental e me afasta da ocidental: o chamado pelos japoneses espírito “shokunin”, do artista que trabalha com humildade, na condição de aprendiz eterno por anos a fio, e para o qual a vaidade atrapalha a criação e o aprimoramento da arte. São aqueles artistas japoneses, chineses, tibetanos, sábios que praticam todos os dias e que, com 80 anos de idade, apenas esperam fazer melhor quando chegarem aos 100. Gostaria de ver o que ele teria produzido daqui a 40 anos, se eu mesma estivesse viva lá. Quando eu crescer, quero ser escritora como Eustáquio Gomes.

 

(Leila Guenther)