Em memória de Omar Olivera, Omarcha
Ontem chovia, fui ao parque; não sei
quanto tempo perambulei entre trilhas e moitas, observando como emergia do
cimento o vapor do verão. É espantoso como em plena tempestade há raios de sol
que chegam a iluminar as folhas mais escondidas, a terra úmida, as pegadas das
pessoas que, com pressa, procuram abrigo em suas casas. Talvez não tenha sido
mais do que uma hora, porém entre tanta sombra alucinada é possível que tenha
transcorrido um século. Inconsciente, ou talvez audaciosa demais, fui me sentar
debaixo de um pinheiro. Tinha certeza de que nenhum raio ousaria me matar no
mesmo dia em que outro temporal havia levado você.
Hoje não tenho cabeça para procurar seu
fantasma na chuva, nessa camuflagem das almas que desejam permanecer e desobedecem
às parcas na forma de garoa, orvalho ou torrente. Apesar de sua ausência,
continuo engasgada pela vida. Tomo meu pulso e sinto como os jatos de sangue palpitam
pelas minhas veias; nada os detém, nada me detém.
Os filmes têm nos acostumado a finais
concretos, a histórias que têm um sentido, a ocasiões precisas. Quando deixamos
de ser crianças e nosso país afundou na violência, você sabia ao certo dos
perigos que corria, espreitavam-no diversos grupos. Carros-bomba, tiros na
nuca, prisões e desaparecimentos haviam levado alguns amigos e muitos
conhecidos. Você até me comentou sobre a possibilidade de carregar sempre um
comprimido de cianureto que pudesse apagar sua vida antes de ser submetido ao
horror de uma tortura. Havia uma paixão impetuosa pela vida e ao mesmo tempo
sangue-frio diante da morte. Nunca usava guarda-chuva, ficava ensopado, dizia
que as tempestades o faziam se sentir integrado ao universo, o suor misturado
com a bruma, a sua saliva com o vento. E você ria de si mesmo porque também
carregava aspirinas para combater a gripe antes que ela o atacasse. E acendia
um cigarro, e tragava com gosto, e continuava falando, em alguns momentos
divagava e voltava a aspirar cada resto de fumaça como se fosse o último,
depois baforava para longe, com força, como se mandasse um beijo (à nicotina, à
gripe afugentada, à chuva?), e continuava a conversa. E acendia outro cigarro,
e mais um. Quantas coisas você me contou, quantas ficaram encravadas em seu
cérebro, quantos momentos intensos viveu só. Onde ficam essas palavras, esses
instantes íntimos?
No vidro da janela da cozinha ficou
gravada a marca de sua mão. No meio de uma cantoria, esquecemos a panela em que
preparávamos um chá e o vapor invadiu tudo. Você se aproximou da janela para
verificar se as linhas da palma de sua mão podiam ser lidas nessa mistura de
água consternada, escuridão lá fora, luz elétrica dentro. Apenas sua mão ficou
plasmada. Se a experiência tivesse dado certo, teria sido possível decifrar que
depois de um ano você estaria morto? Acabo de perceber que faz muito tempo que
não limpo as janelas. Cada vez que esqueço a chaleira no fogo e o vapor invade
a cozinha, tantas ocasiões em que poderia haver ocorrido um incêndio!, a marca
da sua mão emerge. Hoje gostaria de tocá-la, trazer você de volta. Mas tenho
medo: temo que não aconteça, que minhas invocações não sejam válidas; temo
igualmente deformar qualquer ínfimo rastro material que você deixou em minha
casa.
Para quem escrevo? Se você não
acreditava em qualquer além, como posso sentir sua presença em cada palavra que
imprimo? A nostalgia é tão grande. Ou é tão lenta a morte e você nunca termina
de ir embora. Ou é que sua morte levou uma parte de mim e é ela que me
transmite seu reflexo, ela que me sussurra “estamos vivos”. Acaricio as teclas
e parece que toco as pontas de seus dedos. A nostalgia é infinita.
Para esta tristeza abundam melodias
amargas. No meu aparelho de som tocam as músicas que dançávamos quando éramos
adolescentes. São alegres, são tão presentes que meus pés balançam e começo a
cantar. O ritmo da vida se impõe. Seu coração foi livre, firme na sua postura
de que para amar não é necessário renunciar a nada. Talvez por isso hoje não
reprimo a dança.
Neste verão louco em que a chuva
prevalece sobre o sol e as flores não caem murchas nem os lagos secam, formigas
proliferam no depósito, um sem-fim de pássaros cantando pelas manhãs, rostos
velhos e novos, ricos e pobres, brilhantes, andando pelas ruas quando sol se
apodera do dia. Parece absurdo que em um tempo desses, carregado de tanta vida,
você tenha ido embora impregnando tudo de morte. Se você tivesse acreditado em
uma vida além desta, talvez ficaria mais fácil imaginar que somos de novo
crianças e brincamos de esconde-esconde em uma floresta, que você sabe se
camuflar bem; mas sempre consigo encontrá-lo, ouvir de novo sua gargalhada,
tocar sua mão de carne e osso, cantar rancheras e blues, caminhar
com nossos amigos debaixo do sol, tomar juntos litros de café enquanto chove,
consertando o mundo com simples palavras, olhar-nos nos olhos para nos
perguntar, para nos responder e para continuar perguntando.
Nunca, porém, nos perguntamos ou
respondemos sobre onde nos encontrarmos no fim do caminho. Hoje tento
encontrá-lo nas minhas próprias palavras, entender sua partida com minhas
próprias ideias, lembrar de você com meus próprios símbolos. E assim o encontro
em todo lugar e em todo lugar sinto sua falta.
No rádio escuto uma melodia, é uma
sonata chilena transformada em canto. Parece dedicada aos seres amados que hoje
são apenas pó: “Procuremos as velhas cinzas do coração queimado, mesmo que
caiam um a um nossos versos, até que a flor desabitada ressuscite”. Consegue
ouvi-la? Conseguirá ouvi-la quando seu próprio corpo tiver virado pó?
Conseguirá pronunciá-la através do tempo, através dos devaneios? Estou tão viva
que só me resta esperar pela tempestade, ou pela noite, para ver sua mão
desenhada entre suas luzes e sombras. Os ponteiros do relógio me lembram que
tenho de sair. Com um impulso que ultrapassa a lógica das minhas pernas vou me levantar
para ir a um concerto. Não vou ficar para continuar escrevendo; nem vou parar
para continuar investigando a natureza da ausência.
Anoitece, os pássaros estão cantando
como se fosse amanhecer. Estamos vivos.
Karina
Pacheco Medrano é escritora, editora e antropóloga peruana. Escreveu Las
orillas del aire, Lluvia, No olvides nuestros nombres, La
voluntad del molle, El bosque de tu nombre, Cabeza y orquídeas, entre outros. O presente conto,
traduzido por Marcelo Donoso e por mim, integra o livro Alma alga (Peru,
Borrador Editores, 2010). Como antropóloga, dedica-se a temas como
desigualdade, racismo e discriminação.
De arrancar lágrimas de um paralelepípedo insensível.
ResponderExcluirDe arrancar lágrimas de um paralelepípedo insensível.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ExcluirFoi por isso mesmo que o traduzimos, Eduardo
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