quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Por falar em silêncio

 



Se me perguntassem do novo filme do diretor alemão Wim Wenders, Perfect Days, ambientado no Japão, eu responderia como Glória Pires: “não sou capaz de opinar”. Estou demasiado dentro dele para julgar. Transito nele com naturalidade. Viveria nele sem problemas. Talvez por descender de alemães e de japoneses? Mas ocorre que também me sinto completamente à vontade num de seus filmes americanos, sem ter nada de americana: Paris, Texas, cujo protagonista se recusa a falar e que, quando resolve fazê-lo, e de forma eloquente, eu poderia dublar de cor; Paris, Texas, onde eu compraria um terreno imaginário para construir uma casa que não existe, só para poder ficar calada sem ter de dar explicações. O protagonista de Perfect Days, responsável pela limpeza de banheiros públicos, quase não fala, como o de Paris, Texas, embora também seja eloquente. Wim Wenders conseguiu fazer um filme mais japonês que o próprio Japão. Wim Wenders, que, com seu documentário Tokyo-Ga, deu a melhor explicação para o silêncio e o alheamento japonês do pós-guerra. “O que você disse?”, pergunta meu companheiro em determinado momento do longa. E eu não havia dito nada: ele é que tinha confundido a voz de uma das personagens com a minha.

Em tempos: dizem que nos antigos e silenciosos mosteiros zen-budistas japoneses, onde quase todas as atividades eram realizadas em revezamento pelos monges, apenas uma era executada pelo mais alto na hierarquia: a limpeza dos banheiros.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

O pelo do cachorro

 O cachorro partiu. Sentimos falta dele. Quando tocam a campainha, ninguém late. Quando chegamos tarde em casa, não há ninguém nos esperando. Ainda encontramos seus pelos brancos aqui e ali, espalhados pela casa e em nossas roupas. Nós os recolhemos. Devíamos jogar fora. Mas é a única coisa que sobrou dele. Não jogamos fora. Temos uma esperança doida - se ao menos pudéssemos juntar bastante pelo, poderíamos montar o cachorro novamente.

(Lydia Davis, tradução minha)




domingo, 3 de setembro de 2023

Murasaki Shikibu

Palavras daquela que inventou um gênero literário (o romance), quase mil anos antes do que o cânone apregoava: 

(...) tímida, pouco amiga de olhares estranhos, retraída, amante de velhas histórias, tão aficionada à poesia que quase nada me interessa, e desdenhando toda a gente, na desagradável opinião que de mim os outros fazem. E, no entanto, quando me conhecem consideram-me muito suave e diferente do que lhes fizeram supor. Sei que muitos me consideram uma espécie de proscrita, mas habituei-me a isso e digo para mim mesma:

EU SOU COMO SOU. 

(Murasaki Shikibu. c.978-c.1014)


 


sexta-feira, 14 de julho de 2023

Celeste Ng (II)

 


Não sei quanto tempo levará para eu encontrar um livro tão poderoso quanto o que acabo de ler, Os corações perdidos (Intrínseca, trad. Fernanda Abreu), de Celeste Ng, uma distopia em que os asiáticos estadunidenses são transformados em bode expiatório para o declínio do império americano. O ponto chave é a retirada sumária da guarda das crianças dos pais considerados perigosos ao sistema para serem realocados em lares onde as famílias nunca mais as encontrarão. O capítulo em que as histórias dos filhos são referidas, lembradas pelos pais e reunidas por alguém que crê no poder da memória e da palavra escrita é algo à parte, que se eleva para entrar no panteão dos melhores capítulos da literatura que eu já pude ler. E, segundo a autora, o tema foi emprestado da realidade, principalmente da dos imigrantes. A realidade que desde sempre sequestra os humanos mais indefesos (e continuará a fazê-lo) para colocá-los numa condição de desamparo da qual não há retorno possível.


Celeste Ng (I)

A primeira obra que li neste ano é um dos romances que serão debatidos no Clube de Leitura Mulheres Asiáticas: Tudo o que nunca contei, da escritora sino-americana Celeste Ng, uma das escritoras do que se denomina diáspora. É a história de um casal inter-racial amoroso cuja filha, Lydia, - na qual os pais depositaram todos os seus próprios anseios - morre aos dezesseis anos. Percebi horrorizada que esta é minha história também, a história de quem carrega um peso que, aos olhos dos outros, nem parece existir. Procurar cumprir expectativas com as quais não se identifica, fingir ser o que não é, estar apartada, ser rejeitada (no livro, isso significa não ter amigas, não ser convidada para eventos relacionados à escola, não ser desejada por nenhum garoto, ser motivo de piadinhas pelas suas feições exóticas num mundo de brancos), ter vergonha de si mesma, nunca ser aceita de verdade por nenhum dos lados da família (por não ser nem completamente branca nem completamente amarela), sublimar tudo, ter vontade de sumir, de poder enfim respirar. Ninguém, antes da morte de Lydia, consegue verbalizar e enfrentar a verdade: a dificuldade de integração que faz com que mestiços vivam precariamente se equilibrando sobre um fio. O exílio constante de quem, como um tipo de aberração, não faz nunca parte de nada. A morte da garota se dá em 1977. Mestiça que sou, se eu tivesse vivido minha adolescência nessa época, também não sei se teria sobrevivido. Nasci em 1976 e até hoje não me recuperei das feridas.

 

“Na cama de Lydia, Marilyn abraça os joelhos feito uma menininha, tentando preencher as lacunas entre o que James disse, o que ele pensa e o que quis dizer. ‘Sua mãe tinha razão desde o início. Você deveria ter se casado com alguém que tivesse mais a ver com você’. Havia tanta amargura na voz dele que Marilyn ficou sem reação. As palavras são familiares, e ela as pronuncia em silêncio, tentando situá-las. Então, lembra. No dia de seu casamento, no cartório: sua mãe lhe avisou sobre seus filhos, como eles não se integrariam a lugar algum. ‘Você vai se arrepender’, disse, como se eles fossem ser maltratados, imbecilizados e condenados, e lá fora, na recepção, James devia ter ouvido tudo. Marilyn disse apenas: ‘Minha mãe acha que devo me casar com alguém que tenha mais a ver comigo’, depois jogou o assunto para longe, como poeira no chão. Mas aquelas palavras haviam assombrado o marido. Como deviam ter se enrolado em seu coração, apertando cada vez mais ao longo dos anos, entranhando-se na carne. Ele baixou a cabeça feito um assassino, como se seu sangue fosse veneno, como se se arrependesse de sua filha ter um dia existido.”

 

(Celeste Ng, Tudo o que nunca contei. Trad. Julia Sobral Campos. Intrínseca)

 

 



quinta-feira, 13 de julho de 2023

Precoce/ Precoz

 Precoce

 

À memória de Valentina Doniez

  

Morrem logo os que vivem mais

Porque se esvaem rápido

Para evitar a inundação

 

Em tudo o que fazem

Desviam um trecho de si

Que é impossível rastrear depois

 

Perdem os anéis e os dedos

Que em seguida são enxertados

Em quem não tem nem um nem outro

 

Emprestam-se mesmo

Quando não devolvidos

E então também somem

Alguns livros de seus corpos

 

E vivem. Vivem muito no pouco do Tempo

E morrem de excesso de vida

 

A pele se despregou quando os leões a devoravam

E ela lhes retribuiu uma risada com o que 

                                                       [restou de seus lábios

 

Uma garota de balaclava balança uma bandeira

No meio da praça de um país imaginário

Onde jovens estão dando à luz um outro mundo

 

Todos eles escutam seu chamado

 

Hoje retiramos sua foto de nossas vistas

E me recuso a imaginar

A forma que você tomou

Embora nenhum de nós esqueça ou esquecerá

A inteireza de seu rosto

Trancado no porta-retrato

 

Sei que encontrarei fragmentos dele

Espalhados, compondo outros rostos

De outros jovens

Que também não puderam sustentar

O peso da primavera

 

(Leila Guenther)

 

 


Precoz

 

En memoria de Valentina Doniez

 

Mueren pronto los que viven más

Porque se desvanecen rápido

Para evitar la inundación

 

En todo lo que hacen

Desvían un tramo de si

Que después será imposible rastrear

 

Pierden anillos y dedos

Que luego serán injertados

En quienes no tienen ni uno ni otro

 

Se prestan aun   

Cuando no son devueltos

Y entonces también desaparecen

Algunos libros de sus cuerpos

 

Y viven. Viven mucho en lo poco del Tiempo

Y mueren de exceso de vida

 

La piel se despegó cuando los leones la devoraban

Y ella les devolvió una risa con lo que 

                                [quedó de sus labios

 

Una chica con pasamontañas enarbola una bandera

Al centro de una plaza de un país imaginario

Donde jóvenes dan a la luz otro mundo

 

Todos ellos escuchan tu llamado

 

Hoy sacamos tu retrato de nuestra vista

Y me niego a imaginar

La forma que has adquirido

Aunque ninguno de nosotros olvide ni olvidará

La integridad de tu rostro

Encerrado en el marco de la foto

 

Sé que encontraré algunos de sus fragmentos

Desparramados, componiendo otros rostros

De otros jóvenes

Que tampoco pudieron sostener

El peso de la primavera

 

(Traducción de Marcelo Donoso)





Haicais de Chögyam Trungpa Rinpoché


Voltando do trabalho para casa,
Ele ainda escuta o telefone
Tocando no escritório.
                *
O iniciante em meditação
Se assemelha a um cão de caça
Tendo um pesadelo.
                *
Os pais dele tomando chá
Com sua nova namorada:
Um general inspecionando a tropa.
                *
Esquiando de traje vermelho e azul,
Bebendo cerveja gelada com um sorriso encantador -
Imagino se não serei eu um desses.

* Chögyam Trungpa (1939-1987) foi um mestre de meditação do budismo tibetano (vajrayana). Dono de um pensamento original dentro do budismo, escreveu obras como Louca sabedoria e Além do materialismo espiritual. Viveu na Inglaterra e nos Estados Unidos, onde travou amizade com Allen Ginsberg e William Burroughs. Interessou-se especialmente pela arte japonesa. De temperamento inquieto e controverso, morreu aos 48 anos de consequências do alcoolismo.

Os haicais foram traduzidos por mim.

domingo, 16 de outubro de 2022

Carta aberta de nipo-brasileiros e nipo-brasileiras

Tive a alegria de ler em primeira mão e ajudar a revisar esta CARTA DE NIPO-BRASILEIROS E NIPO-BRASILEIRAS pela democracia, organizada, entre outros, por Alexandre Kishimoto.

Todas as pessoas que compartilham do mesmo ideal podem assiná-la aqui: comunidade nipo-brasileira



terça-feira, 26 de julho de 2022

poema dadaísta tupiniquim tirado de umas manchetes do jornal

Nos 100 anos da Semana de Arte Moderna, um número especial da revista Germina Literatura publicou textos de escritores que dialogassem com o Modernismo. Daqui da retaguarda compus este poema inspirado pela vanguarda dadaísta. Para ver melhor e ver outros, clique aqui.




segunda-feira, 25 de julho de 2022

A forma como descobri as 2 espécies de morte

quando pequena eu tinha coelhos e eles me fascinavam tanto

que durante o dia todo não desgrudava deles.

olhava-os sem parar mas jamais me ocorreu

que eram animais que comiam e foi assim

que morreram. eu não conseguia entender por que

isso tinha acontecido se eles sabiam que

eu os amava. para mim só existia um tipo

de morte e era de pena ou tristeza.

depois, um tio me perguntou o que eu dava de

comer aos coelhos e eu achei estranhíssimo.

disse que não lhes dava nada, perguntaram aos

maiores e todos responderam que se

os bichinhos eram meus, seria de imaginar que eu os

alimentava. grande comoção pela morte

dos coelhos.

todos acharam que eu era boba e desnaturada.

eu não me importei, mas pensei

que de agora em diante daria comida a

todas as coisas de que eu gostasse porque isso queria

dizer que havia duas espécies de morte: a de

fome e a de pena.

 

(Cecilia Vicuña, poeta chilena, traduzida por Marcelo Donoso e por mim)





sexta-feira, 22 de julho de 2022

Harawi para Dona María Andrea Parado

 


Harawi1 para Dona María Andrea Parado2


Onde ficou o seu corpo, María Andrea, em que acaso habita? Huamanga chora e meu rosto se transformou na tuna3 que apodreceu de tanto amadurecer.

Que será de mim?

Onde encontrarei suas tranças prateadas, seu cabelo caboclo e prodigioso? Que direi às nossas filhas para apaziguar seus prantos, suas indagações, seu soluço de cordeiro, elas que perderam a luz que fervia seu sangue, seu sol primeiro?

As velas frias da catedral não servem para lhes dar consolo, de onde virá o calor das mãos que acariciavam gentes e animais, de onde virá meu alento desconsolado?

Diga-me onde deixaram o mapa de seu corpo, a figura diminuta que levava as mensagens pensando em seu povo, de nossas filhas seu afeto e luto.

Sangues de liberdade clamam suas veias, a África pulsa e sapateia uma canção em quéchua. Pressagio desgraças com sua ausência, a casa de pedra ensombrecida, suas sombras procurando seu corpo ao lado da videira que se esparrama como um traço de tinta que ditava aquilo que você não podia escrever. Os ditongos noturnos.

O infernal Carratalá4 abriu bocas em seu corpo, dele caíram sementes, plantas novas e dignas, como o eucalipto que se mexe por causa de ventos novos, com o sangue derramado que continuará tingindo as ruas de Huamanga, Huanta, virão massacres de quem seguir o seu exemplo. Em Cangallo procurarão o sal de suas feridas, o presságio de seu sono eterno.

Sol de insultos clamam por você, caminhos de pedra inconclusa, sopro de Quilcamachay.

Que será de nossa vida sem seus desejos? Quem dará sentido à noite escura, ao encanto de Apu5, ao voo da águia sobre nossos cabrestos?

Arderá seu corpo. O novo grito em sua garganta que encerrou a tortura, a paz das aflições de seu corpo inconfessável.

A visão inebriante de seu martírio. De joelhos seu olhar olhando o céu.

Resignada ao último suplício, murmurando: Venha, mundo novo!

(Julio César Zavala. Tradução minha e de Marcelo Donoso)

 

1 Harawi: tipo de música e/ou poesia andina difundido no império inca.

2 María Andrea Parado (1761-1822): mártir da Independência do Peru. Mestiça, falante de quéchua, foi torturada e morta por não delatar os companheiros revoltosos. Não sabendo escrever, ditava cartas enviadas aos guerrilheiros com informação sobre a movimentação dos inimigos.

3 Tuna: fruta típica peruana.

4 Carratalá: General José Carratalá, comandante das forças de repressão contra os que lutavam pela Independência. Incendiou e arrasou povoados como Cangallo.

5 Apu: do quéchua senhor; espírito das montanhas.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Tio Vânia em Hiroshima, mon amour

Ainda não sei se Drive my car, de Ryûsuke Hamaguchi, Oscar de melhor filme estrangeiro de 2022, é o filme mais japonês ou mais russo que já vi, ou se, por ambos os motivos, é o mais universal.

Em tempos:

1. Foi o filme em que mais vezes vi pronunciada uma palavra que os japoneses evitam: não ();

2. O nome da personagem feminina que paira sobre o filme inteiro tem um nome (Oto) que, associado ao tratamento respeitoso japonês (sam), parece, aos meus ouvidos, se transformar em outra palavra (otosan), pai, que é o que falta à jovem motorista; oto também significa som, como me lembrou uma amiga, algo chave na obra;

3. O título Drive my car é nome de uma música dos Beatles que não é tocada no filme (baseado no conto “Homens sem mulheres”, de Haruki Murakami, que possui um romance cujo título é também o nome de uma canção dos Beatles, como lembrou outro amigo);

4. A vida que o vermelho confere a um ser inanimado, no cinza do filme, me lembrou o que Wim Wenders, apaixonado pelo cinema japonês, fez com os objetos de Paris, Texas;

4. Colocar numa peça sobre o nada (Tio Vânia) - numa montagem em que são falados vários idiomas - uma atriz muda, que se expressa pela linguagem dos sinais, é tão significativo quanto belo;

5. Tudo na vida é teatro.




quinta-feira, 23 de junho de 2022

O karma da física

Karma, em sânscrito, significa “ação”. Algumas vertentes do budismo, especialmente o Zen, incorporaram a noção de karma como causalidade, ou seja, uma relação de causa (ação) e efeito (reação). Não é destino, algo predeterminado, imutável, escrito nas estrelas, que cai como um castigo divino sobre nossas cabeças. Está mais para as leis da física: se alguém tem uma arma de fogo em casa e brinca com ela, tem mais probabilidade de sofrer ou provocar um acidente com ela do que quem não tem arma de fogo em casa. Tampouco se trata de uma lei moral. Assim, da mesma forma, se alguém cortar meu pescoço com uma faca, sairá sangue, por melhor que eu seja. Esta lei atinge a todos, indistintamente, mesmo aqueles que se acreditam superiores aos demais ou especiais e que, por isso, acham que nada lhes acontecerá e que não têm nunca de responder às consequências de seus atos - a física e o budismo nos mostram que estamos o tempo todo submetidos às leis da causalidade, do karma: quem planta erva venenosa não colhe alface.