terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Direto de Portugal IV

( Foto: Alfredo Cunha)


CASTELOS DE PORTUGAL

A taberna da Cruz do Campo
onde cheguei tão novo — queria-vos
falar, mas não recordo bem,
da bicicleta que me levou, antes
de pedir (deve ter sido) a laranjada
que prenunciava outros hábitos.
O taberneiro tinha o que se esperava:
um resto de vida e de inquéritos
mornos que chegaram para saber
que a filha dele e a minha mãe
haviam sido colegas, passeando
talvez não muito longe em desiguais
bicicletas. No pequeno mundo.

Também já não existirá, suponho,
a taberna de Pontével quase
em frente à igreja, onde entrei e saí
assustado com o vinho escuro que
iluminava no vómito do balcão os rostos.
Aí quis morrer, em vez da «mentira do amor».

Apenas a terceira obedecerá ao título,
fazendo cair sobre mim a metáfora:
ficava em Penedono e esperava,
depois da juventude, o fim.
Sob o castelo — alto, preenchendo o Verão —
onde alguém me levou e nunca mais amei.

Era a isso que eu chamava o meu país,
ruínas que não quero juntar.


DEPOIS DE TEBAS

Os mortos, como sabes,
não te podem ajudar.
Confundes-te com eles, fazes teu
tudo o que não disseram.
A cabeça da mãe, na fotografia,
abençoa o crime e a desavença.
Tem óculos, sorri, no jardim com gansos
que não passavam afinal de patos.

Entraste, pelo mesmo portão,
nas casas em que se prepara a peste
e não te atreverás sequer a escrever
o insuficiente livro da infância,

o cheiro, como dizer, das tangerinas.


LAGAR

As mães, e até as que não eram mães,
achavam salutar que mergulhasses no mosto,
na promessa apenas desse vinho tinto
que ao enrijecer os músculos
despertava a alma para infâmias e paixões.

Que diriam agora, se o pudessem dizer,
essas mães? Deixa, qualquer abismo serve:
perdeste a infância e não encontraste o mundo.


CAFÉ DO HORTELÃO II

É quase um regresso. A salamandra
está no mesmo sítio, a cadela
ainda não morreu. Mas espera-me
um sorriso de viúva que em vão
procura ser igual. Não vou ter de acordar
ninguém para me servir um brandy,
uma cerveja, o vinho que arrefece
no esquife de alumínio ao lado do balcão.

O café, pequena taberna, já só abre
à tarde, por algumas horas, obedecendo
mal, como pode, à tirania do hábito.
Pergunto-me o que farão agora
os meus silenciosos amigos,
a breve confraria de álcool
que apostava comigo na infâmia.
Nunca mais vi o Pintéve, o Falcão,
desconheço onde bebem,
mas tenho a certeza que bebem.

Uma vez faltou a luz e ficámos
toda a noite em silêncio de La Tour,
encostados a um candeeiro de petróleo.

Doutra vez faltou a vida,
senhor Hortelão, a vida. Quem
pudesse pintar a ausência.




(Manuel de Freitas, Beau Séjour. Lisboa, Assírio & Alvim, 2003.)

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