terça-feira, 1 de junho de 2010

Sur la "justice"


 
O papel de Paris como geradora tanto de ideias como de maneirismos, vogas e modas também contribui para o seu status de cidade grande. As cidades pequenas não estabelecem padrões internacionais de moral, não como Paris tem feito desde o século XVIII, quando os philosophes redefiniram o contrato social e Voltaire defendeu um criminoso condenado chamado Jean Calas, que ele acreditava ser inocente. Voltaire estava certo e conseguiu limpar o nome de Calas, fazendo valer a Paris a fama mundial de lugar onde a justiça sempre triunfa — ao menos se algum escritor famoso puder ser convencido a abraçar a boa causa. Um século depois o romancista Émile Zola confirmou a regra ao empunhar a pisoteada bandeira de Alfred Dreyfus, um oficial judeu do exército francês condenado por uma corte militar antissemita por vender segredos à Alemanha. Em 1894, Dreyfus foi mandado para a ilha do Diabo, na Guiana Francesa. Anos mais tarde ele seria solto e, por fim, reabilitado, depois que Zola reabriu o caso na imprensa. (Uma reprodução do seu famoso artigo de primeira página, “J’accuse!”, foi projetado por inteiro na fachada da Assembleia Nacional, na noite de 13 de janeiro de 1998, em comemoração ao centenário do histórico evento.)
Suponho que essas duas histórias podem ser interpretadas mais como testemunho da importância dos escritores na França do que como evidência da justiça francesa. Com certeza o mundo anglófono nunca presenciou nada parecido com o julgamento do escritor Jean Genet, em 1943, pelas repetidas condenações por furto. Genet se deparava com a prisão perpétua como punição por ser um reincidente contumaz, mas Jean Cocteau, que havia descoberto Genet e providenciado a publicação de seu primeiro romance, Nossa Senhora das Flores, apresentou uma declaração que foi lida na corte: “Ele é Rimbaud, não se pode condenar Rimbaud”. Cocteau insinuou que o juiz entraria para a história como um filisteu se tomasse a decisão errada. Nem por um momento Cocteau argumentou que Genet era inocente, mas simplesmente que era um gênio. Seu testemunho livrou Genet, sem qualquer punição.
Esses casos exemplares, e mesmo surpreendentes, deveriam ser ponderados em contraste com a justiça peremptória e muitas vezes arrogante exercida sobre os cidadãos comuns. Na França, não há habeas corpus, e até pouco tempo atrás pessoas perfeitamente inocentes podiam ser mantidas durante meses, anos até, em prisão preventiva se um juiz considerasse que elas sabiam mais do que estavam dizendo. Como escreveu Mavis Gallant sobre o juiz na França: “Ele pode detê-lo até que você mude de ideia. Se, no fim, você for inocente, não há recurso contra a lei. Você não pode nem abrir um processo pleiteando a simbólica quantia de um franco por danos, ainda que a detenção preventiva lhe tenha custado o emprego, o equilíbrio doméstico e a sua reputação”. Nos anos 1960, com a eclosão da Guerra da Argélia, centenas de árabes definharam nas prisões francesas por longos períodos, sem nem sequer ser julgados, muito menos condenados.


(Edmund White, O flâneur: um passeio pelos paradoxos de Paris. Trad. Reinaldo Moraes. São Paulo, Companhia das Letras, 2001)

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