sábado, 21 de março de 2020

Pela vida


Foi em março, há dez anos, que eu passei quase um mês num hospital público por causa de um vírus que atingiu meus pulmões. A fase epidêmica da H1N1 já tinha passado, eu estava na casa dos trinta anos, era verão, eu não tinha viajado e trabalhava em casa, numa cidade do interior de sp. Praticava esportes e, no dia em que comecei a passar mal, tinha nadado pela manhã uns 2000 metros. À noite comecei a ter febre. Pensei se tratar de uma gripe comum. No dia seguinte já não podia suportar de desconforto pela temperatura de 39, 40 graus. Fui a um renomado centro médico particular da cidade, onde o médico diagnosticou uma gripe comum e me prescreveu antitérmicos a cada 8 horas. Nos dois dias seguintes, os remédios já não davam conta, eu precisava deles a cada 5 ou 6 horas. Voltei ao centro médico, onde o mesmo médico me atendeu, reafirmando se tratar de uma gripe comum com a qual não devia me preocupar: segundo ele, eu e a “torcida do Corinthians” estaríamos assim. Nos outros dois dias tomava o antitérmico a cada 3 ou 4 horas, sem sucesso. Já não conseguia dirigir (uma das pessoas com quem vivia estava viajando e a outra, na faculdade) e fui de táxi ao hospital mais próximo coberto pelo plano de saúde, onde me internaram por pneumonia. Dos próximos dias já quase não me lembro, tenho apenas flashes: tentavam me dar medicação via oral e eu vomitava, já não conseguia respirar mais, desmaiava. Me recordo de acordar com uns aparelhinhos com os quais tentavam que eu fizesse exercícios respiratórios e de perder a consciência de novo. Quando decidiram me transferir para um hospital público de referência na região, fui direto para a UTI, em isolamento total. O pneumologista que me recebeu disse depois à minha família que algumas horas mais sem o tratamento adequado e teria sido tarde. Percebi vagamente, na confusão mental em que me encontrava pela falta de oxigênio, pelas pessoas chorando, que meu estado era realmente grave e que estava morrendo. E eu, que sempre tive medo da morte, não senti medo. O mais desesperador não era morrer, era não conseguir respirar. Medicaram-me, me colocaram em coma induzido e me entubaram. A radiografia já não conseguia mostrar os pulmões, totalmente tomados pela escuridão. Nesses três primeiros dias do coma, os órgãos começaram a parar de funcionar: os pulmões, os rins. O próximo seria o coração. Temiam uma falência múltipla e pediram à família que se preparasse para o pior: de cada dez pessoas naquele estado, nove morriam. Passados os três primeiros dias críticos, eu comecei a melhorar, permanecendo entubada até o nono dia, no limite de receber uma traqueostomia. Acordei do coma com dois enfermeiros me dando banho. Um deles encontrei algum tempo depois num evento de humanização promovido pelo hospital e ele chorou copiosamente quando me viu. A outra enfermeira me disse que sua mãe tinha rezado por mim todos os dias em que estive entubada. Soube também que a esposa e a sogra do pneumologista tinham feito uma novena pela minha saúde. Até hoje me emociono quando me lembro dessas coisas. Depois ainda houve uma longa recuperação na enfermaria, que é ainda hoje o lugar de acolhimento para onde minha mente se volta quando preciso de coragem (mas essa é outra história), e outra fase em casa. Após o coma, perdemos a força e todos os movimentos, e demoramos para conseguir executá-los de novo.
Não sei por que escrevi isso, acho que é apenas uma declaração de amor a um sistema de saúde público que salvou minha vida quando o privado, em três ocasiões, falhou vergonhosamente. Mas é também para dizer que algo se transforma dentro de nós diante de uma situação-limite. Curiosamente, depois disso, meus interesses, digamos, contemplativos se voltaram para as meditações com foco na respiração, no estudo do pranayama (inúmeros tipos de respiração do yoga), no poder curativo da respiração, no tonglen (uma prática tibetana em que se inspira o sofrimento dos outros e se expira devolvendo-lhes compaixão). Descobri que respirar, esse ato tão simples e banal, involuntário e voluntário ao mesmo tempo, é uma das coisas que mais gosto de fazer. A morte continua a mesma, mas minha relação com a vida mudou para sempre. Foi o que um vírus minúsculo me ensinou.

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