Publicado em 2015
pela Ateliê Editorial, o livro de poemas Viagem a um deserto interior,
da catarinense Leila Guenther, é antes de qualquer coisa uma reunião de textos
poderosos que revelam um estado de espírito atormentado do eu poético.
Atravessar o livro de Guenther, esse deserto onde corre-se risco de afogamento,
revela-se um duplo desafio: há inúmeras situações, propostas pelos poemas,
extremamente incômodas; a obra reúne uma grande quantidade de enigmas, uma vez
que o eu poético, sibilino, expressa-se de forma a mais elusiva e misteriosa,
mesmo para os padrões do texto poético.
Dividido em cinco
partes (Paisagens de Dentro, O deserto alheio, Castelo de Areia, Um jardim de
pedra e A possibilidade do Oásis) que formam um itinerário a ser seguido pelo
leitor mais corajoso, Viagem a um deserto interior começa com um de seus
melhores poemas, “Contorcionismo”, brevíssima e eloquente denúncia-defesa da
condição da mulher em uma sociedade patriarcal. Abaixo, segue o poemeto na
íntegra
Contorcionismo
Já caibo numa
Caixa de sapato
Mas o que eu
queria mesmo
Era ser trapezista
O poema começa com um
índice de tempo, o advérbio (de realce, ou preposição) “já”, que nos indica uma
sequência, uma sucessão, uma chegada, enfim. O eu poético chega a caber numa
caixa de sapato, apequenou-se ou foi apequenado gradualmente. Mas o que ele
queria ser era trapezista, aquela figura do circo que transita em quase absoluta
liberdade pelo ar do picadeiro. Ou seja, o eu poético não é o que desejava ser,
e o que ele desejava ser representa a liberdade. A mudança do eu poético tem se
dado sempre por refração. Ele não cessa de diminuir de tamanho, até (já) caber
num sapato. Tamanho e chão, já que o sapato costuma andar sobre o chão. O exato
oposto do trapezista, que, não sendo contorcionista, jamais caberia numa caixa
de sapato. Mas é interessante notar que o maior contorcionismo do poema está em
o eu poético deixar de ser trapezista para ser contorcionista, o que explica a
existência do título: explicativo, em uma primeira leitura, necessário como um
verso, em uma leitura mais acurada. O leitor pode estar se perguntando: “mas
por que o poema é uma denúncia-defesa da mulher, já que não há qualquer
definição de gênero no texto?”. Lendo o resto do livro, marcado fortemente por
um feminismo distante do panfleto, o leitor entende que há, no livro de
Guenther, uma posição bem marcada no que diz respeito aos direitos da mulher,
mas sobretudo, há um retrato em nada apresentável da condição atual da mulher
na sociedade. Poema kafkiano não só pelo absurdo de sua entrelinha, mas porque
nos remete a textos do grande escritor tcheco que traz figuras circenses em
seus enredos, como “O artista da fome”, “Contorcionismo” é apenas o começo do
que o leitor encontrará em termos de contenção e qualidade poética. Aliás, é
válido lembrar que o circo é tema recorrente na primeira seção de poemas do
livro de Leila Guenther, chamada “Paisagens de Dentro”. O leitor, naturalmente,
é convidado a refletir sobre a natureza desse entretenimento popular: o circo é
uma tenda com todo tipo de “números”, que vão do palhaço ao domador de leões,
passando, é claro, por monstruosidades e desafios extremamente perigosos. Um
prato cheio para quem gosta de interpretar símbolos.
Da mesma primeira
seção – ou parte – do livro Viagem…, o poema “Circo dos medos” traz de
volta a imagem do circo, e mais uma vez a figura feminina é alçada à condição
de protagonista, com o status de fera. Leiamos:
Circo dos medos
Fecharam-no.
Talvez fosse
clandestino.
Talvez houvesse
irregularidades.
Partiram, sem
riso, os palhaços.
Os trapezistas se
foram pelos ares.
Os cavalos
correram assustados.
O dono fugiu com a
mulher barbada.
O domador se
sentou em seu banco de afugentar bichos no meio da praça
E nunca mais se
levantou.
As feras escoaram,
silenciosas, pela terra.
Apenas uma, a
menor de todas,
ficou onde estava,
quando destrancaram o cadeado.
Tudo se movia,
menos ela.
Ensaiou com
insegurança alguns passos ao redor
da tigela de água.
Mas as patas de
digitígrado titubearam sobre o piso
por causa das
unhas longas,
nunca aparadas.
(Ela mal pisava o
chão quando exposta aos olhos curiosos dos pagantes:
sempre equilibrada
sobre a palma da mão do encantador de serpentes, pulgas
e outras espécies
de tamanho diminuto.)
Cada vez menor.
A tigela de água
parecia do tamanho do circo que conheceu.
Ela ainda espera
atrás das grades enferrujadas da jaula entreaberta.
A fera pode ser
masculina, mas a autora não escolheu por acaso um substantivo feminino, que
produz um pronome feminino (ela) em pelo menos três versos subsequentes à
“fera”. Uma fera que foi se tornando pequena à medida que a liberdade foi
aumentando, e que desaprendeu a viver fora da cela que a aprisionava. E ainda:
uma fera que não está parada, apenas, uma fera que espera. Espera uma ordem que
a liberte, talvez do encantador de serpentes. As unhas longas podem sugerir ou
reforçar a ideia de feminilidade, e uma feminilidade que, no contexto de
liberdade e fuga iminente, atrapalha. A fera do poema perdeu, também, o direito
de ser vaidosa.
Há inúmeras
referências literárias nos poemas de Viagem... Mas não só literárias: há
uma infinidade de lugares distantes (a romantização da distância utópica,
redentora), como países da África, e ainda o Japão, e figuras míticas etc.
Referências que dialogam com o estado quase sempre atormentado do eu poético de
Guenther. Abaixo, segue poema em que a voz de Ofélia, personagem sofrida do
Hamlet de Shakespeare – e da célebre pintura do pintor inglês pré-rafaelita
John Everett Millais – ganha força inaudita:
Ofélia
Assim me preparei
para o que viria:
a maior parte da
vida gasta
em manter a cabeça
fora da água.
No ar
qualquer mudança
no curso da borboleta
me derrubava.
Tinha ossos
frágeis
e veias se viam
de meu pulso
fraco.
Não sabia que
teria de aprender a respirar sob a água.
Depois de tanto
ter medo
(as pontas dos
dedos se enrugam)
agora reino sobre
Atlântida.
Depois de tanto se
afogar, de tanto ter medo, Ofélia, com as pontas dos dedos enrugadas, reina
sobre – estando sob a água – a mítica ilha platônica submersa. Tornou-se parte
de seu inferno, mas ressignificando-o ao respirar sob a água e, mais que isso,
ao reinar sob a água, em um evidente caso daquilo que o vulgo denomina
“superação”.
Escrito pela mulher
que não tem pares, Viagem… é um livro de forte carga onírica e
crepuscular, aproximando-se, assim, do que escreveu a poeta inglesa Sylvia
Plath. Não por acaso, o leitor pode encontrar o seguinte poema, à página 143 do
livro de Guenther:
Jane Bowles
Não cortará os
cabelos e os laços por Diego
Não irá para o
hospício por Auguste
Não se matará com
gás por Ted
O máximo que faria
Era se mudar para
Tânger
Jane Bowles,
diferentemente de Frida Kahlo, Camille Claudel e Sylvia Plath, viveu
intensamente suas paixões – por homens e por mulheres –, mesmo casada (com o
romancista e compositor Paul Bowles, autor de O céu que nos protege), e
a despeito da série de enfermidades que marcou sua vida atribulada.
Enquanto não volta à
superfície para respirar, o eu poético de Viagem… produz, em meio ao
caos, como flores de lótus, textos de sabedoria (oriental), em geral breves, em
alguns casos, haicais, fazendo o leitor pensar que sim, há um farol, há uma
saída, há um saber, mas que precisa ser saboreado ainda:
Caminho de Bashô
O que diz respeito
à montanha
Aprenda da
montanha
O que diz respeito
ao vulcão
Aprenda do vulcão
Shinjû
Do lado de lá da
verdade
o espelho guarda o
segredo
da imagem que o
imita
Zazen
Sobre o zafu
olhando a parede,
o mundo
parece maior
Mas a força maior da
poesia de Leila Guenther está no estranhamento, no que nos provoca pavor,
naquilo que os orientais, aos quais a poeta está fortemente atrelada, tão bem
produzem (os orientais produzem o melhor do horror, e o melhor da iluminação).
Abaixo, um dos poemas mais inquietantes do livro:
O peixe
Há um peixe que me
olha
De dentro de um
aquário distante
Desceu os rios
Atingiu os mares
Singrou o
Atlântico
Surgiu numa praia
de pedra do Pacífico
Que – afinal –
É a mesma água
De todos os
oceanos
Rios lagos fontes
olhos
Ele me examina com
sua fixidez
De porcelana
Como se
contemplasse
A matéria que
compartilhamos
Mas ele é cego
A poesia de Leila
Guenther, que é também contista e ensaísta, não é apenas bem escrita: é poesia
de estilo inconfundível. Há uma marca – ou antes, uma grife –, um jeito, um
modo de escrever, a partir de determinados temas, que só o reconhecemos ao ler
a poeta catarinense, radicada em São Paulo, que, infelizmente – ou não –,
publica pouco. E de forma definitiva.
(Henrique
Wagner)
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