terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Do meu Livro de Travesseiro (IV)


Um dos meus textos à maneira do Livro de Travesseiro, de Sei Shônagon, publicado na revista Tema, n. 61, janeiro/junho 2015, Uniesp.

O Livro de Cabeceira, de A a G

A

A pele mais adequada para ser escrita deve ser muito clara, talvez a de um corpo cujo cabelo bem escuro sugira o brilho da tinta preta.

B

Estamos especulando sobre uma fantasia erótica que combina duas fascinações sem limites: o corpo e a literatura.




C

O Livro de Cabeceira de Sei Shônagon é uma obra da literatura clássica japonesa, escrita há mil anos por uma dama-da-corte imperial. É um elegante e refinado diário, feito com engenhosidade e muita inteligência por uma mulher sensível e de forte caráter. O diário, tal como outros diários do mesmo tipo (este não era o único existente), era guardado dentro da gaveta de um travesseiro de madeira, sobre o qual a autora encostava sua cabeça durante a noite. O filme diz respeito a uma moderna Sei Shônagon, que viveu nos anos 90 em Hong Kong. E essa história passa, certamente, por uma grande reviravolta.

D

Essa Sei Shônagon contemporânea é passional, ao ponto de abandonar tudo pela literatura, pelas palavras, pela escrita, pelos escritores, poetas e homens de letras. Ela mantém um armário em sua casa, um grande armário europeu do século XVIII. Mas dentro não há nenhum papel. Seu corpo é o papel.

E


Essa mulher tem vinte, talvez vinte e oito, ou mesmo trinta anos, mas não menos. Ela é bonita. É alta. Tem um corpo ideal para modelar roupas. É uma exilada do Japão, com uma história pessoal marcada por uma educação primorosa. Dona de uma sensibilidade refinada, é afeita à tradição de decorar o corpo com tatuagens e cosméticos, e à literatura que, através da caligrafia, se constitui num meio caminho para a pintura. Neste momento, vamos supor que essa mulher vem de Kioto, cidade da própria Sei Shônagon. O seu nome é Nagiko, o mesmo que alguns historiadores pensam ser o nome familiar de Sei Shônagon.


F

Nessa narrativa específica, o pai de Nagiko é um escritor com uma modesta, porém venerável, reputação: ele escreve estórias sobre crianças espertas que solucionam mistérios através da matemática. O pai pinta, delicadamente, uma mensagem de aniversário no rosto da filha. A mensagem completa-se com o nome dela e o seu. Ele pinta a mensagem nas bochechas da menina, em volta dos lábios e sobre as pálpebras. Ele faz isso a cada aniversário, desde quando sua filha tinha três anos até que ela se case, aos dezoito. A origem desse costume, dizem, remonta a um tempo em que Deus moldou em argila os primeiros seres humanos e pintou nos olhos, nos lábios e no sexo de cada um deles um nome e uma bênção para ajudá-los a seguirem o seu caminho na vida. Se Deus aprovava a criação, assinava o próprio nome, e só depois dava ao modelo de argila pintado o sopro de vida.




Nos primeiros aniversários de Nagiko, quando seu rosto era delicadamente pintado com a saudação paterna, ela tinha permissão para usar os pincéis e o tinteiro do pai, e este a incentivava a escrever. A partir daí surgiu o desejo de Nagiko de um dia se tornar uma escritora.

A menina adorava ter o rosto pintado, de aniversário a aniversário. Isso lhe trazia o conforto e o amor de sua família – o prazer de viver em uma casa cheia de livros e palavras. Tudo isso se tornou um profundo deleite que ela temia perder. Ela, uma mulher no exílio, vive agora em Hong Kong.

G

Depois de seu décimo-oitavo aniversário, Nagiko anseia em vão pela carícia do pincel em suas faces, o hálito de seu pai em suas bochechas e a sensação da tinta úmida secando lentamente em sua pele. Ela agora vive na expectativa de reviver o prazer de seus aniversários de infância. Ela exige que seus amantes escrevam em seu rosto, no seu corpo, exatamente como seu pai e o Deus da criação antes dele.
(...)



(Peter Greenaway, versão inicial do roteiro de The pillow book. Trad. Maria Esther Maciel. Zunái: revista de poesia e debates, n. XXVIII, São Paulo, Lumme Editor, 2013)

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

"Minha própria vida": Oliver Sacks sobre a descoberta de estar com câncer terminal


Há um mês, sentia que estava bem de saúde, saudável mesmo. Aos 81 anos, ainda nado quase 2000 m por dia. Mas minha sorte se esgotou – algumas semanas atrás descobri que tenho metástases múltiplas no fígado. Há nove anos detectou-se um tumor raro em um de meus olhos, um melanoma ocular. Embora a radiação e o laser utilizados para remover o tumor me deixassem por fim cego daquele olho, apenas em casos raros ocorrem metástases nesses tumores. Estou entre os 2% dos azarados.
Sinto-me grato por ter sido presenteado com nove anos de boa saúde e produtividade desde o diagnóstico inicial, mas agora me vejo cara a cara com a morte. O câncer toma um terço do meu fígado e, apesar de seu avanço poder ser retardado, esse tipo específico de câncer não pode ser detido.
É minha decisão agora escolher como viver os meses que me restam. Tenho de vivê-los da forma mais rica, profunda e produtiva que puder. Nisso sou encorajado pelas palavras de um de meus filósofos favoritos, David Hume, que, ao descobrir que estava condenado por uma doença aos 65 anos, escreveu uma curta autobiografia em um único dia de abril de 1776. Ele a intitulou Minha própria vida.
“Agora só posso contar com uma rápida dissolução”, escreveu ele. “Sofri poucas dores com minha doença e, o que é mais estranho: não obstante o grande declínio de minha pessoa, nunca sofri, em momento algum, o abatimento de meu entusiasmo. Guardo o mesmo ardor de sempre nos estudos e o mesmo júbilo quando estou acompanhado”.
Tive sorte suficiente de viver mais de 80 anos, e os 15 concedidos além dos 65 de vida de Hume foram igualmente ricos em trabalho e amor. Nesse tempo, publiquei cinco livros e terminei uma autobiografia (um pouco mais longa do que as reduzidas páginas de Hume) que será publicada na primavera; tenho vários outros livros quase prontos.
Hume prossegue: “Sou… um homem de atitudes brandas, de temperamento controlado, de disposição alegre, sociável, expansiva, capaz de afeições, mas pouco suscetível a inimizades e de grande moderação em todas as minhas paixões”.
Aqui divirjo de Hume. Embora tenha desfrutado de relacionamentos amorosos, de amizades e não tenha inimigos verdadeiros, não posso dizer (nem ninguém que me conheça o poderia) que eu seja um homem de atitudes brandas. Pelo contrário, sou um homem de atitudes veementes, com entusiasmos violentos e descomedimento em todas as minhas paixões.
E, no entanto, uma linha do ensaio de Hume me arrebata por completo: “É difícil”, escreve ele, “estar mais apartado da vida do que estou agora”.
Nos últimos dias, fui capaz de olhar minha vida como se de uma grande altitude, uma espécie de paisagem, e com um profundo senso de conexão entre todas as suas partes. Isso não significa que eu já tenha acabado de viver.
Ao contrário, sinto-me intensamente vivo e quero e espero que durante o tempo que me resta possa aprofundar minhas amizades, despedir-me daqueles que amo, escrever mais, viajar se ainda tiver forças, alcançar novos níveis de conhecimento e compreensão.
Isso envolverá audácia, clareza e a capacidade de falar francamente; vou tentar acertar minhas contas com o mundo. Mas também haverá tempo para diversão (e inclusive para alguma tolice).
Sinto um súbito foco claro e perspectiva. Não há tempo para nada que não seja essencial. Devo me concentrar em mim, em meu trabalho e meus amigos. Não verei mais “NewsHour” todas as noites. Não prestarei mais atenção na política ou em discussões sobre o aquecimento global.
Isso não é indiferença, mas afastamento – eu ainda me importo profundamente com o Oriente Médio, com o aquecimento global, com a crescente desigualdade, mas esses assuntos não me competem mais: eles pertencem ao futuro. Eu me alegro quando encontro jovens talentosos – mesmo aquele que fez a biópsia em mim e diagnosticou as metástases. Sinto que o futuro está em boas mãos.
Tornei-me cada vez mais consciente, nos últimos dez anos, das mortes entre meus contemporâneos. Minha geração está de saída, e sinto cada morte como uma interrupção brusca, uma ruptura de uma parte de mim. Não haverá ninguém como nós quando tivermos partido, mas também não existe uma pessoa igual à outra, nunca. Quando elas morrem, não podem ser substituídas. Elas deixam buracos que não podem ser preenchidos, pois assim é o destino – o destino genético e neural – de todo ser humano: o de ser um indivíduo único, de encontrar seu próprio caminho, de viver sua própria vida, de morrer sua própria morte.
Não vou fingir que não tenho medo. Mas meu sentimento predominante é o de gratidão. Amei e fui amado; recebi muito e ofereci algo em troca; li, e viajei, e refleti, e escrevi. Tive uma comunicação com o mundo, aquela comunicação especial que existe entre escritores e leitores.
Acima de tudo, fui um ser capaz de sentir, um animal pensante, neste belo planeta, e isso por si só foi um enorme privilégio e uma aventura.


(Oliver Sacks, professor de Neurologia da New York University School of Medicine, é autor de vários livros, que incluem Tempo de Despertar e O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu) 


A tradução do texto é minha. O original do New York Times, de 19/2/2015, está aqui.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

"Romã" em inglês



Meu conto "Romã", publicado pela primeira vez na antologia 50 versões de amor e prazer: 50 contos eróticos por 13 autoras brasileiras (Geração Editorial, 2012), agora traduzido em inglês, por Lindsay Puente, para a revista inglesa Wasafiri, no número dedicado ao Brasil.