segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Escute as feras

Dois trechos de Escute as feras, da antropóloga francesa Nastassja Martin, que viveu com o povo Even, da Sibéria, e sobreviveu ao ataque de um urso. Tentaram “civilizar” os Even à força, mas muitos, depois da queda do regime soviético, voltaram a viver nas florestas de Tvaian, em busca de reconexão com suas origens:

Não sinto dores de fato. Só sinto medo, medo de tudo aquilo que não voltou a se fechar em mim, de tudo aquilo que potencialmente se insinuou em mim. Há outros seres à espreita na minha memória; então talvez também haja alguns debaixo da minha pele, nos meus ossos. Essa ideia me aterroriza, porque não quero ser um território invadido. Quero fechar minhas fronteiras, expulsar os intrusos, resistir à invasão. Mas talvez eu já esteja sitiada. É sempre a mesma coisa. Diante de pensamentos assim, eu afundo: sei que, para fechar minhas fronteiras, seria preciso antes poder reconstruí-las.

Teria sido tão simples se minha perturbação interior se resumisse a uma problemática familiar não resolvida, ao meu pai morto cedo demais, às expectativas não satisfeitas da minha mãe. Então eu poderia “resolver” minha depressão. Mas não. Meu problema é que meu problema não pertence apenas a mim. Que a melancolia que se exprime no meu corpo vem do mundo. Acredito que sim, é possível se tornar “o vento que sopra através de nós”, como dizia Lowry. E que é comum não voltar atrás, como ele, como tantos outros. Fui ter com os evens do Itcha e vivi na floresta com eles por uma razão bem distante de uma pesquisa comparativa. Entendi uma coisa: o mundo desmorona simultaneamente em todos os lugares, apesar das aparências. O que acontece em Tvaián é que se vive conscientemente em suas ruínas.


(Nastassja Martin, Escute as feras. Trad. Camila Vargas Boldrini e Daniel Lühmann, Editora 34.)


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