quarta-feira, 20 de março de 2019

Uma certa planície


É provável que eu nunca mais vá ler com o mesmo afinco, na mesma quantidade, que lia quando tinha nove, dez anos. Essa época de descoberta da leitura, do assombro da palavra escrita, nunca mais vai voltar. Refleti sobre isso num conto-crônica, “O outro mundo de Clarissa”, uma referência ao romance de Érico Veríssimo que de forma meio atrapalhada me fez ter consciência de que um mundo inteiro poderia ser criado a partir de palavras, apenas. Atrapalhada porque cheguei a pensar que se tratasse de algo sobrenatural, de uma espécie de clarividência meio voyeur que adquiríamos ao ler. Clarissa devia existir em algum lugar do Rio Grande do Sul simplesmente porque eu podia vê-la e à sua vida, naquela casa, com a clareza e a nitidez de quem tem uma bola de cristal.
Eu me lembro de ter encontrado numa tarde, na estante de meus avós, A hora dos ruminantes, de José J. Veiga. Até hoje não entendo como foi parar lá, numa casa cujo dono lia (muito) em japonês e cuja dona era praticamente analfabeta (gostaria de encontrar entre os escombros o caderno de receitas de minha avó, que anotava maravilhas numa língua que ela própria criou, com uma espécie de hiper-correção, já que os japoneses não falam o L: ela anotava "tlês xícalas de falinha de tligo", assim mesmo). Num dos intermináveis almoços de domingo, eu li o tal romance de J. Veiga inteiro, o mais rápido que pude, com uma espécie de medo de que ele pudesse desaparecer, não estar mais ali na próxima visita, ou, se eu o pegasse emprestado, de que ele pudesse se autodestruir (é verdade que sou maluca e que foi nessa época que apareceram os primeiros sintomas da depressão). Até hoje não conheço título mais lindo: A hora dos ruminantes. Talvez tenha sido o primeiro passo para perceber o poder do som. Nessa época me dei conta do encantamento que o som das palavras produzia em mim. O fato de haver poemas infantis da Cecília Meireles no livro didático ajudou: eu os lia na classe, em voz alta, a pedido da professora, surpresa com assonâncias e aliterações, mas ainda dividia infantilmente (esse infantilmente pode ser entendido em vários sentidos) som e significado. No entanto, essa divisão ainda estava restrita aos títulos das obras. Essa relação só mudou quando, no livro de interpretação, me deparei com o início de um texto chamado “Mudança” (era o primeiro capítulo de Vidas Secas, vim a saber por minha mãe, e o vi também mencionado em livros como os de Ganymedes José, que li aos montes): “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes”. O texto que se seguiu mudou minha vida para sempre, mesmo que eu desconhecesse o significado de juazeiro, aió, pederneira, excomungado, viventes (e de tantas outras palavras, mais para a frente, como atenazar, que ninguém além de Graciliano usa), porque foi a partir daí que o som se uniu ao significado, tendo eu que procurar todas as palavras que não conhecia no velho dicionário que havia em casa, cujas folhas iam caindo como se fosse uma árvore.
Segui por vários caminhos, tantas leituras, lendo palavras, sons, imagens discrepantes, olhares, plantas, bichos, mas “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes” continua comigo como um mantra, uma oração. Eu queria, por isso, dizer (tentando recuperar minha infância por meio dos versos de Manuel Bandeira, em “Porquinho-da-Índia") que Graciliano Ramos foi meu primeiro namorado (naquela época de menina em que para namorar bastava desejar, mesmo que o objeto do sentimento não soubesse), mas tudo o que me ocorre agora é parafrasear o próprio Graciliano: "Foi esse o primeiro contato que tive com o amor."

5 comentários:

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    1. é que não tive a intenção de falar das obras em si, mas da frequência e da intensidade com que eu lia nessa época (tão distante)

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Que texto delicioso de se ler. Só hoje, e por acaso, soube de seu blog. Parabéns, Leila!

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