Dois trechos de Escute
as feras, da antropóloga francesa Nastassja Martin, que viveu com o povo
Even, da Sibéria, e sobreviveu ao ataque de um urso. Tentaram “civilizar” os
Even à força, mas muitos, depois da queda do regime soviético, voltaram a viver
nas florestas de Tvaian, em busca de reconexão com suas origens:
Não sinto dores de fato. Só sinto medo, medo de tudo aquilo que não voltou a se
fechar em mim, de tudo aquilo que potencialmente se insinuou em mim. Há outros
seres à espreita na minha memória; então talvez também haja alguns debaixo da
minha pele, nos meus ossos. Essa ideia me aterroriza, porque não quero ser um
território invadido. Quero fechar minhas fronteiras, expulsar os intrusos,
resistir à invasão. Mas talvez eu já esteja sitiada. É sempre a mesma coisa.
Diante de pensamentos assim, eu afundo: sei que, para fechar minhas fronteiras,
seria preciso antes poder reconstruí-las.
Teria sido tão simples
se minha perturbação interior se resumisse a uma problemática familiar não
resolvida, ao meu pai morto cedo demais, às expectativas não satisfeitas da
minha mãe. Então eu poderia “resolver” minha depressão. Mas não. Meu problema é
que meu problema não pertence apenas a mim. Que a melancolia que se exprime no
meu corpo vem do mundo. Acredito que sim, é possível se tornar “o vento que
sopra através de nós”, como dizia Lowry. E que é comum não voltar atrás, como
ele, como tantos outros. Fui ter com os evens do Itcha e vivi na floresta com
eles por uma razão bem distante de uma pesquisa comparativa. Entendi uma coisa:
o mundo desmorona simultaneamente em todos os lugares, apesar das aparências. O
que acontece em Tvaián é que se vive conscientemente em suas ruínas.
(Nastassja Martin, Escute as feras. Trad. Camila Vargas Boldrini e
Daniel Lühmann, Editora 34.)
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