sábado, 17 de maio de 2025

Mas chove

 


Para Ahmed Zoghbi

Um sopro uma brisa uma nuvem

trazem notícias

de tufões tormentas tsunamis

de outros lugares

Mas lhes fechamos as portas porque aqui dentro faz frio

 

Me lembro de soltar os talheres

e todos continuarem comendo

enquanto o terremoto sacudia as mesas

do país de Allende

Com o tempo devíamos ficar mais resistentes às intempéries

Criar casca grossa

Fazer da pele um casaco impermeável

Mas a única casca que consigo criar é a da ferida

E ela é tão fina

Que quando a arranco

Jorra junto o sangue do mundo inteiro.


“Estamos perdendo a capacidade de contar”,

diz meu irmão, vizinho de Sherazade

Estamos perdendo a única habilidade que nos difere

como homens e entre homens

de transformar Babel em balada ou lullaby

Nem fly nem fight

Nem mesmo esquecer ou lembrar


Dizem os palestinos que devemos guardar as lágrimas

para o dia da vitória

mesmo sabendo que ela não virá

 

A falta de saúde os remédios o cortisol

o medo de perder o emprego me paralisam

Caminhamos dentro do oceano

contra uma massa de água

que nos atrasa os passos

e nos impede de salvar os que se afogam

 

Ikram, tentei te pôr em palavras

tu que não sabes ler

tu que vieste de outro oriente

mastigada e vomitada por uma baleia

Eu que venho do silêncio

quis dar-te voz

quando soubeste de teus dois filhos assassinados

 

Falhei. Falhei e não me perdoo

Tentei escrever porque não podia urrar

nem arrancar os cabelos

 

Porque narrar era o mínimo que devíamos saber

Como humanos que já fomos um dia.


(Leila Guenther)

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