terça-feira, 26 de agosto de 2025

Um golpe no meu gosto II

 


Aqui vai uma atualização da lista que comecei a elaborar em 2020, a partir das leituras de mulheres prosadoras que venho fazendo. Repito o texto da época no segundo parágrafo, acrescentando que tomei contato com a prosa YA (Young Adult), algo como a sequência temporal da literatura infanto-juvenil, embora eu creia que esse tipo de denominação seja limitante (seria Marguerite Yourcenar literatura para “Idosos da Melhor Idade?”). Aqui ressalto o nome de Holly Jackson, da trilogia Manual de assassinato para boas garotas, um triller que mistura não apenas suspense e investigação de crimes, como também temas do nosso tempo: racismo, machismo, abuso, preconceito e amadurecimento num mundo meio infantilizado e fútil. Adoraria ter lido Holly Jackson aos 15 anos, se ela já tivesse nascido na época, mas sua escrita e suas tramas envolventes me deixam animadas hoje, que tenho quase 50 anos: não leio para me instruir, mas para me encantar. A propósito, há uma série na Netflix, baseada no primeiro volume, que considerei muito fraca se comparada ao livro (não consegui ir além do segundo episódio).

Por um tempo pensei que meu amor pela leitura de prosa tivesse morrido. Não conseguia mais ler romances ou reler aqueles que um dia me encantaram. Nada me interessava mais. Lia outras coisas, outros gêneros, porque a leitura sempre fez parte de minha vida, de uma necessidade vital, mas não sabia mais o que era ser transportada pela beleza das palavras que narram, ser sequestrada por uma história até sua última página. Até que me vi envolvida e paralisada por um pequeno e aterrador romance de Marguerite Yourcenar, Golpe de misericórdia, que li porque era curto e eu tinha pressa. Depois vieram outro, e mais outro, levado pelo anterior, vários numa sequência, revelando um universo cheio de novas perspectivas de mundo, de distintas maneiras de narrar. E antes dele, outros que me mandaram sinais que na época não compreendi: todos livros escritos por mulheres. E descobri com alívio que eu não tinha deixado de gostar da prosa. Eu estava apenas cansada da prosa escrita por homens.

O percurso em progresso, por nome de autora em ordem alfabética:

Adania Shibli, Detalhe menor. Trad. Safra Jubran. São Paulo, Todavia.

Arundhati Roy, O deus das pequenas coisas. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo, Companhia de Bolso.

Carson McCullers, O coração é um caçador solitário. Trad. Sonia Moreira. Companhia das Letras.

Celeste Ng, Tudo o que nunca contei. Trad. Julia Sobral Campos. Rio de Janeiro, Intrínseca.

Celeste Ng, Os corações perdidos. Trad. Fernanda Abreu. Rio de Janeiro, Intrínseca.

Chimamanda Ngozi Adichie, Hibisco roxo. Trad. Julia Romeu. Companhia das Letras.

Cristina Judar, Oito do sete. São Paulo, Reformatório.

Elena Ferrante, A filha perdida. Trad. Marcello Lino. Rio de Janeiro, Intrínseca.

Emily Brontë, O morro dos ventos uivantes. Trad. Raquel de Queiroz. Nova Cultural.

Emily St. John Mandel, Estação onze. Trad. Rubens Figueiredo. Rio de Janeiro, Instrínseca.

Elif Batuman, A idiota. Trad. Odorico Leal. São Paulo, Companhia das Letras.

Han Kang, A vegetariana. Trad. Jae Hyung Woo. São Paulo, Todavia.

Hiromi Kawakami, A valise do professor. Trad. Jefferson José Teixeira. São Paulo, Estação Liberdade.

Hiromi Kawakami, Quinquilharias Nakano. Trad. Jefferson José Teixeira. São Paulo, Estação Liberdade.

Holly Jackson, Manual de assassinato para boas garotas. Trad. Diego Magalhães e Karoline Melo. Rio de Janeiro, Intrínseca.

Holly Jackson, Boa garota: segredo mortal. Trad. Karoline Melo. Rio de Janeiro, Intrínseca.

Holly Jackson, Boa garota nunca mais. Trad. Karoline Melo. Rio de Janeiro, Intrínseca.

Isabel Allende, O amante japonês. Trad. Ângela Barroqueiro. Porto, Porto Editora.

Jacqueline Harpman, Eu que nunca conheci os homens. Trad. Diogo Grando. Porto Alegre/ São Paulo, Dublinense.

Julie Otsuka, O Buda no sótão. Trad. Lilian Jenkino. São Paulo, Grua.

Karen Blixen, A fazenda africana. Trad. Claudio Marcondes. São Paulo, Cosac Naify.

Katie Kitamura, Uma separação. Trad. Sonia Moreira. São Paulo, Companhia das Letras.

Kim Thúy, Ru. Trad. Letícia Mei. Âyiné.

Laetitia Colombani. A trança. Trad. Patricia Xavier. Lisboa, Bertrand Editora.

Lionel Shriver, A nova república. Trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Intrínseca.

Magda Szabó, A porta. Trad. Edith Elek, Rio de Janeiro, Intrínseca.

Marlen Haushofer, A parede. Trad. Sofia Mariutti. Todavia.

Margaret Atwood, O conto da aia. Trad. Ana Deiró. Rio de Janeiro, Rocco.

Marguerite Duras, A dor. Trad. Vera Adami. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

Marguerite Yourcenar, Golpe de misericórdia. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

Maria Valéria Rezende, Outros cantos. Rio de Janeiro, Objetiva.

Marilia Arnaud, Liturgia do fim. São Paulo, Tordesilhas.

Marilia Kubota, Eu também sou brasileira. São Paulo, Lavra Editora.

Mary Lynn Bracht, Herdeiras do mar. São Paulo, Editora Paralela.

Megan Crewe, O fim de todos nós. Trad. Rita Sussekind. Intrínseca.

Mieko Kawakami, Peitos e ovos. Trad. Eunice Suenaga. Rio de Janeiro, Intrínseca.

Min Jin Lee, Pachinko. Trad. Marina Vargas. Rio de Janeiro, Intrínseca.

Muriel Barbery, A elegância do ouriço. Trad. Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo, Companhia das Letras.

Naomi Alderman, O poder. Trad. Rogério Galindo. São Paulo, Planeta.

Nastassja Martin, Escute as feras. Trad. Camila Vargas Boldrini e Daniel Lühmann, Editora 34.

Octavia Butler, Bloodchild e outras histórias. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo, Editora Morro Branco.

Olga Tokarczuk, Sobre os ossos dos mortos. Trad. Olga Baginska-Shinzato. São Paulo, Todavia.

Ottessa Moshfegh, Meu ano de descanso e relaxamento. Trad. Juliana Cunha. São Paulo, Todavia.

Pilar Quintana, A cachorra. Trad. Livia Deorsola. Rio de Janeiro, Intrínseca.

Sanaka, Hiiragi. A lanterna das memórias perdidas. Porto, Porto Editora.

Sayaka Murata, Querida konbini. Trad. Rita Kohl. São Paulo, Estação Liberdade.

Sayaka Murata, Terráqueos. Trad. Rita Kohl. São Paulo, Estação Liberdade.

Sei Shônagon, O livro do travesseiro. Trad. G. Wakisaka, J. Ota, L. Hashimoto, L. N. Yoshida e M. H. Cordaro. São Paulo, Editora 34.

Simone de Beauvoir, A mulher desiludida. Trad. Helena Silveira e Maryan A. Bon Barbosa. Rio de Janeiro, O Globo; São Paulo, Folha de S.Paulo.

Svetlana Aleksiévitch, A guerra não tem rosto de mulher. Trad. Cecília Rosas. São Paulo, Companhia das Letras.

Tieko Irii, As ruas sem nome. São Paulo, Patuá.

Yoko Ogawa, A fórmula preferida do professor. Trad. Shintaro Hayashi. São Paulo, Estação Liberdade.

Yoko Ogawa, A polícia da memória. Trad. Andrei Cunha. São Paulo, Estação Liberdade.

Yoko Ogawa, O museu do silêncio. Trad. Rita Kohl. São Paulo, Estação Liberdade.

You-jeong Jeong, Sete anos de escuridão. Trad. Paulo Geiger. São Paulo, Todavia.

You-jeong Jeong, O bom filho. Trad. Jae Hyung Woo. São Paulo, Todavia.

Xinran, As boas mulheres da China. Trad. Manoel Paulo Ferreira. São Paulo, Companhia de Bolso.

 


quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Quatro horas, sessenta e um socos

Escrevi este poema (em Este lado para baixo, ed. Peirópolis) quando soube do caso de Elaine Perez Caparroz que, em 2019, foi espancada durante 4 horas seguidas em seu apartamento por Vinícius Batista Serra, até que alguém interviesse. Os vizinhos acharam que se tratava de “briga de marido e mulher” e por isso não se intrometeram. Agora vimos Eduardo Pereira Cabral, num vídeo chocante, desferir 61 golpes em sua namorada Juliana Garcia dos Santos, até desfigurá-la. Isso é só o que está à vista, registrado, televisionado. Os dados são estarrecedores: 4 mulheres são mortas por dia no Brasil só pelo fato de serem mulheres. A cada 6 minutos ocorre um estupro. 76% das vítimas têm menos de 14 anos (o que inclui bebês). As mulheres negras são as maiores vítimas.

Este país é uma máquina de moer mulheres.
Este país nos odeia.




sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Robert Wilson, imortal

 

Morreu o revolucionário dramaturgo e encenador Bob Wilson, em cujas montagens brasileiras de A dama do mar1 e A velha2 trabalhei, com adaptação e tradução. Foi uma experiência incrível trabalhar com os atores, nos bastidores, e ver como tudo aquilo se transformava numa obra monumental, uma marca pessoal, única, de algo histórico.

No Brasil, ele também fez A vida e a época de Joseph Stálin (que aqui se chamou Dave Clark por causa da censura, em 1974, e teve duração de 12 horas), A ópera dos três vinténs, Macbeth [de Verdi] etc.

Dele, disse Ionesco:

“Eu pensava cá comigo algumas coisas sobre teatro e acabo de compreender que nada aconteceu no intervalo de tempo entre Shakespeare e Bob Wilson.”

 

1 A dama do mar foi uma adaptação de Susan Sontag para Ibsen, a primeira no Brasil com atores brasileiros, Bete Coelho e Lígia Cortez entre eles.

2 A velha foi uma adaptação de Darryl Pinckney para Daniil Kharms, com Mikhail Baryshnikov e Willem Dafoe.














quinta-feira, 24 de julho de 2025

Aviso aos navegantes

Aos seguidores deste blog analógico recém-reabilitado após uma série de problemas técnicos: se ainda recebiam alguma notificação de postagem, deixarão de receber. A opção “seguir” foi desativada por alguma trapalhada minha e não consigo restaurá-la sem que com isso exponha os nomes dos seguidores. Agora só é possível saber se há posts novos salvando o blog entre seus sites favoritos ou via Facebook e Instagram. Aliás, aproveitem e sigam o Coletivo de Escritoras Asiáticas & Brasileiras, de que faço parte, por lá.



quarta-feira, 23 de julho de 2025

Um deserto em pedaços

 

Algum tempo depois de publicar Viagem a um deserto interior, pela Ateliê Editorial, em 2015, fui, com meu então futuro marido, ao Deserto do Atacama, um lugar que há muito eu queria conhecer. O deserto mais seco do mundo. A minha vida se dividiu entre antes e depois dessa viagem. A conexão foi imediata. Foi como se as peças tivessem finalmente se encaixado. Eu tinha encontrado meu elemento, levada por alguém que me respeitava e que fazia parte daquilo – o Chile é sua terra natal. No deserto o ego se dissolvia no silêncio e na vastidão, como se numa meditação profunda, e se unia à paisagem. Senti que era feita de areia, pedra, terra, pó e nada, parte de tudo e de todos, e sem importância alguma. E isso foi transcendente, carnal e espiritualmente falando. Ali é preciso humildade. O deserto não é traiçoeiro, como dizemos sobre tudo aquilo que não entendemos direito – cobras, mar, vulcões, nossa própria mente. Ele apenas existe de acordo com as leis da física e não está nem aí para nós. É o que têm nos ensinado os povos originários. É preciso deixar a arrogância de lado diante da natureza. É claro que não me refiro a pessoas que confiam em um guia turístico que as deixa para trás, como vimos recentemente, mas àqueles que se julgam superiores a tudo. Os que acham que podem fazer qualquer coisa sem responder pelos seus atos podem se dar mal quando tentam subjugar também o que não conhecem. Na natureza selvagem, eles respondem pela consequência, ou melhor, pela inconsequência de seus atos. Trata-se apenas de ação e reação: o homem que decide se jogar do alto de uma montanha simplesmente não voará, por mais poderoso e incrível que se creia.

Descobri com humor a coincidência de ali existir inclusive uma parte chamada "deserto interior". Uma espécie de redundância, como o título de meu livro, pois para mim todos os desertos são interiores, íntimos. O trecho assim referido, de tempos em tempos, vejam só, desabrocha, acolhendo florações coloridas, criando um estranho cenário quando visto de longe. É claro que nem tudo são flores: a mão do homem até ali cria coisas inúteis, como uma escultura gigantesca que a mim parece desnecessária num lugar já tão grandioso. A interferência significativa do ser humano naquele lugar são as pedras simples cuidadosamente empilhadas, uma espécie de oferenda aos mortos ou aos deuses. Mas a mais importante se dá pelas mãos de mulheres que, num trabalho minucioso e infinito, buscam ossos de desaparecidos políticos durante a ditadura de Pinochet. Em seu governo, dissidentes, diferentes e inocentes tiveram seus corpos torturados, ou partes deles, jogados no mar ou no deserto. Nesse deserto, o do Atacama, de que faço parte. Essas mulheres buscam nele fragmentos ínfimos de filhos, pais, irmãos, maridos. Procuram recompor a dignidade de quem morreu de maneira torpe pelas mãos de gente que não sabe criar, mas apenas destruir. Em vez de uma estátua em formato de mão, elas ergueram juntas um monumento invisível mas pungente em defesa da memória. Foi isso que descobri por meio do amigo que, através de sua lente, dá outra vida ao que vê, Luís Villaça: ele me apresentou ao filme Nostalgia da luz, do chileno Patricio Guzmán, de quem eu conhecia apenas A batalha do Chile. Em Nostalgia da luz, cujo exemplar físico acabei ganhando de minha sogra (que por acaso se chama Luz), cria-se um contraste marcante: o deserto do Atacama abriga os maiores observatórios do mundo, por causa de seu céu límpido. Dele se analisa com nitidez o universo. As mulheres, aquelas mulheres que procuram pedaços de seus entes queridos, desejavam simbolicamente que os astrônomos, com seus instrumentos tão precisos em busca de corpos celestes, as ajudassem a encontrar corpos humanos que desapareceram, mas cujos rastros, como os das estrelas, ainda estão presentes, em forma de ossos, areia, pó e lembrança.

Minha viagem a um deserto interior continua. Meu deserto, o do Atacama, onde nem os camelos resistem, não acaba quando viramos pó. Aliás, eu não acharia mal que minhas cinzas fossem jogadas lá, ainda que, diante da minha insignificância, considero mais natural e coerente que elas sejam jogadas no lixo.


































terça-feira, 15 de julho de 2025

Como dizer adeus em catalão

FORMAS DE DIZER ADEUS

 

Mudar de nome

Deixar de responder às perguntas

Nunca mais olhar o telefone e o que há dentro dele

Faltar ao encontro marcado há cinco anos

Pedir demissão dos que nos demitiram

Não pensar no que se planta

nem no que se colhe

Afundar em uma rede que balançamos

com a ponta dos pés quebrados

Sair de casa e não voltar

Não sair de casa

Não sair de casa nunca mais

Enterrar no quintal um cão que nos enterra

Deixar de dar água às plantas

onde vivem os que não abandonamos

Esquecer que um dia houve música

E emudecer, sem aprender a linguagem dos sinais

Queimar os livros porque navios não há

Descer do veículo fora da parada

Sem falar o necessário ao motorista

Parar de tomar remédios receitados

E tomar outros, sem receita

Habitar Atlântida

Falar a Deus

Desligar os aparelhos – todos –

Subir no ponto mais alto de nós mesmos

e saltar

 

(Leila Guenther, em Este lado para baixo. Ed. Peirópolis, 2025)

 

 

FORMES DE DIR ADEU

 

Canviar de nom

Deixar de respondre les preguntes

No mirar mai més el telèfon i el que hi ha a dins

Faltar a la cita que tenies fa cinc anys

Demanar que despatxin els que ens han despatxat

No pensar en el que es planta

ni en el que es cull

Enfonsar-se en una hamaca que gronxem

amb la punta dels peus trencats

Sortir de casa i no tornar

No sortir de casa

No sortir de casa mai més

Enterrar al jardí un gos que ens enterra

Deixar de donar aigua a les plantes

on viuen els que no hem abandonat

Oblidar que un dia va haver-hi música

i emmudir, sense aprendre el llenguatge de senyals

Cremar els llibres perquè no hi ha vaixells

Baixar del vehicle fora de la parada

sense parlar només quan calgui al conductor

Deixar de prendre medicaments receptats

i prendre’n d’altres, sense recepta

Habitar l’Atlàntida

Parlar amb Déu

Desendollar els aparells (tots)

Pujar al punt més alt de nosaltres mateixos

i saltar

 

(vertido para o catalão por Josep Domenèch Ponsatí)

 

 


Lição

 

Para Adriana Versiani dos Anjos

 

Aprender com as plantas a crescer no vaso

pequeno demais para conter suas raízes

A suportar a chuva que as afoga

A suportar a falta de chuva que as estanca

O vento que quebra seus caules

O sol que queima seus veios

E dele também extrair a matéria que as sustém

Aprender das plantas a impassibilidade

enquanto insetos torturam suas folhas

 

Das plantas que brotam nas frestas do cimento toda vez que são arrancadas, a lição:

renascer

 

(Leila Guenther)


terça-feira, 8 de julho de 2025

Mais uma mulher de Lot

 


Para Adriane Garcia

 

Onde você perdeu seus olhos?
Em que noite eles se esconderam
Camuflados na paisagem?

Eram duas bolas de gude castanhas
Onde o mundo se enxergava e se redescobria
O que viram para desaparecer assim?
Teriam sido arrancados
Quando você olhou para trás
Antes de chegar até aqui?
Ou você mesma os arrancou?

A ameaça dos homens é vã
Porque nenhum deus tem o poder
De transformar alguém em estátua:
Isso é apenas o que dizemos às crianças
Para assustá-las se não se comportam
Enquanto preparamos as refeições

Seu corpo chegou em carne e osso
Embora recoberto de arranhões, feridas, roxos, cortes
E o que mais se acumula numa fuga
Quando não enxergamos
As solas dos pés, perfuradas de espinhos, infeccionaram

Você veio apenas para morrer
Todas nós choramos por velar uma mulher sem nome

Por respeito tentamos cerrar suas pálpebras
Mas elas afundaram
Sugadas por dois buracos
Cheios de vazio
 
(Leila Guenther)

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Também esperávamos os bárbaros


Para Marilia Kubota


Quando nascemos nos examinaram
com dedos civilizados e meticulosos
que não pudemos impedir
 
Jamais se recuperaram do que viram ao microscópio
 
Vieram pólvora fogueira ferro em brasa forno de assar gente incêndio cogumelo de fogo choque elétrico queimadura de cigarro sol sem filtro
 
Todas as tecnologias criadas por mãos sem calos e cérebros sem pudor
Mas vós, também luz, não viestes
 
Se pelo menos não houvesse tanta areia
Se pelo menos houvesse água onde nos afogar
Não vos teríamos esperado
 
Por vós nos sentamos no primeiro degrau e não subimos os outros
 
Na soleira do deserto vos aguardávamos
(A nós, moeda de troca, era proibido o abrigo na torre de vigia)
 
Os cabelos embranqueceram
as veias estouraram
os seios caíram
 
O pó empilhado se petrificou
E a flor do chão não renasceu depois de pisada
 
Não viestes
 
Só muitos séculos depois é que soubemos:
Nunca vos deixaram entrar
 
(Leila Guenther)