quinta-feira, 29 de novembro de 2018

A mulher que falou primeiro



Eu sei que falar do poder das palavras é um lugar-comum. No entanto, não posso me esquivar de fazê-lo quando se trata da obra de Adriana Versiani dos Anjos. Talvez até por motivos pessoais: quando me iniciei na literatura, com pequenos contos, era como ela que eu queria escrever. Foi sua prosa curta, poética e estranha que ainda não tinha visto em nenhum outro lugar que me chamou a atenção no projeto mineiro Poesia Orbital. Mais tarde, quando estive à beira da morte, Adriana, que eu tinha visto pessoalmente apenas uma vez, dedicou-me um belíssimo poema, “O templo de Leila e a chave que perdi”, publicado no jornal Dezfaces. E eu, a despeito de todos os prognósticos médicos, sobrevivi. E foram seus textos poéticos, como os de A lâmina que matou meu pai, com imagens tão inquietantes, com aquela leveza terrível que os anjos possuem, que me ensinaram a produzir todo um livro quando, posteriormente, me aventurei pela poesia. Por isso me refiro ao poder que as palavras têm. De mudar nossa vida, de nos matar, de nos salvar. Inclusive à nossa revelia. De Adriana, deixo este texto que evoca a mulher primeira, mágica, que, antes da calada Eva, teve a coragem de dizer: “Meu nome é linguagem”.

(Leila Guenther)



Lilith

I
Hora do Angelus:
As amaldiçoadas Evas de Santana do Rio Verde
                            [batem com o joelho no chão.
Ainda uma menina o tempo se abre para mim.
Anoitece e tento mais uma vez esta história.
Meu nome é linguagem.

II
Atravessei a estrada carregando umas coisas.
A vida não era mais o que houve até então.
A dez minutos do pasto seco, esta casa é a cidade
[de matutos e livros empoeirados.
Nesta tarde, um novilho rumina três vezes
[antes de morrer.
Sento à sua sombra.

III
Mais cedo meu pai deseja a minha morte.
Da palavra de homem apanho calada até
   [os sinos rebentarem.
Sou linguagem.

IV
Quinze mulheres me ensinaram a ler o destino
[nos farelos de pão espalhados pela
[mesa do café, todas as manhãs.
Todas as manhãs, as roupas no varal.
As notícias no velho rádio de válvulas,
[todas as manhãs.
Com minha avó aprendi a cantar.
O resto li nos livros.

V
Imóvel, amarrada a esta cadeira não tenho força
   [para cortar os pulsos.
O imbecil trancou-se na gaiola.
Mãe, a Guerra Santa mal começou.

VI
Briga de socos.
Coração é músculo.
O líquido que escorre entre as minhas pernas
[mancha a história do quintal.
Um dente cai sobre o chão de terra batida.
Se fosse sonho seria presságio.

VII
Travesseiro de macela e uma noite de amor.
Este homem parece um menino quando dorme.
Passo o café no coador de pano.
Casa, seu cheiro é linguagem

VIII
O tempo se abre para mim e do outro lado da
[mesa me vejo no meu irmão.
Depois do mata-burro tem um lago.
Brincamos de sermos os sanhaços azuis que
    [tomam banho lá, eu e meu irmão.

IX
Juro que eu queria que todas as flores
[procurassem o sol.
Água corrente, juro que eu queria.
Juro que eu queria alimentar a chama.
Minha sina de mulher, juro que eu queria.
Guardei todos os escritos no baú que herdei do
[meu avô, para que meus filhos vejam.
No dia da minha morte, tudo que eu queria.

X
A menininha tossiu e me levantei para cobri-la.
Senti frio.
Fingimos dormir, enquanto as botas tingem de
[terra os tacos.

XI
Pálida, fraca.
O viço se misturando à lã do cobertor marrom.
Não abre mais os olhos.
Matar-se resolveria o problema.
Sua vingança:
Viver para sempre deitada no sofá da sala.

(Adriana Versiani dos Anjos)


sábado, 24 de novembro de 2018

Dois poemas para o futuro


CALMA E FUGA

lendo cruzo a avenida
pensando no poema
que fala de uma mulher livre
e de um homem feito dardo
que ela atira para longe de si

a tarde morna já se despede
e tudo parece tecido
em fios de ausência e desespero
enquanto os mortos de hoje
juntam-se aos corpos de ontem

fingimos calma, somos fuga
e ninguém sabe bem em que esquina
a conversa falhou e deixou
essa lembrança sem margens
nos olhos, nos ossos, no vento




LUGAR

um país
é descoberto
a cada manhã

a cada manhã
um mesmo país
se descobre

e chove forte
sobre o território
indefeso

todo dia
um país é tragado
em seus lençóis

e os dias passam
úmidos e tristes
sob a terra fértil

à espera do sol
que o evapore
e invente

(Tarso de Melo, Alguns rastros: uma antologia. Goiânia, Ed. Martelo, 2018)