quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Celso de Alencar

UM CANTO VINDO DE LONGE

Era assim como um canto
que se ouve vindo de longe.
Voz de pássaro que se alimenta
de raízes das árvores encontradas nas montanhas.

Assim era a voz deslumbrante
que encantava os homens.
A única voz inglesa que vivia na cidade,
na nossa rua, a quatro quadras da minha casa.
Pedia a todos que a chamassem de ovelha.
E todos os homens, cheios de incontida alegria
obedeciam como se fossem beber água.

Na hora do gozo exigia que imitassem
um som que se assemelhava a voz de ovelha.
Um desvario. Uma loucura extremada.
Uma loucura mais que loucura
de homens andando de quatro pela varanda
gritando a mais absurda das palavras. Bé.

Foi um matador de ovelhas que a matou.
Matou-a como matava as suas ovelhas.
Deu-lhe um golpe profundo no pescoço
e permaneceu sentado rente à cama,
ouvindo um canto vindo de longe,
até a manhã do outro dia.



ILDA

Se acaso tivesse eu
a violeta chinesa
eu a colocaria nesse
vaso marajoara e diria:
mesmo vivos
não temos liberdade
para viver.

Se acaso tivesse eu
o único boi vermelho
com listras brancas
eu o colocaria entre
essas palhas de feijão
e esses milhos brancos e diria:
ainda que te transformes em sangue
poderei dizer: foste meu filho
e antes que essas balas
e essas explosões
atinjam meu peito
abrirei a única liga
que me prende a ti – a sacola marrom-
e deixarei o sangue escorrer.

Sobre esta montanha que piso
meus pés desconhecem.
E esse vento frio que joga
essas folhas pardas no meu rosto
é o mais forte dos nove invernos.


(Celso de Alencar)





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