Acabo de ler, numa sentada, Cancioneiro
da desilusão: um pseudo-renga (Urutau), de Karen Kawana. Quando ela se
referiu a um “pseudo-renga”, eu ri, porque achei que era uma resposta à
mensagem em que chamei meus tercetos de “pseudo-haicais”. No caso dela, penso
em pseudo- no sentido enriquecedor que o prefixo agrega a palavras como pseudofruto
– uma fruta que vem da parte acessória de uma flor. Um figo, um caju, um
morango. Pois o renga é um poema japonês encadeado, coletivo, composto em
estrofes de três e dois versos por vários participantes, muitas vezes de forma
lúdica em grêmios de haicai. E o termo pseudo-renga, cunhado pela
autora, se dá pelo fato de ele não ser escrito por múltiplos autores, mas
apenas por Karen, e ter apenas um eu lírico, masculino, uma espécie de homo
japonicus cuja trajetória (tão familiar para mim, que descendo de
japoneses) é de um exílio circular e infinito, de quem, em direção ao oeste, chega por fim
ao leste, ponto de partida e chegada. Esse eu lírico, no entanto, é também
coletivo em seu sentido existencial, ao ecoar a trajetória do imigrante japonês
que abandona um país onde não cabe mais (“os que deixei/ não queriam o
diferente/ para os envergonhar”), vem para uma terra com a promessa ilusória de
novas oportunidades (“lá há sabiás/ calor de dar inveja/ a este meu país”),
tentando sem sucesso integrar-se (“aqui também me veem/ e não me compreendem”),
e cujos descendentes, anos depois, refazem o caminho em sentido contrário, em
busca, no Japão, também de novas oportunidades de desilusão (“fui meu chefe/ e
meu próprio escravo/ sem qualquer lucro”). Nessa descrença o subtítulo encontra o título,
uma vez que cancioneiro evoca a literatura
mais tradicional da nossa melancólica língua portuguesa.
A terra natal deste
imigrante – seu furusato –, tantas vezes motivo de idealização e de
esperança dos que já nasceram aqui, se revela, no trajeto inverso dos dekasseguis, culminado de vergonha,
tão inóspita e tão pouco acolhedora como o Brasil o foi. A impressão amarga do
fracasso tem passagem de ida e volta (“de novo aqui/ mais uma vez pária/ outra
vez só”). O homo japonicus carrega uma inadaptação que não pode
esconder: no Brasil não é brasileiro e no Japão não é japonês; portanto, ele não
conhece pertencimento. Isso o mantém sempre desterrado (“eu, não obstante/
continuo estrangeiro/ em toda parte”), porque seu ethos não o deixa
sentir-se em casa nem dentro de si mesmo: sua mente e seu corpo cansados (“a
dor do corpo/ horas vestindo máscaras/ sob as quais não sou”), que a custo
nesta obra arrasta não por acaso no encadeamento do renga sem trégua, não
encontra porto onde se ancorar, está em constante errância, deslocado. Em Cancioneiro
da desilusão, o que há de imutável e permanente é justamente a diáspora:
uma espécie de lugar entre, um intervalo eterno, um não-lugar, talvez o
único que nos é permitido habitar.
(Leila Guenther)