terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Sobre nomes

Antes de mais nada, explique-me essa história de você também se chamar Jorge Luis Borges.
Como se tirando do lugar as coisas que estavam sobre a mesa, lancei ao seu rosto essas palavras, cuja articulação não permitia qualquer réplica que não fosse a mais absoluta verdade.
A coisa colocada dessa forma, assim, inesperada, o deixou desconcertado.
Outra vez lá estaria exposto aos seus curtos-circuitos. Outra vez lá estaria ele buscando alternativas para ganhar tempo, para se recompor diante daquilo que não conseguia compreender de imediato.
Perdoe-me, Denise, mas antes que eu fale sobre isso, precisar fazer outra pergunta: Como você sabe disso? Essa informação, tenho certeza, não está na orelha do meu livro.
É isso. Ele não poderia deixar por menos. E fez muito bem agindo assim, pois agora poderia se regozijar ao perceber que a sua pergunta também me deixou tão desconcertada quanto ele.


(Roberto Amaral, Uma Denise. Vitória, Editora Cousa, 2014)


segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Cantiga de la memoria rota


(Inti Illimani) 

Vino a nadar la playa entre mis rocas,
el mar me ha contemplado ola tras ola,
el barco ha timoneado mi carcasa
y escucha mi rumor la caracola.

El calor se despoja de mi lana,
la oveja me trasquila en cada estío,
mi padre bebe de mi vino brusco
y mi madre se cuelga de mi avío.

Un caballo y su espuela me cabalgan,
un camino me pisa diariamente,
los zapatos del polvo me han hollado
y el sol me considera un inclemente.

La tierra ha preparado mi piel llana,
el arado me surca embravecido,
el trigo ha dispersado mis semillas
y el pan con diente claro me ha mordido.

Un caballo y su espuela me cabalgan,
un camino me pisa diariamente,
los zapatos del polvo me han hollado
y el sol me considera un inclemente
que quema con sus rayos a la gente.

El frío hace un chamanto con mi sangre,
la boca de un aullido me proclama,
la casa que me habita no me barre
y sobre mi extensión duerme una cama.

La puerta me golpea en busca de alguien,
la lágrima me enjuga en dos pañuelos,
un espejo se mira en mis ultrajes
y hay un libro que lee en mi desvelo.

La duda me confunde con su abrigo,
el malhechor comenta mi mal paso,
un país me ha buscado sobre el mapa
y no ha encontrado nunca el menor trazo

y esa herida me venda la amargura
y la muerte se duerme entre mis brazos.

sábado, 27 de dezembro de 2014

Um rápido olhar sobre a poesia brasileira de hoje

Não é de espantar que boa parte das pessoas compartilhe a inexata suposição de que pouco existe no campo da poesia brasileira após a manifestação sublime de escritores da monta de Manuel Bandeira, de Carlos Drummond de Andrade, de João Cabral de Melo Neto e, mais recentemente, de Ferreira Gullar. Embora o aludido quarteto seja – com todos os méritos – julgado o ponto culminante da “recente” poesia nacional, propomos chamar a atenção para outros artistas nacionais da palavra, que prosseguem à margem, não apenas do grande público, bem como dos currículos dos cursos superiores de Letras do país.
Ainda que correndo o risco de arbitrariedade, empregaremos o termo poesia contemporânea para referir os poemas publicados nas décadas de 1980 e 1990 e na primeira década do ano 2000. Trata-se, consoante observado, de um período de transição: do término do milênio passado para o início do atual. Época, pois, de vivo interesse para cultura nacional em vários sentidos. Um deles é que, por essa época, sistematiza-se, torna-se mais popular e ganha evidência o rock nacional, que passa a dialogar com a produção poética do momento. Não apenas o rock, mas também outras manifestações paraliterárias, como, por exemplo, as histórias em quadrinhos.
Em matéria de contexto histórico, nos anos 1980, o país respira os ares da redemocratização. Desnecessário acentuar que o clima de relativa liberdade política migra para as formas pelas quais nossos poetas exercitam o fazer literário, que, prosseguindo, em certo sentido, tendência dos anos 1970, continua irreverente e contestadora. Entretanto, a sensibilidade marginal e transgressora, que tão bem caracteriza os poemas de 70, perde força para uma concepção de poesia mais elaborada, mais universal, menos dogmática ou panfletária, ainda que o engajamento e o protesto tenham continuado.
Resultado inequívoco da liberdade aludida é que a poesia dos anos 1980, e, igualmente, uma parcela da poesia de 90, não pode ser enquadrada em apenas um rótulo definidor; pelo contrário, exibe variadas tendências de realização. O que equivale a afirmar que o leitor contumaz dessa poesia deparar-se-á com composições que devem muito às experiências de vanguarda, até poemas que estão conectados mais ao referencial, ao conteudístico; em outras palavras, a uma poesia discursiva, que se tinge de um quê reflexivo. Se fosse conveniente, a esta altura, tirar partido de uma analogia, diríamos que 1970 está para 1980, em termos de estética poética, assim como a primeira geração modernista está para a segunda.
Chegados a este ponto, é licito indagar: quais são os poetas dos anos 1980 cuja leitura deve ser feita? Está claro que a tal questão não se responde com facilidade, haja vista que cada crítico literário ou antologia tem preferências particulares. Nada obstante, é plausível apresentar certos poetas que conseguiram interiorizar com sucesso o espírito da época que nos ocupa. Assim, numa lista que não possui a menor pretensão de ser completa, chamamos a atenção para os seguintes nomes: Age de Carvalho (1958), Fernando Paixão (1965), Alice Ruiz (1946), Horácio Costa (1954), Glauco Mattoso (1951), Antônio Risério (1953), Paulo Henrique Britto (1951); Nélson  Ascher (1958), Arnaldo Antunes (1960), Alexei Bueno (1963), Eucanaã Ferraz (1961), Felipe Fortuna (1963), entre tantos mais.
Os escritores arrolados acima são representativos da “escola” poética dos 80. Veja-se que, com o paulistano Arnaldo Antunes, está-se diante do diálogo entre o rock e a poesia. Não custa rememorar que Antunes foi integrante, entre 1982 e 1992, do grupo musical “Titãs”. Sua poesia é cerebrina e experimental, sobretudo relativamente ao canal que veicula o discurso poético.
Glauco Mattoso é um caso, a vários títulos, notável. Poeta de verve satírica e escatológica, hoje está praticamente cego. Talvez seja um dos grandes sonetistas atuais da língua portuguesa. Tanto em qualidade quanto em quantidade. A literatura de Mattoso deve produzir estranhamento no leitor, que aprendeu – erroneamente, diga-se de passagem – que a forma poemática fixa do soneto apenas pode conter assuntos tradicionalmente considerados “elevados”.
Por derradeiro, com Nelson Ascher, exemplificamos a faceta marcadamente intelectual da poesia dos anos 80. Conforme asseverava o crítico Manuel da Costa  Pinto, Ascher “combina racionalismo, rigor e ironia”.
Não deixa de ser certo que a fronteira entre poetas da geração de 80 e 90 é mais didática e artificial do que natural. Por conseguinte, muitos dos escritores que frequentaram a lista acima também poderiam ser incluídos no elenco de poetas da década de 90. Tal década é menos marginal, menos experimental, valendo-se muito do contato com poetas estrangeiros, e, portanto, da intertextualidade. É uma poesia, que em suas manifestações mais bem conseguidas, apresenta grande apuro formal, mesmo que composições líricas de incontestável qualidade estética persistam. Como quer que seja, cada vez mais hipertrofia o espaço para aquelas modalidades de composição que poderiam ser denominadas de intuitiva. Em suma: é a poesia do trabalho, do apuro técnico, da transpiração.
A lista de poetas dos 90 que apresentaremos deve ser vista com reservas, pois inclui poetas já publicados em décadas anteriores, mas que tão somente agora ocupam o espaço que muito merecem na ambiência literária nacional. É o caso, entre outros, de Frederico Barbosa (1961), Cláudia Roquette-Pinto (1963), Tarso de Melo (1976), Antônio Cícero (1945), Augusto Massi (1959), Fábio Weintraub (1967), Marcos Siscar (1964). Nos textos de muito deles, são representadas artisticamente tópicos como o da alteridade, da identidade e da pluralidade, marcas da poesia dos 90.
Ao que nos parece, são os poetas dos anos 2000 os que necessitam de urgente leitura e de exame mais detido por parte dos especialistas. São eles, em tese, que retratam a sensibilidade da época em que vivemos.
Os atualíssimos poetas brasileiros apresentam dicção que faz recordar os poetas modernistas da primeira geração e os da segunda, dentre os quais se encaixam Drummond e Bandeira. Quanto a Cabral de Melo Neto, seu legado pode ser observado nos novíssimos poetas na busca incessante pela poesia desataviada, reduzida ao essencial e sempre alerta contra os excessos da postura confessional e de emoção desbragada. Não passe despercebida a influência dos concretistas, que valorizaram o aspecto plástico, visual do poema. Da mesma maneira, não se feche os olhos para intenso trabalho entre sistemas semióticos que se processou no poema.
Vale a pena assinalar que considerável número dos poetas dos anos 2000 publica em sites da internet e em revistas de cultura dos mais variados recantos do Brasil. Por oportuno, os novos poetas não vêm apenas dos grandes centros litorâneos, vicejando nas cidades mais interioranas da nação. A composição dos poemas é multiforme, havendo espaço para, por exemplo, o poema em prosa ou prosa poética, como praticado por Leila Guenther. Os poemas, no fundamental, são pouco extensos. O conteúdo tende mais para o opaco do que para o transparente, o que explica que não são poemas fáceis de decodificação e que, por conseguinte, os leitores terão de ter postura ativa para interpretá-los. São, em outros termos, poemas-enigmas. Um particular que merece ser reparado: os poetas da geração de 2000 apresentam louvável consciência da carpintaria linguística, o que significa afirmar que, para eles, o conteúdo sozinho não é responsável pelo o poema, mas, antes, a vestimenta verbal que o tema recebe.
Tendo em mira que tal artigo tem finalidade informativa antes do que crítica, elencaremos alguns poetas da geração dos anos 2000, cuja leitura sugiro para os adeptos da boa poesia: Alexandre Bonafim (1976), Ana Rüsche (1979), Cléberton Santos (1979), Elisa Andrade Buzzo (1981), Henrique Marques Samyn (1980), Mônica Montone (1978), Omar Salomão (1983), Tarso de Melo (1976), Luiz Felipe Leprovost (1979), Leila Guenther e Gustavo Petter (1984), este último e talvez menos conhecido radicado em Araçatuba, no interior paulista.
Como fecho do presente artigo e a modo de provocação final, lembre-se da entrevista de Alcir Pécora - crítico literário da Folha de S. Paulo e professor da UNICAMP – a nós concedida na Revista Tema, na qual, em termos panorâmicos, afirmava existir na poesia contemporânea brasileira uma convivência de poesia expressiva subjetiva com um construtivismo cabralino-concretista. Nesse sentido, e atravessando todos os períodos atrás elencados, registre-se incontinente o nome do poeta paraibano Políbio Alves, dono de uma produção literária vigorosa, já a merecer a atenção mais frequente e acurada dos críticos.
É por meio de tais poetas – alguns deles, por certo, passarão, mas muitos deixarão para sempre o selo de sua arte – que nossa poesia se renova e se robustece. Não há outro jeito: cumpre celebrar vivamente os antigos e dar boas-vindas aos mais novos. Havendo qualidade, há tudo.


(João Adalberto Campato Jr.*, Mais Tupã, 26/12/2014)


* é crítico literário e professor universitário.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Halley

para Marcelo, por supuesto

Por onde andava em 1986?
Em segredo, eu esperava o cometa.
Um ano inteiro aguardando sua vinda.
À espreita.
Desconfiada de que sua passagem
alterasse minha órbita.
Com o braço direito engessado, 
na escola a mão canhota
ensaiava infinitas variações de sua forma.
Os olhos voltados para baixo
nunca olhavam para o céu. 

Ninguém o viu mesmo.

Seus vestígios, descubro hoje, 
estão passando pela Terra
como poeira de luz,
rastros do que não houve,
deixados pelo céu 28 anos depois.

Que transformação operará quando voltar?
Fico à espera da resposta
naquela época como agora. 

O que sei é que já não nos veremos mais.




(Wings of desire)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Para Francisco Achcar, sub tegmine fagi

Ele se foi. Um pouco antes de saber, talvez no momento em que nos deixava, tive uma crise de choro sem explicação. Meia hora de lágrimas e soluços que eu não conseguia conter, dentro de um carro, dirigindo pelas ruas de São Paulo.
Tão estranho, tudo.
Não apagarei seus emails que estão na pasta reservada a ele, e suas orientações e posicionamentos sobre a literatura e a gramática estão vivos em minha cabeça. Também me lembro de sua resposta à minha mensagem em que eu dizia ter agora certeza absoluta de que ele era a pessoa mais forte que já conhecera. Eu não teria aguentado. Ninguém teria sobrevivido tão estoicamente.
Tudo o que sei sobre a literatura, sobre a língua portuguesa - meu material de trabalho - aprendi com ele. Ele foi meu verdadeiro orientador. Ainda tinha esperança de que visse publicado meu livro de poemas. Agora, infelizmente, o agradecimento será in memoriam.
Lembrei-me também, há pouco, de que o primeiro livro que comprei quando entrei na faculdade de Letras, na tentativa de me fazer, de me construir, foi o dele: Lírica e Lugar-Comum: Alguns Temas de Horácio e sua Presença em Português. Comprei-o porque um colega a quem admirava me disse que ele era o maior latinista que existia. Depois de trabalhar tantos anos ao seu lado, ouso dizer: não apenas o maior latinista, mas o intelectual mais brilhante e arguto com quem tive a honra de conviver.
Para quem escreverei agora, com quem falarei daquilo que me mantém viva - a Arte - e de tudo de humano, demasiado humano, que ela implica? Com sua partida, vários ficaram desamparados. E eu me tornei órfã para sempre.


(Leila Guenther)


segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Elegia: indo para o leito

ELEGY: GOING TO BED

Come, Madam, come, all rest my powers defy;
Until I labour, I in labour lie.
The foe ofttimes, having the foe in sight,
Is tired with standing, though he never fight.
Off with that girdle, like heaven's zone glittering,
But a far fairer world encompassing.
Unpin that spangled breast-plate, which you wear,
That th' eyes of busy fools may be stopp'd there.
Unlace yourself, for that harmonious chime
Tells me from you that now it is bed-time.
Off with that happy busk, which I envy,
That still can be, and still can stand so nigh.
Your gown going off such beauteous state reveals,
As when from flowery meads th' hill's shadow steals.
Off with your wiry coronet, and show
The hairy diadems which on you do grow.
Off with your hose and shoes ; then softly tread
In this love's hallow'd temple, this soft bed.
In such white robes heaven's angels used to be
Revealed to men ; thou, angel, bring'st with thee
A heaven-like Mahomet's paradise ; and though
Ill spirits walk in white, we easily know
By this these angels from an evil sprite;
Those set our hairs, but these our flesh upright.

Licence my roving hands, and let them go
Before, behind, between, above, below.
O, my America, my Newfoundland,
My kingdom, safest when with one man mann'd,
My mine of precious stones, my empery;
How am I blest in thus discovering thee !
To enter in these bonds, is to be free ;
Then, where my hand is set, my soul shall be.

Full nakedness ! All joys are due to thee;
As souls unbodied, bodies unclothed must be
To taste whole joys. Gems which you women use
Are like Atlanta's ball cast in men's views ;
That, when a fool's eye lighteth on a gem,
His earthly soul might court that, not them.
Like pictures, or like books' gay coverings made
For laymen, are all women thus array'd.
Themselves are only mystic books, which we
—Whom their imputed grace will dignify —
Must see reveal'd. Then, since that I may know,
As liberally as to thy midwife show
Thyself; cast all, yea, this white linen hence;
There is no penance due to innocence :

To teach thee, I am naked first; why then,
What needst thou have more covering than a man? 


Vem, Dama, vem, que eu desafio a paz;
Até que eu lute, em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.
Solta esse cinto sideral que vela,
Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado,
Feito para deter o olhar ousado.
Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.
Tira o espartilho, quero descoberto
O que ele guarda, quieto, tão de perto.
O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
Que cresça o diadema da madeixa.
Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens. Tu, meu anjo, és como o céu
De Maomé. E se no branco têm contigo
Semelhança os espíritos, distingo:
O que o meu anjo branco põe não é
O cabelo mas sim a carne em pé.

Deixa que a minha mão errante adentre
Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Minha América! Minha terra à vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha mina preciosa, meu Império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
Onde cai minha mão, meu selo gravo.

Nudez total! Todo o prazer provém
De um corpo (como a alma sem corpo) sem
Vestes. As joias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atalanta:
O olho do tolo que uma gema inflama
Ilude-se com ela e perde a dama.
Como encadernação vistosa, feita
Para iletrados, a mulher se enfeita;
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.

Para ensinar-te eu me desnudo antes:
A coberta de um homem te é bastante.


                      (John Donne. Trad. Augusto de Campos)