quarta-feira, 13 de março de 2013

A outra máquina do mundo

Se quando contemplamos as secretas
causas, por que o mundo se sustenta,
o revolver dos céus e dos planetas;

e se quando a memória se apresenta
este curso do sol, que é tão medido
que um ponto só não mingua nem se aumenta;

aquele efeito, tarde conhecido,
da lüa, em ser mudável tão constante
que minguar e crecer é seu partido;

aquela natureza tão possante
dos céus, que tão conformes e contrários
caminham, sem parar um breve instante;

aqueles movimentos ordinários,
a que responde o tempo, que não mente,
cos efeitos da terra necessários;

se quando, enfim, revolve sutilmente
tantas cousas a leve fantasia,
sagaz, escrutadora e diligente;

vê bem, se da razão só não desvia,
o altíssimo Ser, puro e divino,
que tudo pode, manda, move e cria;

sem fim e sem começo, um ser contino;
um Padre grande, a quem tudo é possível,
por mais árduo que seja ao homem indino;

um saber infinito, incompreensível;
üa verdade que nas cousas anda,
que mora no visível e invisível.

Esta potência, enfim, que tudo manda,
esta causa das causas, revestida
foi desta nossa carne miseranda.

Do amor e da justiça compelida,
polos erros da gente, em mãos da gente
– como se Deus não fosse – perde a vida.

o cristão descuidado e negligente,
pondera isto que digo, repousado;
não passes por aqui tão levemente.

Não, que aquele Deus alto incriado,
Senhor das cousas todas, que fundou
o céu, a terra, o fogo e o mar irado,

não do confuso caos, como cuidou
a falsa teologia e povo escuro,
que nesta só verdade tanto errou;

não dos átomos falsos de Epicuro;
não do largo oceano, como Tales,
mas só do pensamento casto e puro.

Olha, animal humano, quanto vales,
que por ti este grande Deus padece
novo modo de morte, novos males.

Olha que o sol no Olimpo se escurece,
não por oposição doutro planeta,
mas só porque virtude lhe falece.

Não vês que a grande máquina inquieta
do mundo se desfaz toda em tristeza,
e não por natural causa secreta?


Não vês como se perde a natureza;
o ar se turba; o mar, batendo, geme,
desfazendo das pedras a dureza?


(...)
(Camões, “À paixão de Cristo, nosso senhor”)

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