quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

A humanidade (im)possível de Kore-Eda

Um filme em que o que se move não é a câmera, mas a história por trás dela. Uma mulher, mãe de um menino pequeno, tentando entender o aparente suicídio de um marido que não deixou pistas nem motivo. Esse foi meu primeiro contato, há mais de vinte anos, com o mundo de Hirokazu Kore-Eda, ganhador de Cannes 2018, cujo Assunto de família ainda não vi. O filme então era Maborosi, a luz da ilusão. Até hoje não sei qual era a ilusão ali e por que ela era iluminada, mas desde então esse mundo, tão japonês e ao mesmo tempo tão universal, passou a me interessar.
Em seguida vieram Depois da vida, em que os mortos, à espera de seu destino numa espécie de limbo com ares de repartição pública, têm de decidir qual a única e, portanto, mais significativa memória, que, em forma de gravação, deverão levar para a eternidade. Ninguém pode saber, baseado num caso real, conta a história do abandono, pela mãe, de cinco crianças, deixadas sozinhas em casa aos cuidados do mais velho, de doze anos, e de seu trágico destino. Still walking era sobre uma reunião de família japonesa com seus ditos e não ditos. Em Pais e filhos, o drama de duas famílias que têm seus filhos trocados na maternidade. Nenhum filme lembrava o anterior em nada, nem pela temática, nem pela forma. Pode-se reconhecer um filme de Takeshi Kitano ou de Ozu pelo enredo, luz ou enquadramento, mas não um filme de Kore-Eda, em que a marca pessoal está além desses conceitos. Porque Kore-Eda nunca se parece com Kore-Eda. E os filmes que tornaram para mim mais clara essa distinção foram dois que vieram na sequência um do outro como contraposição: Nossa irmã mais nova e Depois da tempestade.
Nossa irmã mais nova é quase uma história de ninar, um conto de fadas, sobre três irmãs que, vivendo sozinhas num espaço e num tempo pouco definidos, acolhem sua meia-irmã, depois da morte do pai, depois das traições desse pai, apesar dos protestos da mãe. É um filme sobre o profundo significado da fraternidade, que parte da família, passa pela comunidade, até atingir a nós, espectadores, com uma lição de tamanha ternura que ficamos desejando morar dentro dele. O Japão ou algum país pode ser assim? Provavelmente não. Essa compaixão, esse entendimento solidário do outro nos afeta não apenas pelo estranhamento, por beirar o irreal, mas porque acena para uma possibilidade de existência mais humana.
Já em Depois da tempestade, a personagem principal é uma espécie de pícaro que busca a sobrevivência por meio de pequenos golpes. Um escritor da metrópole que perdeu a inspiração e trabalha agora como detetive, resolvendo casos sem importância. Gasta seu salário em apostas e vive atrasando a ajuda financeira que deveria dar ao filho, razão pela qual recebe o desprezo da ex-mulher. Mas, em todo o seu trajeto, o que busca, lentamente e com atraso, é se tornar melhor. É o ser humano em processo. Sou eu, somos nós, num caminho em que a viagem é tão importante quanto à chegada ao destino final. “Ainda não sou o homem que queria ser” é a resposta que dá ao filho sobre o que gostaria de ter feito na vida.
Em O terceiro assassinato, síntese radical desses dois percursos apontados em Nossa irmã mais nova e Depois da tempestade, um advogado desconfia da culpa de um assassino confesso. Por que um criminoso reincidente, em vias de ser condenado à morte, mentiria sobre sua própria inocência? Talvez porque seu crime aponte para uma outra humanidade, feita de laços que ainda não conseguimos compreender.
Talvez porque Kore-Eda, além de nunca se parecer com si mesmo, seja sempre mais do que Kore-Eda.



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