sábado, 27 de dezembro de 2014

Um rápido olhar sobre a poesia brasileira de hoje

Não é de espantar que boa parte das pessoas compartilhe a inexata suposição de que pouco existe no campo da poesia brasileira após a manifestação sublime de escritores da monta de Manuel Bandeira, de Carlos Drummond de Andrade, de João Cabral de Melo Neto e, mais recentemente, de Ferreira Gullar. Embora o aludido quarteto seja – com todos os méritos – julgado o ponto culminante da “recente” poesia nacional, propomos chamar a atenção para outros artistas nacionais da palavra, que prosseguem à margem, não apenas do grande público, bem como dos currículos dos cursos superiores de Letras do país.
Ainda que correndo o risco de arbitrariedade, empregaremos o termo poesia contemporânea para referir os poemas publicados nas décadas de 1980 e 1990 e na primeira década do ano 2000. Trata-se, consoante observado, de um período de transição: do término do milênio passado para o início do atual. Época, pois, de vivo interesse para cultura nacional em vários sentidos. Um deles é que, por essa época, sistematiza-se, torna-se mais popular e ganha evidência o rock nacional, que passa a dialogar com a produção poética do momento. Não apenas o rock, mas também outras manifestações paraliterárias, como, por exemplo, as histórias em quadrinhos.
Em matéria de contexto histórico, nos anos 1980, o país respira os ares da redemocratização. Desnecessário acentuar que o clima de relativa liberdade política migra para as formas pelas quais nossos poetas exercitam o fazer literário, que, prosseguindo, em certo sentido, tendência dos anos 1970, continua irreverente e contestadora. Entretanto, a sensibilidade marginal e transgressora, que tão bem caracteriza os poemas de 70, perde força para uma concepção de poesia mais elaborada, mais universal, menos dogmática ou panfletária, ainda que o engajamento e o protesto tenham continuado.
Resultado inequívoco da liberdade aludida é que a poesia dos anos 1980, e, igualmente, uma parcela da poesia de 90, não pode ser enquadrada em apenas um rótulo definidor; pelo contrário, exibe variadas tendências de realização. O que equivale a afirmar que o leitor contumaz dessa poesia deparar-se-á com composições que devem muito às experiências de vanguarda, até poemas que estão conectados mais ao referencial, ao conteudístico; em outras palavras, a uma poesia discursiva, que se tinge de um quê reflexivo. Se fosse conveniente, a esta altura, tirar partido de uma analogia, diríamos que 1970 está para 1980, em termos de estética poética, assim como a primeira geração modernista está para a segunda.
Chegados a este ponto, é licito indagar: quais são os poetas dos anos 1980 cuja leitura deve ser feita? Está claro que a tal questão não se responde com facilidade, haja vista que cada crítico literário ou antologia tem preferências particulares. Nada obstante, é plausível apresentar certos poetas que conseguiram interiorizar com sucesso o espírito da época que nos ocupa. Assim, numa lista que não possui a menor pretensão de ser completa, chamamos a atenção para os seguintes nomes: Age de Carvalho (1958), Fernando Paixão (1965), Alice Ruiz (1946), Horácio Costa (1954), Glauco Mattoso (1951), Antônio Risério (1953), Paulo Henrique Britto (1951); Nélson  Ascher (1958), Arnaldo Antunes (1960), Alexei Bueno (1963), Eucanaã Ferraz (1961), Felipe Fortuna (1963), entre tantos mais.
Os escritores arrolados acima são representativos da “escola” poética dos 80. Veja-se que, com o paulistano Arnaldo Antunes, está-se diante do diálogo entre o rock e a poesia. Não custa rememorar que Antunes foi integrante, entre 1982 e 1992, do grupo musical “Titãs”. Sua poesia é cerebrina e experimental, sobretudo relativamente ao canal que veicula o discurso poético.
Glauco Mattoso é um caso, a vários títulos, notável. Poeta de verve satírica e escatológica, hoje está praticamente cego. Talvez seja um dos grandes sonetistas atuais da língua portuguesa. Tanto em qualidade quanto em quantidade. A literatura de Mattoso deve produzir estranhamento no leitor, que aprendeu – erroneamente, diga-se de passagem – que a forma poemática fixa do soneto apenas pode conter assuntos tradicionalmente considerados “elevados”.
Por derradeiro, com Nelson Ascher, exemplificamos a faceta marcadamente intelectual da poesia dos anos 80. Conforme asseverava o crítico Manuel da Costa  Pinto, Ascher “combina racionalismo, rigor e ironia”.
Não deixa de ser certo que a fronteira entre poetas da geração de 80 e 90 é mais didática e artificial do que natural. Por conseguinte, muitos dos escritores que frequentaram a lista acima também poderiam ser incluídos no elenco de poetas da década de 90. Tal década é menos marginal, menos experimental, valendo-se muito do contato com poetas estrangeiros, e, portanto, da intertextualidade. É uma poesia, que em suas manifestações mais bem conseguidas, apresenta grande apuro formal, mesmo que composições líricas de incontestável qualidade estética persistam. Como quer que seja, cada vez mais hipertrofia o espaço para aquelas modalidades de composição que poderiam ser denominadas de intuitiva. Em suma: é a poesia do trabalho, do apuro técnico, da transpiração.
A lista de poetas dos 90 que apresentaremos deve ser vista com reservas, pois inclui poetas já publicados em décadas anteriores, mas que tão somente agora ocupam o espaço que muito merecem na ambiência literária nacional. É o caso, entre outros, de Frederico Barbosa (1961), Cláudia Roquette-Pinto (1963), Tarso de Melo (1976), Antônio Cícero (1945), Augusto Massi (1959), Fábio Weintraub (1967), Marcos Siscar (1964). Nos textos de muito deles, são representadas artisticamente tópicos como o da alteridade, da identidade e da pluralidade, marcas da poesia dos 90.
Ao que nos parece, são os poetas dos anos 2000 os que necessitam de urgente leitura e de exame mais detido por parte dos especialistas. São eles, em tese, que retratam a sensibilidade da época em que vivemos.
Os atualíssimos poetas brasileiros apresentam dicção que faz recordar os poetas modernistas da primeira geração e os da segunda, dentre os quais se encaixam Drummond e Bandeira. Quanto a Cabral de Melo Neto, seu legado pode ser observado nos novíssimos poetas na busca incessante pela poesia desataviada, reduzida ao essencial e sempre alerta contra os excessos da postura confessional e de emoção desbragada. Não passe despercebida a influência dos concretistas, que valorizaram o aspecto plástico, visual do poema. Da mesma maneira, não se feche os olhos para intenso trabalho entre sistemas semióticos que se processou no poema.
Vale a pena assinalar que considerável número dos poetas dos anos 2000 publica em sites da internet e em revistas de cultura dos mais variados recantos do Brasil. Por oportuno, os novos poetas não vêm apenas dos grandes centros litorâneos, vicejando nas cidades mais interioranas da nação. A composição dos poemas é multiforme, havendo espaço para, por exemplo, o poema em prosa ou prosa poética, como praticado por Leila Guenther. Os poemas, no fundamental, são pouco extensos. O conteúdo tende mais para o opaco do que para o transparente, o que explica que não são poemas fáceis de decodificação e que, por conseguinte, os leitores terão de ter postura ativa para interpretá-los. São, em outros termos, poemas-enigmas. Um particular que merece ser reparado: os poetas da geração de 2000 apresentam louvável consciência da carpintaria linguística, o que significa afirmar que, para eles, o conteúdo sozinho não é responsável pelo o poema, mas, antes, a vestimenta verbal que o tema recebe.
Tendo em mira que tal artigo tem finalidade informativa antes do que crítica, elencaremos alguns poetas da geração dos anos 2000, cuja leitura sugiro para os adeptos da boa poesia: Alexandre Bonafim (1976), Ana Rüsche (1979), Cléberton Santos (1979), Elisa Andrade Buzzo (1981), Henrique Marques Samyn (1980), Mônica Montone (1978), Omar Salomão (1983), Tarso de Melo (1976), Luiz Felipe Leprovost (1979), Leila Guenther e Gustavo Petter (1984), este último e talvez menos conhecido radicado em Araçatuba, no interior paulista.
Como fecho do presente artigo e a modo de provocação final, lembre-se da entrevista de Alcir Pécora - crítico literário da Folha de S. Paulo e professor da UNICAMP – a nós concedida na Revista Tema, na qual, em termos panorâmicos, afirmava existir na poesia contemporânea brasileira uma convivência de poesia expressiva subjetiva com um construtivismo cabralino-concretista. Nesse sentido, e atravessando todos os períodos atrás elencados, registre-se incontinente o nome do poeta paraibano Políbio Alves, dono de uma produção literária vigorosa, já a merecer a atenção mais frequente e acurada dos críticos.
É por meio de tais poetas – alguns deles, por certo, passarão, mas muitos deixarão para sempre o selo de sua arte – que nossa poesia se renova e se robustece. Não há outro jeito: cumpre celebrar vivamente os antigos e dar boas-vindas aos mais novos. Havendo qualidade, há tudo.


(João Adalberto Campato Jr.*, Mais Tupã, 26/12/2014)


* é crítico literário e professor universitário.

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