terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

O Livro de Cabeceira, de A a G

A

A pele mais adequada para ser escrita deve ser muito clara, talvez a de um corpo cujo cabelo bem escuro sugira o brilho da tinta preta.

B

Estamos especulando sobre uma fantasia erótica que combina duas fascinações sem limites: o corpo e a literatura.




C

O Livro de Cabeceira de Sei Shônagon é uma obra da literatura clássica japonesa, escrita há mil anos por uma dama-da-corte imperial. É um elegante e refinado diário, feito com engenhosidade e muita inteligência por uma mulher sensível e de forte caráter. O diário, tal como outros diários do mesmo tipo (este não era o único existente), era guardado dentro da gaveta de um travesseiro de madeira, sobre o qual a autora encostava sua cabeça durante a noite. O filme diz respeito a uma moderna Sei Shônagon, que viveu nos anos 90 em Hong Kong. E essa história passa, certamente, por uma grande reviravolta.

D

Essa Sei Shônagon contemporânea é passional, ao ponto de abandonar tudo pela literatura, pelas palavras, pela escrita, pelos escritores, poetas e homens de letras. Ela mantém um armário em sua casa, um grande armário europeu do século XVIII. Mas dentro não há nenhum papel. Seu corpo é o papel.

E


Essa mulher tem vinte, talvez vinte e oito, ou mesmo trinta anos, mas não menos. Ela é bonita. É alta. Tem um corpo ideal para modelar roupas. É uma exilada do Japão, com uma história pessoal marcada por uma educação primorosa. Dona de uma sensibilidade refinada, é afeita à tradição de decorar o corpo com tatuagens e cosméticos, e à literatura que, através da caligrafia, se constitui num meio caminho para a pintura. Neste momento, vamos supor que essa mulher vem de Kioto, cidade da própria Sei Shônagon. O seu nome é Nagiko, o mesmo que alguns historiadores pensam ser o nome familiar de Sei Shônagon.


F

Nessa narrativa específica, o pai de Nagiko é um escritor com uma modesta, porém venerável, reputação: ele escreve estórias sobre crianças espertas que solucionam mistérios através da matemática. O pai pinta, delicadamente, uma mensagem de aniversário no rosto da filha. A mensagem completa-se com o nome dela e o seu. Ele pinta a mensagem nas bochechas da menina, em volta dos lábios e sobre as pálpebras. Ele faz isso a cada aniversário, desde quando sua filha tinha três anos até que ela se case, aos dezoito. A origem desse costume, dizem, remonta a um tempo em que Deus moldou em argila os primeiros seres humanos e pintou nos olhos, nos lábios e no sexo de cada um deles um nome e uma bênção para ajudá-los a seguirem o seu caminho na vida. Se Deus aprovava a criação, assinava o próprio nome, e só depois dava ao modelo de argila pintado o sopro de vida.




Nos primeiros aniversários de Nagiko, quando seu rosto era delicadamente pintado com a saudação paterna, ela tinha permissão para usar os pincéis e o tinteiro do pai, e este a incentivava a escrever. A partir daí surgiu o desejo de Nagiko de um dia se tornar uma escritora.

A menina adorava ter o rosto pintado, de aniversário a aniversário. Isso lhe trazia o conforto e o amor de sua família – o prazer de viver em uma casa cheia de livros e palavras. Tudo isso se tornou um profundo deleite que ela temia perder. Ela, uma mulher no exílio, vive agora em Hong Kong.

G

Depois de seu décimo-oitavo aniversário, Nagiko anseia em vão pela carícia do pincel em suas faces, o hálito de seu pai em suas bochechas e a sensação da tinta úmida secando lentamente em sua pele. Ela agora vive na expectativa de reviver o prazer de seus aniversários de infância. Ela exige que seus amantes escrevam em seu rosto, no seu corpo, exatamente como seu pai e o Deus da criação antes dele.
(...)



(Peter Greenaway, versão inicial do roteiro de The pillow book. Trad. Maria Esther Maciel. Zunái: revista de poesia e debates, n. XXVIII, São Paulo, Lumme Editor, 2013)

Nenhum comentário:

Postar um comentário