sexta-feira, 24 de abril de 2009

A evolução da espécie (conto inédito)

(Frida Kahlo e seu xolo)


O povo que habitava a norte de Tenotchitlán, no México, durante o período arcaico, comia cachorros. Não de qualquer tipo, mas o xoloitzquintle, hoje em vias de extinção e conhecido apenas como xolo, cachorro sem pelo cuja pele se assemelha à de um elefante doente. Eram cachorros vegetarianos e essa era a razão pela qual consideravam sua carne mais saborosa que a de outros animais. Possuem orelhas grandes e pontudas como a do chihuahua, também oriundo de terras mexicanas, e são tão dóceis e fiéis que, dizem, quem alguma vez teve um xolo de estimação, apesar do aspecto repugnante de sua pele, nunca mais deseja os afagos de outro bicho.
Foi por causa desse seu caráter terno que eles passaram de refeição a animais de companhia e, já no fim do arcaico, a ser enterrados com seus donos, numa prática que consistia em levar para o túmulo o que estivesse, de alguma forma, ligado ao morto, como instrumentos de profissão, alimentos, bichos de estimação e escravos preferidos – vivos –, uma vez que, para os pré-colombianos, a morte era a continuação natural da vida. Uma lenda curiosa assim refere a origem dessa raça de cães: o mais importante dos deuses, Quetzalcoátl, a serpente emplumada, teria ganhado suas penas mágicas do pássaro quetzal em troca da perda de pelos do seu irmão cachorro, o mensageiro Xólotl, que assentiu de bom grado, reconhecendo a supremacia absoluta de Quetzalcoátl. Assim, Xólotl, de condutor de almas da vida para Xebalbá, o reino dos mortos, passou a representar a abnegação e o desprendimento, sendo o único deus do vasto panteão pré-colombiano a quem não se faziam sacrifícios de sangue, mas apenas oferendas de vegetais.
Depois da chegada dos espanhóis, os astecas que restaram, já cristianizados, recorreram a um interessante sincretismo. Continuaram, por exemplo, a festejar a morte, essa outra parte da vida, e, no Natal, não era o menino Jesus que punham na manjedoura no centro do presépio, mas um filhote de cachorro. Sem pelos.

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