domingo, 4 de agosto de 2019

Contra o adeus

Em memória de Omar Olivera, Omarcha

Ontem chovia, fui ao parque; não sei quanto tempo perambulei entre trilhas e moitas, observando como emergia do cimento o vapor do verão. É espantoso como em plena tempestade há raios de sol que chegam a iluminar as folhas mais escondidas, a terra úmida, as pegadas das pessoas que, com pressa, procuram abrigo em suas casas. Talvez não tenha sido mais do que uma hora, porém entre tanta sombra alucinada é possível que tenha transcorrido um século. Inconsciente, ou talvez audaciosa demais, fui me sentar debaixo de um pinheiro. Tinha certeza de que nenhum raio ousaria me matar no mesmo dia em que outro temporal havia levado você.
Hoje não tenho cabeça para procurar seu fantasma na chuva, nessa camuflagem das almas que desejam permanecer e desobedecem às parcas na forma de garoa, orvalho ou torrente. Apesar de sua ausência, continuo engasgada pela vida. Tomo meu pulso e sinto como os jatos de sangue palpitam pelas minhas veias; nada os detém, nada me detém.
Os filmes têm nos acostumado a finais concretos, a histórias que têm um sentido, a ocasiões precisas. Quando deixamos de ser crianças e nosso país afundou na violência, você sabia ao certo dos perigos que corria, espreitavam-no diversos grupos. Carros-bomba, tiros na nuca, prisões e desaparecimentos haviam levado alguns amigos e muitos conhecidos. Você até me comentou sobre a possibilidade de carregar sempre um comprimido de cianureto que pudesse apagar sua vida antes de ser submetido ao horror de uma tortura. Havia uma paixão impetuosa pela vida e ao mesmo tempo sangue-frio diante da morte. Nunca usava guarda-chuva, ficava ensopado, dizia que as tempestades o faziam se sentir integrado ao universo, o suor misturado com a bruma, a sua saliva com o vento. E você ria de si mesmo porque também carregava aspirinas para combater a gripe antes que ela o atacasse. E acendia um cigarro, e tragava com gosto, e continuava falando, em alguns momentos divagava e voltava a aspirar cada resto de fumaça como se fosse o último, depois baforava para longe, com força, como se mandasse um beijo (à nicotina, à gripe afugentada, à chuva?), e continuava a conversa. E acendia outro cigarro, e mais um. Quantas coisas você me contou, quantas ficaram encravadas em seu cérebro, quantos momentos intensos viveu só. Onde ficam essas palavras, esses instantes íntimos?
No vidro da janela da cozinha ficou gravada a marca de sua mão. No meio de uma cantoria, esquecemos a panela em que preparávamos um chá e o vapor invadiu tudo. Você se aproximou da janela para verificar se as linhas da palma de sua mão podiam ser lidas nessa mistura de água consternada, escuridão lá fora, luz elétrica dentro. Apenas sua mão ficou plasmada. Se a experiência tivesse dado certo, teria sido possível decifrar que depois de um ano você estaria morto? Acabo de perceber que faz muito tempo que não limpo as janelas. Cada vez que esqueço a chaleira no fogo e o vapor invade a cozinha, tantas ocasiões em que poderia haver ocorrido um incêndio!, a marca da sua mão emerge. Hoje gostaria de tocá-la, trazer você de volta. Mas tenho medo: temo que não aconteça, que minhas invocações não sejam válidas; temo igualmente deformar qualquer ínfimo rastro material que você deixou em minha casa.
Para quem escrevo? Se você não acreditava em qualquer além, como posso sentir sua presença em cada palavra que imprimo? A nostalgia é tão grande. Ou é tão lenta a morte e você nunca termina de ir embora. Ou é que sua morte levou uma parte de mim e é ela que me transmite seu reflexo, ela que me sussurra “estamos vivos”. Acaricio as teclas e parece que toco as pontas de seus dedos. A nostalgia é infinita.
Para esta tristeza abundam melodias amargas. No meu aparelho de som tocam as músicas que dançávamos quando éramos adolescentes. São alegres, são tão presentes que meus pés balançam e começo a cantar. O ritmo da vida se impõe. Seu coração foi livre, firme na sua postura de que para amar não é necessário renunciar a nada. Talvez por isso hoje não reprimo a dança.
Neste verão louco em que a chuva prevalece sobre o sol e as flores não caem murchas nem os lagos secam, formigas proliferam no depósito, um sem-fim de pássaros cantando pelas manhãs, rostos velhos e novos, ricos e pobres, brilhantes, andando pelas ruas quando sol se apodera do dia. Parece absurdo que em um tempo desses, carregado de tanta vida, você tenha ido embora impregnando tudo de morte. Se você tivesse acreditado em uma vida além desta, talvez ficaria mais fácil imaginar que somos de novo crianças e brincamos de esconde-esconde em uma floresta, que você sabe se camuflar bem; mas sempre consigo encontrá-lo, ouvir de novo sua gargalhada, tocar sua mão de carne e osso, cantar rancheras e blues, caminhar com nossos amigos debaixo do sol, tomar juntos litros de café enquanto chove, consertando o mundo com simples palavras, olhar-nos nos olhos para nos perguntar, para nos responder e para continuar perguntando.
Nunca, porém, nos perguntamos ou respondemos sobre onde nos encontrarmos no fim do caminho. Hoje tento encontrá-lo nas minhas próprias palavras, entender sua partida com minhas próprias ideias, lembrar de você com meus próprios símbolos. E assim o encontro em todo lugar e em todo lugar sinto sua falta.
No rádio escuto uma melodia, é uma sonata chilena transformada em canto. Parece dedicada aos seres amados que hoje são apenas pó: “Procuremos as velhas cinzas do coração queimado, mesmo que caiam um a um nossos versos, até que a flor desabitada ressuscite”. Consegue ouvi-la? Conseguirá ouvi-la quando seu próprio corpo tiver virado pó? Conseguirá pronunciá-la através do tempo, através dos devaneios? Estou tão viva que só me resta esperar pela tempestade, ou pela noite, para ver sua mão desenhada entre suas luzes e sombras. Os ponteiros do relógio me lembram que tenho de sair. Com um impulso que ultrapassa a lógica das minhas pernas vou me levantar para ir a um concerto. Não vou ficar para continuar escrevendo; nem vou parar para continuar investigando a natureza da ausência.
Anoitece, os pássaros estão cantando como se fosse amanhecer. Estamos vivos.


Karina Pacheco Medrano é escritora, editora e antropóloga peruana. Escreveu Las orillas del aire, Lluvia, No olvides nuestros nombres, La voluntad del molle, El bosque de tu nombreCabeza y orquídeas, entre outros. O presente conto, traduzido por Marcelo Donoso e por mim, integra o livro Alma alga (Peru, Borrador Editores, 2010). Como antropóloga, dedica-se a temas como desigualdade, racismo e discriminação.




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