quinta-feira, 30 de abril de 2009

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Um conto para Guimarães Rosa


"Inscrição" in Quartas histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa. Rinaldo de Fernandes (org.) Rio de Janeiro, Garamond, 2006.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Golias

Fiquei observando-o. Encolhido como um gigante que tivesse sucumbido, tal laivo de ternura me comovia. Por um momento pensei com assombro que eu não tinha o direito de flagrá-lo em tamanho desamparo, nessa hora em que estamos despidos de nossa alma exterior, só para usar uma expressão cara a mim. Pois era com afinco que ele mantinha todo o seu arsenal em prontidão contra a minha temeridade, contra a minha força de quem se sabe frágil e derrotada. Era, afinal, como bater em cachorro morto (eu, bem entendido) e duvido que ele não soubesse e mesmo se aproveitasse disso para treinar sua pontaria no exercício da madureza, essa terrível prenda. Quis acordá-lo, envolvê-lo, dizer-lhe que, pelo menos ali, nós podíamos ambos depor as armas, fosse uma bomba ou minha minúscula pedra, naquele momento em que eu precisava desesperadamente de uma trégua, ainda que fosse para declarar-me vencida e expor-lhe minhas veias abertas, as mesmas que amedrontam e afugentam as pessoas que de repente se deparam, no meio da rua, com um mendigo cuja enorme ferida na perna jamais cicatriza, mas limitei-me a ficar do seu lado, apaziguada por ter ao menos isto: um corpo que, por um breve momento, se entregava a ponto de dormir com os dois olhos fechados diante de mim.

(Leila Guenther, O vôo noturno das galinhas, Ateliê Editorial, 2006)

segunda-feira, 27 de abril de 2009

sexta-feira, 24 de abril de 2009

A evolução da espécie (conto inédito)

(Frida Kahlo e seu xolo)


O povo que habitava a norte de Tenotchitlán, no México, durante o período arcaico, comia cachorros. Não de qualquer tipo, mas o xoloitzquintle, hoje em vias de extinção e conhecido apenas como xolo, cachorro sem pelo cuja pele se assemelha à de um elefante doente. Eram cachorros vegetarianos e essa era a razão pela qual consideravam sua carne mais saborosa que a de outros animais. Possuem orelhas grandes e pontudas como a do chihuahua, também oriundo de terras mexicanas, e são tão dóceis e fiéis que, dizem, quem alguma vez teve um xolo de estimação, apesar do aspecto repugnante de sua pele, nunca mais deseja os afagos de outro bicho.
Foi por causa desse seu caráter terno que eles passaram de refeição a animais de companhia e, já no fim do arcaico, a ser enterrados com seus donos, numa prática que consistia em levar para o túmulo o que estivesse, de alguma forma, ligado ao morto, como instrumentos de profissão, alimentos, bichos de estimação e escravos preferidos – vivos –, uma vez que, para os pré-colombianos, a morte era a continuação natural da vida. Uma lenda curiosa assim refere a origem dessa raça de cães: o mais importante dos deuses, Quetzalcoátl, a serpente emplumada, teria ganhado suas penas mágicas do pássaro quetzal em troca da perda de pelos do seu irmão cachorro, o mensageiro Xólotl, que assentiu de bom grado, reconhecendo a supremacia absoluta de Quetzalcoátl. Assim, Xólotl, de condutor de almas da vida para Xebalbá, o reino dos mortos, passou a representar a abnegação e o desprendimento, sendo o único deus do vasto panteão pré-colombiano a quem não se faziam sacrifícios de sangue, mas apenas oferendas de vegetais.
Depois da chegada dos espanhóis, os astecas que restaram, já cristianizados, recorreram a um interessante sincretismo. Continuaram, por exemplo, a festejar a morte, essa outra parte da vida, e, no Natal, não era o menino Jesus que punham na manjedoura no centro do presépio, mas um filhote de cachorro. Sem pelos.

Capitu mandou flores


Sobre o volume organizado por Rinaldo de Fernandes nos cem anos da morte de Machado de Assis, uma crítica favorável de Paulo Paniago, do Correio Braziliense, ao meu conto "A outra causa", inspirado em "A causa secreta":




No centenário da morte do autor de "Dom Casmurro", três antologias aceitam o risco de produzir releituras da obra do escritor

Paulo Paniago

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”, diz Brás Cubas ao final do romance machadiano. O mesmo não se pode dizer de Machado de Assis, que teve filhos, netos e bisnetos literários, até hoje por aí, a provocar estragos e aumentar o legado do gênio, às vezes com homenagens, nem sempre com glórias.
Não tinha como, no centenário da morte de Machado de Assis, a data passar em branco. Comemorações, rapapés, é de se imaginar como Machado receberia toda a pompa e circunstância que se faz a seu respeito, mas parece que ele apreciaria. Por exemplo, três livros fazem exatamente o projeto de recriar os contos de Machado de Assis por escritores contemporâneos. Organizado por Luiz Antonio Aguiar, um deles se chama “Recontando Machado”. Para cada conto (ou dois), um autor procura ou bem atualizar, ou mesmo reinterpretar a partir do mote original. O outro livro chama-se Capitu mandou flores, foi organizado por Rinaldo de Fernandes e tem escritores que reinterpretam dez contos de Machado, além de trazer autores que procuram ficcionalizar trechos e situações do romance Dom Casmurro. Ao saldo, acrescente-se a inclusão de cinco ensaios. O terceiro é “Um homem célebre – Machado recriado”, com contos, desenhos e uma peça, publicado pela Publifolha.
As opções dos organizadores são distintas, os resultados nem tanto. Em “Recontando Machado”, para cada conto de Machado somente um escritor reelabora um conto (em três ocasiões distintas, os contos machadianos, em vez de solitários, somam dois). O texto machadiano é colocado depois do conto, o que pode levar o leitor, em alguma situações, a querer inverter a leitura: começar por Machado, depois ler a interpretação atual. Um dos que se sai melhor na tarefa é Alberto Mussa, que juntou os contos A cartomante e A causa secreta, para fazer um conto inventivo chamado A leitura secreta. Outros ficam apenas na atualização respeitosa, ou seja, na homenagem mais óbvia, ou na variante só levemente criativa, o que não ajuda. No caso de “Capitu mandou flores”, mais de um intérprete é convocado a fazer a tentativa de reconstrução de somente um conto de Machado, que sempre antecede as recriações. Uma delas consegue ser realmente original: Leila Guenther descobre uma maneira engenhosa ao extremo para reler o conto A causa secreta, um dos contos de Machado menos característicos. A releitura é original porque mostra um caminho de fato alternativo: o que aconteceria se a cena vista pelo personagem Fortunato fosse na verdade outra coisa que não aquilo que Machado sugere? A resposta de Guenther é bastante criativa e seria aplaudida, imagina-se, pelo próprio Machado, que forjou narrativa sombria a respeito do prazer humano retirado do sofrimento alheio.
Em outros pontos, como acontece com a reinterpretação de Cecília Prada para o conto Noite de almirante, está clara a eficácia técnica da escritora, mas talvez persista o erro de avaliação acerca de até onde estender a narrativa. O que era sugestão e possibilidade em Machado torna-se francamente explícito em Prada. Embora o conto talvez funcionasse por si, ao ser colocado em perspectiva junto da obra machadiana revela deslizes nas escolhas. Machado narra a história de uma promessa de fidelidade eterna forjada num momento de paixão entre um marinheiro, Deolindo Venta-Grande (apelido de bordo) e a cabocla Genoveva, pouco antes de ele embarcar para uma viagem longa, de dez meses. Quando volta e a procura, ela está com outro. Eles conversam a respeito do que houve. Houve que as coisas mudam. Ele volta para a embarcação e os amigos lhe perguntam se teve a noite de almirante, se Genoveva está bonita etc. “Parece que teve vergonha da realidade e preferiu mentir”, conclui Machado. Na história de Cecília, há também um almirante, mesmo, o almirante que comanda a corveta onde está o marinheiro Deolindo. O almirante também desce da embarcação, vai à casa onde tem esposa, Maria Amália, relembra que a mulher que tanto amava um dia lhe declarou que o filho deles, o caçula, não era filho dele. Bebe, sai, armado de pistola e sabe-se lá que decisão, encontra-se com um Deolindo armado de faca e ressentimento após o encontro revelador, e quando se esbarram um no outro é para provocar mais que desencontro.
Entre tudo e tudo, o leitor ficará com a sensação de que Machado não é para ser recontado e que será bem feito para editores, organizadores e autores se essas obras não tiverem muita repercussão além de uma resenha aqui, uma crítica acolá. Entretanto, é importante assinalar que os ensaios, sim, ao final de “Capitu mandou flores”, continuam a ser o gênero correto com que se deve abordar a obra machadiana.
Alberto Mussa é também um dos que se sai melhor em “Um homem célebre”. O princípio de composição, de se fazer passar por um pesquisador que descobre uns papéis numa biblioteca e com isso prova que a história de “Dom Casmurro” é verdadeira (mas que também apresenta uma perspectiva inovadora) é interessante e bem articulado. Nesse livro, no entanto, o conto ou romance original não está presente e resta ao leitor recorrer, quando julgar o caso, ao original machadiano. Outro que consegue uma abordagem literária eficiente é Cristovão Tezza, que recria um episódio de “Quincas Borba”. Mas alguns se saem bem mal na tarefa, caso do conto Vigília, de Carola Saavedra, baseado em Uns braços. O que em Machado é sugestão e rapidez, em Carola se arrasta e entendia, a pretexto de se tornar, por assim dizer, poético. A missa negra que Lourenço Mutarelli produz a partir de Memórias póstumas é estranha, não exatamente fora dos eixos, mas incômoda.
Isso, para não dizer coisa mais terrível na escala mais ampla. Por exemplo, que continua a faltar escritor nacional que enfrente a dimensão de Machado e o supere na briga literária, chacoalhando de vez o cânone. Se (enquanto) isso não for possível, corre-se o risco de se continuar a repisar o gênio machadiano e ver a literatura mais e mais escorrer pelo ralo da indiferença de leitores. Escritores brasileiros precisam parar de ser aprendizes de bruxo e começar as grandes mágicas.

Como se faz uma música

Cocorosie

Para começar


Um trecho que justifica o nome. A ideia veio do poeta e jornalista Ricardo Lima, numa entrevista que fez comigo.


Estava numa mesa na parte ao ar livre quando ele se aproximou com olhos de fome. Peguei um pedacinho de presunto do sanduíche e o levei até perto de sua boca. Ele o engoliu praticamente sem mastigar. Então parti um pedaço ainda maior, com pão e queijo, e o depositei na palma de minha mão: ele comeu dela, lambendo minha linha da vida. Não fui mãe, mas suponho ter experimentado algo bem próximo, se tivesse oferecido meu leite a uma pequena criatura. Eu alimentei um ser com a minha própria pele e, depois disso, ninguém pode ser mais o mesmo.


(Leila Guenther, "No caminho do cisne", O vôo noturno das galinhas. Ateliê Editorial, 2006)