segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Uma amarga canção do exílio

 


Acabo de ler, numa sentada, Cancioneiro da desilusão: um pseudo-renga (Urutau), de Karen Kawana. Quando ela se referiu a um “pseudo-renga”, eu ri, porque achei que era uma resposta à mensagem em que chamei meus tercetos de “pseudo-haicais”. No caso dela, penso em pseudo- no sentido enriquecedor que o prefixo agrega a palavras como pseudofruto – uma fruta que vem da parte acessória de uma flor. Um figo, um caju, um morango. Pois o renga é um poema japonês encadeado, coletivo, composto em estrofes de três e dois versos por vários participantes, muitas vezes de forma lúdica em grêmios de haicai. E o termo pseudo-renga, cunhado pela autora, se dá pelo fato de ele não ser escrito por múltiplos autores, mas apenas por Karen, e ter apenas um eu lírico, masculino, uma espécie de homo japonicus cuja trajetória (tão familiar para mim, que descendo de japoneses) é de um exílio circular e infinito, de quem, em direção ao oeste, chega por fim ao leste, ponto de partida e chegada. Esse eu lírico, no entanto, é também coletivo em seu sentido existencial, ao ecoar a trajetória do imigrante japonês que abandona um país onde não cabe mais (“os que deixei/ não queriam o diferente/ para os envergonhar”), vem para uma terra com a promessa ilusória de novas oportunidades (“lá há sabiás/ calor de dar inveja/ a este meu país”), tentando sem sucesso integrar-se (“aqui também me veem/ e não me compreendem”), e cujos descendentes, anos depois, refazem o caminho em sentido contrário, em busca, no Japão, também de novas oportunidades de desilusão (“fui meu chefe/ e meu próprio escravo/ sem qualquer lucro”). Nessa descrença o subtítulo encontra o título, uma vez que cancioneiro evoca a literatura mais tradicional da nossa melancólica língua portuguesa.

A terra natal deste imigrante – seu furusato –, tantas vezes motivo de idealização e de esperança dos que já nasceram aqui, se revela, no trajeto inverso dos dekasseguis, culminado de vergonha, tão inóspita e tão pouco acolhedora como o Brasil o foi. A impressão amarga do fracasso tem passagem de ida e volta (“de novo aqui/ mais uma vez pária/ outra vez só”). O homo japonicus carrega uma inadaptação que não pode esconder: no Brasil não é brasileiro e no Japão não é japonês; portanto, ele não conhece pertencimento. Isso o mantém sempre desterrado (“eu, não obstante/ continuo estrangeiro/ em toda parte”), porque seu ethos não o deixa sentir-se em casa nem dentro de si mesmo: sua mente e seu corpo cansados (“a dor do corpo/ horas vestindo máscaras/ sob as quais não sou”), que a custo nesta obra arrasta não por acaso no encadeamento do renga sem trégua, não encontra porto onde se ancorar, está em constante errância, deslocado. Em Cancioneiro da desilusão, o que há de imutável e permanente é justamente a diáspora: uma espécie de lugar entre, um intervalo eterno, um não-lugar, talvez o único que nos é permitido habitar.

 

(Leila Guenther)