A
A pele mais adequada para ser escrita deve ser
muito clara, talvez a de um corpo cujo cabelo bem escuro sugira o brilho da
tinta preta.
B
Estamos especulando sobre uma fantasia erótica que
combina duas fascinações sem limites: o corpo e a literatura.
C
O Livro de
Cabeceira de Sei Shônagon é uma obra da literatura clássica japonesa,
escrita há mil anos por uma dama-da-corte imperial. É um elegante e refinado
diário, feito com engenhosidade e muita inteligência por uma mulher sensível e
de forte caráter. O diário, tal como outros diários do mesmo tipo (este não era
o único existente), era guardado dentro da gaveta de um travesseiro de madeira,
sobre o qual a autora encostava sua cabeça durante a noite. O filme diz
respeito a uma moderna Sei Shônagon, que viveu nos anos 90 em Hong Kong. E essa
história passa, certamente, por uma grande reviravolta.
D
Essa Sei Shônagon contemporânea é passional, ao
ponto de abandonar tudo pela literatura, pelas palavras, pela
escrita, pelos escritores, poetas e homens de letras. Ela mantém um armário em
sua casa, um grande armário europeu do século XVIII. Mas dentro não há nenhum
papel. Seu corpo é o papel.
E
Essa mulher tem vinte, talvez vinte e oito, ou
mesmo trinta anos, mas não menos. Ela é bonita. É alta. Tem um corpo ideal para
modelar roupas. É uma exilada do Japão, com uma história pessoal marcada por
uma educação primorosa. Dona de uma sensibilidade refinada, é afeita à tradição
de decorar o corpo com tatuagens e cosméticos, e à literatura que, através da
caligrafia, se constitui num meio caminho para a pintura. Neste momento, vamos
supor que essa mulher vem de Kioto, cidade da própria Sei Shônagon. O seu nome
é Nagiko, o mesmo que alguns historiadores pensam ser o nome familiar de Sei
Shônagon.
F
Nessa narrativa específica, o pai de Nagiko é um
escritor com uma modesta, porém venerável, reputação: ele escreve estórias
sobre crianças espertas que solucionam mistérios através da matemática. O pai
pinta, delicadamente, uma mensagem de aniversário no rosto da filha. A mensagem
completa-se com o nome dela e o seu. Ele pinta a mensagem nas bochechas da
menina, em volta dos lábios e sobre as pálpebras. Ele faz isso a cada
aniversário, desde quando sua filha tinha três anos até que ela se case, aos
dezoito. A origem desse costume, dizem, remonta a um tempo em que Deus moldou
em argila os primeiros seres humanos e pintou nos olhos, nos lábios e no sexo
de cada um deles um nome e uma bênção para ajudá-los a seguirem o seu caminho
na vida. Se Deus aprovava a criação, assinava o próprio nome, e só depois dava
ao modelo de argila pintado o sopro de vida.
Nos primeiros aniversários de Nagiko, quando seu
rosto era delicadamente pintado com a saudação paterna, ela tinha permissão
para usar os pincéis e o tinteiro do pai, e este a incentivava a escrever. A
partir daí surgiu o desejo de Nagiko de um dia se tornar uma escritora.
A menina adorava ter o rosto pintado, de
aniversário a aniversário. Isso lhe trazia o conforto e o amor de sua família –
o prazer de viver em uma casa cheia de livros e palavras. Tudo isso se tornou
um profundo deleite que ela temia perder. Ela, uma mulher no exílio, vive agora
em Hong Kong.
G
Depois de seu décimo-oitavo aniversário, Nagiko
anseia em vão pela carícia do pincel em suas faces, o hálito de seu pai em suas
bochechas e a sensação da tinta úmida secando lentamente em sua pele. Ela agora
vive na expectativa de reviver o prazer de seus aniversários de infância. Ela exige
que seus amantes escrevam em seu rosto, no seu corpo, exatamente como seu pai e
o Deus da criação antes dele.
(...)
(Peter Greenaway, versão
inicial do roteiro de The pillow book.
Trad. Maria Esther Maciel. Zunái: revista
de poesia e debates, n. XXVIII, São Paulo, Lumme Editor, 2013)
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