terça-feira, 28 de abril de 2009

Golias

Fiquei observando-o. Encolhido como um gigante que tivesse sucumbido, tal laivo de ternura me comovia. Por um momento pensei com assombro que eu não tinha o direito de flagrá-lo em tamanho desamparo, nessa hora em que estamos despidos de nossa alma exterior, só para usar uma expressão cara a mim. Pois era com afinco que ele mantinha todo o seu arsenal em prontidão contra a minha temeridade, contra a minha força de quem se sabe frágil e derrotada. Era, afinal, como bater em cachorro morto (eu, bem entendido) e duvido que ele não soubesse e mesmo se aproveitasse disso para treinar sua pontaria no exercício da madureza, essa terrível prenda. Quis acordá-lo, envolvê-lo, dizer-lhe que, pelo menos ali, nós podíamos ambos depor as armas, fosse uma bomba ou minha minúscula pedra, naquele momento em que eu precisava desesperadamente de uma trégua, ainda que fosse para declarar-me vencida e expor-lhe minhas veias abertas, as mesmas que amedrontam e afugentam as pessoas que de repente se deparam, no meio da rua, com um mendigo cuja enorme ferida na perna jamais cicatriza, mas limitei-me a ficar do seu lado, apaziguada por ter ao menos isto: um corpo que, por um breve momento, se entregava a ponto de dormir com os dois olhos fechados diante de mim.

(Leila Guenther, O vôo noturno das galinhas, Ateliê Editorial, 2006)

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