Escrevi este poema (em Este lado para baixo, ed. Peirópolis) quando soube do caso de Elaine Perez Caparroz que, em 2019, foi espancada durante 4 horas seguidas em seu apartamento por Vinícius Batista Serra, até que alguém interviesse. Os vizinhos acharam que se tratava de “briga de marido e mulher” e por isso não se intrometeram. Agora vimos Eduardo Pereira Cabral, num vídeo chocante, desferir 61 golpes em sua namorada Juliana Garcia dos Santos, até desfigurá-la. Isso é só o que está à vista, registrado, televisionado. Os dados são estarrecedores: 4 mulheres são mortas por dia no Brasil só pelo fato de serem mulheres. A cada 6 minutos ocorre um estupro. 76% das vítimas têm menos de 14 anos (o que inclui bebês). As mulheres negras são as maiores vítimas.
quarta-feira, 6 de agosto de 2025
sexta-feira, 1 de agosto de 2025
Robert Wilson, imortal
Morreu
o revolucionário dramaturgo e encenador Bob Wilson, em cujas montagens
brasileiras de A dama do mar1 e A velha2
trabalhei, com adaptação e tradução. Foi uma experiência incrível trabalhar com
os atores, nos bastidores, e ver como tudo aquilo se transformava numa obra monumental,
uma marca pessoal, única, de algo histórico.
No
Brasil, ele também fez A vida e a época de Joseph Stálin (que aqui se
chamou Dave Clark por causa da censura, em 1974, e teve duração de 12 horas), A
ópera dos três vinténs, Macbeth [de Verdi] etc.
Dele,
disse Ionesco:
“Eu
pensava cá comigo algumas coisas sobre teatro e acabo de compreender que nada
aconteceu no intervalo de tempo entre Shakespeare e Bob Wilson.”
1
A dama do mar foi uma adaptação de
Susan Sontag para Ibsen, a primeira no Brasil com atores brasileiros, Bete
Coelho e Lígia Cortez entre eles.
2 A
velha foi uma adaptação de Darryl Pinckney para Daniil Kharms, com Mikhail Baryshnikov
e Willem Dafoe.
quinta-feira, 24 de julho de 2025
Aviso aos navegantes
Aos seguidores deste blog
analógico recém-reabilitado após uma série de problemas técnicos: se ainda recebiam alguma notificação de postagem,
deixarão de receber. A opção “seguir” foi desativada por alguma trapalhada
minha e não consigo restaurá-la sem que com isso exponha os nomes dos seguidores. Agora só é possível saber se há posts novos
salvando o blog entre seus sites favoritos ou via Facebook e Instagram. Aliás,
aproveitem e sigam o Coletivo de Escritoras Asiáticas & Brasileiras, de que faço parte, por lá.
quarta-feira, 23 de julho de 2025
Um deserto em pedaços
Algum tempo depois de publicar Viagem a um deserto interior, pela Ateliê Editorial, em 2015, fui, com meu então futuro marido, ao Deserto do Atacama, um lugar que há muito eu queria conhecer. O deserto mais seco do mundo. A minha vida se dividiu entre antes e depois dessa viagem. A conexão foi imediata. Foi como se as peças tivessem finalmente se encaixado. Eu tinha encontrado meu elemento, levada por alguém que me respeitava e que fazia parte daquilo – o Chile é sua terra natal. No deserto o ego se dissolvia no silêncio e na vastidão, como se numa meditação profunda, e se unia à paisagem. Senti que era feita de areia, pedra, terra, pó e nada, parte de tudo e de todos, e sem importância alguma. E isso foi transcendente, carnal e espiritualmente falando. Ali é preciso humildade. O deserto não é traiçoeiro, como dizemos sobre tudo aquilo que não entendemos direito – cobras, mar, vulcões, nossa própria mente. Ele apenas existe de acordo com as leis da física e não está nem aí para nós. É o que têm nos ensinado os povos originários. É preciso deixar a arrogância de lado diante da natureza. É claro que não me refiro a pessoas que confiam em um guia turístico que as deixa para trás, como vimos recentemente, mas àqueles que se julgam superiores a tudo. Os que acham que podem fazer qualquer coisa sem responder pelos seus atos podem se dar mal quando tentam subjugar também o que não conhecem. Na natureza selvagem, eles respondem pela consequência, ou melhor, pela inconsequência de seus atos. Trata-se apenas de ação e reação: o homem que decide se jogar do alto de uma montanha simplesmente não voará, por mais poderoso e incrível que se creia.
Descobri com humor a coincidência de ali existir inclusive uma parte chamada "deserto interior". Uma espécie de redundância, como o título de meu livro, pois para mim todos os desertos são interiores, íntimos. O trecho assim referido, de tempos em tempos, vejam só, desabrocha, acolhendo florações coloridas, criando um estranho cenário quando visto de longe. É claro que nem tudo são flores: a mão do homem até ali cria coisas inúteis, como uma escultura gigantesca que a mim parece desnecessária num lugar já tão grandioso. A interferência significativa do ser humano naquele lugar são as pedras simples cuidadosamente empilhadas, uma espécie de oferenda aos mortos ou aos deuses. Mas a mais importante se dá pelas mãos de mulheres que, num trabalho minucioso e infinito, buscam ossos de desaparecidos políticos durante a ditadura de Pinochet. Em seu governo, dissidentes, diferentes e inocentes tiveram seus corpos torturados, ou partes deles, jogados no mar ou no deserto. Nesse deserto, o do Atacama, de que faço parte. Essas mulheres buscam nele fragmentos ínfimos de filhos, pais, irmãos, maridos. Procuram recompor a dignidade de quem morreu de maneira torpe pelas mãos de gente que não sabe criar, mas apenas destruir. Em vez de uma estátua em formato de mão, elas ergueram juntas um monumento invisível mas pungente em defesa da memória. Foi isso que descobri por meio do amigo que, através de sua lente, dá outra vida ao que vê, Luís Villaça: ele me apresentou ao filme Nostalgia da luz, do chileno Patricio Guzmán, de quem eu conhecia apenas A batalha do Chile. Em Nostalgia da luz, cujo exemplar físico acabei ganhando de minha sogra (que por acaso se chama Luz), cria-se um contraste marcante: o deserto do Atacama abriga os maiores observatórios do mundo, por causa de seu céu límpido. Dele se analisa com nitidez o universo. As mulheres, aquelas mulheres que procuram pedaços de seus entes queridos, desejavam simbolicamente que os astrônomos, com seus instrumentos tão precisos em busca de corpos celestes, as ajudassem a encontrar corpos humanos que desapareceram, mas cujos rastros, como os das estrelas, ainda estão presentes, em forma de ossos, areia, pó e lembrança.
Minha viagem a um deserto interior continua. Meu deserto, o do Atacama, onde nem
os camelos resistem, não acaba quando viramos pó. Aliás, eu não acharia mal que
minhas cinzas fossem jogadas lá, ainda que, diante da minha insignificância,
considero mais natural e coerente que elas sejam jogadas no lixo.
terça-feira, 15 de julho de 2025
Como dizer adeus em catalão
FORMAS DE DIZER ADEUS
Mudar de nome
Deixar de
responder às perguntas
Nunca mais olhar o
telefone e o que há dentro dele
Faltar ao encontro
marcado há cinco anos
Pedir demissão dos
que nos demitiram
Não pensar no que
se planta
nem no que se
colhe
Afundar em uma
rede que balançamos
com a ponta dos
pés quebrados
Sair de casa e não
voltar
Não sair de casa
Não sair de casa
nunca mais
Enterrar no
quintal um cão que nos enterra
Deixar de dar água
às plantas
onde vivem os que
não abandonamos
Esquecer que um
dia houve música
E emudecer, sem
aprender a linguagem dos sinais
Queimar os livros
porque navios não há
Descer do veículo
fora da parada
Sem falar o
necessário ao motorista
Parar de tomar
remédios receitados
E tomar outros,
sem receita
Habitar Atlântida
Falar a Deus
Desligar os
aparelhos – todos –
Subir no ponto
mais alto de nós mesmos
e saltar
(Leila
Guenther, em Este lado para baixo. Ed. Peirópolis, 2025)
FORMES DE DIR ADEU
Canviar de nom
Deixar de
respondre les preguntes
No mirar mai més
el telèfon i el que hi ha a dins
Faltar a la cita
que tenies fa cinc anys
Demanar que despatxin els que ens han despatxat
No pensar en el que es planta
ni en el que es cull
Enfonsar-se en una hamaca que gronxem
amb la punta dels peus trencats
Sortir de casa i
no tornar
No sortir de casa
No sortir de casa
mai més
Enterrar al jardí
un gos que ens enterra
Deixar de donar
aigua a les plantes
on viuen els que
no hem abandonat
Oblidar que un dia va haver-hi música
i emmudir, sense aprendre el llenguatge de senyals
Cremar els llibres perquè no hi ha vaixells
Baixar del vehicle fora de la parada
sense parlar només quan calgui al conductor
Deixar de prendre medicaments receptats
i prendre’n d’altres, sense recepta
Habitar
l’Atlàntida
Parlar amb Déu
Desendollar els
aparells (tots)
Pujar al punt més
alt de nosaltres mateixos
i saltar
(vertido
para o catalão por Josep Domenèch Ponsatí)
Lição
Para Adriana Versiani dos Anjos
Aprender
com as plantas a crescer no vaso
pequeno
demais para conter suas raízes
A
suportar a chuva que as afoga
A
suportar a falta de chuva que as estanca
O
vento que quebra seus caules
O
sol que queima seus veios
E
dele também extrair a matéria que as sustém
Aprender
das plantas a impassibilidade
enquanto
insetos torturam suas folhas
Das
plantas que brotam nas frestas do cimento toda vez que são arrancadas, a lição:
renascer
(Leila Guenther)
terça-feira, 8 de julho de 2025
Mais uma mulher de Lot
Para Adriane Garcia
Onde você perdeu seus olhos?
Em que noite eles se esconderam
Camuflados na paisagem?
Onde o mundo se enxergava e se redescobria
O que viram para desaparecer assim?
Teriam sido arrancados
Quando você olhou para trás
Antes de chegar até aqui?
Ou você mesma os arrancou?
A ameaça dos homens é vã
Porque nenhum deus tem o poder
De transformar alguém em estátua:
Isso é apenas o que dizemos às crianças
Para assustá-las se não se comportam
Enquanto preparamos as refeições
Seu corpo chegou em carne e osso
Embora recoberto de arranhões, feridas, roxos, cortes
E o que mais se acumula numa fuga
Quando não enxergamos
As solas dos pés, perfuradas de espinhos, infeccionaram
Você veio apenas para morrer
Todas nós choramos por velar uma mulher sem nome
Por respeito tentamos cerrar suas pálpebras
Mas elas afundaram
Sugadas por dois buracos
Cheios de vazio
sexta-feira, 4 de julho de 2025
Também esperávamos os bárbaros
Para
Marilia Kubota
com dedos civilizados e meticulosos
que não pudemos impedir
Jamais se recuperaram do que viram ao microscópio
Vieram pólvora fogueira ferro em brasa forno de assar gente incêndio cogumelo de fogo choque elétrico queimadura de cigarro sol sem filtro
Todas as tecnologias criadas por mãos sem calos e cérebros sem pudor
Mas vós, também luz, não viestes
Se pelo menos não houvesse tanta areia
Se pelo menos houvesse água onde nos afogar
Não vos teríamos esperado
Por vós nos sentamos no primeiro degrau e não subimos os outros
Na soleira do deserto vos aguardávamos
(A nós, moeda de troca, era proibido o abrigo na torre de vigia)
Os cabelos embranqueceram
as veias estouraram
os seios caíram
O pó empilhado se petrificou
E a flor do chão não renasceu depois de pisada
Não viestes
Só muitos séculos depois é que soubemos:
Nunca vos deixaram entrar
(Leila Guenther)
Perguntas à Wisława
Para Graziela Schneider
Por que você sorri nas fotos?
Por que parece tão leve
Se carrega o peso dos séculos?
Os séculos também morrem
E quem já carregou um cadáver sabe:
Eles pesam mais do que os vivos
De que você ri?
Qual é a graça, afinal?
Preciso aprender a rir
Preciso antes aprender a sorrir
Por que você não me ensina?
De que lado você está?
É preciso escolher um lado, você mesma disse
O que há entre o percurso
Que vai do Ursinho Pooh a Hitler?
Um bosque de ossos?
A distância talvez não seja tão grande
Ou a mesma pessoa escreveu todos os livros
Bato à sua porta
E ninguém lá dentro diz “Tem gente”
Você é uma pedra, Wisława
E pedras não têm porta
É preciso olhar para trás
Sem medo de se transformar nelas
Como viver?, pergunto a você todos os dias
Mas você não responde
(Leila Guenther)
quarta-feira, 2 de julho de 2025
E otaku ama?
Beatriz Misaki é uma jovem autora de ascendência japonesa que escreve literatura YA
(Young Adult). Seu primeiro romance é Buruna: por um canto amarelo, cujo
título é uma referência à maneira com que os japoneses pronunciam Bruna,
nome da protagonista. A temática do romance é o abuso, mas é também sobre o
forte laço de sororidade que une, por meio da música, duas jovens descendentes
de asiáticos. Beatriz conta que o motor inicial de sua escrita se deveu ao
apagamento, no caso a falta que sentia de obras que tivessem personagens
amarelas, nas quais ela pudesse se reconhecer e se sentir representada.
Beatriz
está agora lançando seu segundo romance, E otaku ama?, a história de um
relacionamento inter-racial, contada em segunda pessoa, entre uma jovem amarela
e um jovem negro, que se desenvolve a partir do interesse que ambos têm pela
obra Amor insensato, de Junichiro Tanizaki, história de uma estranha relação com
toques sadomasoquistas que em sua primeira edição brasileira recebeu o nome de Naomi,
justamente um dos nomes da protagonista de E otaku ama? Este é o mote
para Beatriz debater questões como preconceito, fetichização dos corpos femininos
racializados, a luta de mulheres não brancas pelo seu lugar no mundo e o amor
em sua forma mais libertadora, capaz de transformar aqueles que têm a coragem
de enfrentar não apenas o conservadorismo de uma sociedade mas também seus
próprios fantasmas.
E
otaku ama? (Ed. do autor)
Beatriz Misaki
Instagram: @biamisaki, @escritorasasiaticasbrasileiras
Indicação: a partir de 14 anos
1o Lançamento:
5 de julho, das 14h às 17h, no Café Itigô-Itiê, Rua Galvão Bueno, 425, bairro
da Liberdade, São Paulo.
2o Lançamento 2: 12 de julho, às 15h, no 26o Festival do Japão, no Expo Exhibition e Convention Center, Rodovia dos Imigrantes, km 1,5, São Paulo
Há alguns exemplares físicos totalmente gratuitos para quem se interessar. Basta preencher o formulário google aqui. É fácil e rápido.
quarta-feira, 11 de junho de 2025
Adornos

Tomava meu café arábica de grãos
moídos na hora
Quando vi a foto de uma flor desabrochando:
Imensa vermelho intenso
A natureza em seu esplendor
A força da primavera surgindo
De um caule delgado e flexível
Em lugar inóspito
(“Uma flor nasceu na rua!”)
Ponho os óculos de ver o vivo:
Não era uma flor
Era uma criança decapitada
Explico:
Os filmes de ficção nos mostram sempre
Um corte limpo reto no pescoço
E um jato carmim simétrico de chafariz
Mas o que vi foi:
Num corpo sem cabeça
O pescoço se abre numa massa gigante
De carne sangrenta artéria osso rompido
Maior do que aquilo que se equilibrava sobre o caule
(Você sabia que existe diferença entre decapitação e degola?)
Voltei ao café que eu mesma preparei
Humildemente pensando na vida
E no mais recente extermínio
Construir é difícil e demorado
Destruir é fácil e rápido
Reconstruir
É só para os que têm esperança
E tempo pela frente.
Será possível escrever poesia florida depois disso?
Não. "Escrever poesia depois de Auschwitz
É um ato de barbárie", respondeu Theodor Adorno.
Pois é por isso que o faremos:
Por quem vive na violência das palavras
Para não serem esquecidos
Pelos que (ainda) mantêm