sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Dois poemas de Donizete Galvão


Solilóquio de Nina Simone

Habitou-me um deus espesso.
Sangue cor de fígado.
Veneno talhado, macerado e amargoso.
Fez morada em cada célula.
Nos alvéolos, nas entranhas, sob as unhas.
Expande a veia do pescoço.
Sangra pelas gengivas.
Lateja nas têmporas e nos pulsos.
Planta arrancada da terra africana,
deita suas raízes fundas de baobá
e traz gosto de lama à boca.
Tem sabor atávico a relembrar
o lodo de que se originou o homem.

Habitou-me um deus exigente,
que me fere e exaspera.
Que espezinha o que eu era.
Que fala o que eu não pensara
e, dizendo-me ao contrário,
faz-me gostar do calvário
que, às cegas, eu criei.
Nomeio que não tem nome:
Raio de Iansã, trovão, ciclone,
Sopro de Orixá, c’est moi
Nina Simone.




Recomendações

Ao cavaleiro desencarnado,
com sua égua de gás hélio,
recomendo ouro, prata e chumbo.
No meio do seu caminho,
mero pedregulho transmuta-se
em rocha, penedo, penhasco.
Mínima ponta de agulha fura
sua armadura hiperbovárica.
Nem figos envenenados
sustentam-lhe  a fome.
Tudo o que toca
some. Evapora-se.
Ponha os pés no chão,
para que o minério de ferro
neles sedimente e forme um casco.
Ninguém vai ouvir falar do seu nome.
Escute o resumo de sua vida:
um espasmo, um sopro que não soa
além da grade de sua casa.

(Donizete Galvão)

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