(Ayde Veiga Lopes. Sem título)
Quando o ônibus chegou
aos arredores da cidade, notou que tudo estava lá, em seu devido lugar, quase
sem mudanças, mas definitivamente perdido. O mal-estar da viagem cessara. No
lugar dele, veio uma dor mais concreta e palpável: o sofrimento de não
conseguir vislumbrar o mundo sem algo muito importante. Um mundo – o seu mundo
– amputado, ao qual faltava um pedaço impossível de ser refeito. Se ao menos
ele acreditasse que haveria um depois, algo além, um deus, por assim dizer, ele
estaria mais tranquilo, seria até capaz de suportar, mas ele tivera a
infelicidade de herdar do pai, aquele pai estranhamente submisso, uma profunda
falta de fé. O pai, ao menos, tentara. Esforçara-se para adquirir algo que não
tinha, e nunca teria, e por isso ficou louco, murmurando sempre e apenas “por
que me abandonaste?” não a deus, mas ao próprio filho. Mas ele nunca teria ido
tão longe. O mais longe que fora não era distante de onde sempre esteve. E
agora estava de volta.
O ônibus chegou à
rodoviária às 9h da manhã. A viagem tinha durado mais do que as dez horas
habituais, por causa da chuva que caíra durante boa parte do percurso.
Ao desembarcar, trazia
consigo uma pequena maleta, uma garrafa de água e um sanduíche que não
conseguira comer. Sentiu-se perdido e, como sempre acontecia nessas situações,
só. Apesar de toda aquela gente que movimentava o terminal, ele era incapaz de
enxergar alguma coisa. E, mesmo se alguém lhe dissesse “eu o levo pela mão”,
ele não poderia ouvir. Tudo lhe parecia abandonado, derruído. Resolveu se
sentar um pouco no banco mais próximo da saída a fim de tomar força. Precisava
de força, de uma coragem que ele não tinha tido nem mesmo quando partira, há anos.
Só hoje se dera conta de que ter ido embora dali não fora um ato de coragem,
mas uma retirada desastrada de alguém que, na fuga, deixa cair da valise vários
pertences pelo caminho.
Esteve a ponto de
chamar um táxi. Tentou fazer um gesto, mas o que seria dele se perdeu no ar.
Ficou olhando a fila dos carros, nos quais entravam pessoas cujo destino se
ignorava, a quem talvez aguardassem provações mais penosas que a dele. Só ele
não conseguia. Ele sabia que era diferente, não para o bem, mas para o mal: era
apenas um feto pela metade, que não poderia nunca ter vindo à luz. Diversos
táxis partiram levando passageiros, sem que ele se decidisse a tomar um. Chorou
impassível como um espectador no cinema que se emociona, com certo pudor, com
um drama alheio e fictício. Estava cansado. Não podia se mover. Os pensamentos
cessaram e sua cabeça ficou pairando num estranho vazio durante muito tempo.
Depois, quase recomposto, olhou o relógio, voltando a si. Já anoitecia. O
enterro devia ter terminado. Com esforço, separou algum dinheiro, jogou na
lixeira a garrafa de água, o sanduíche e a maleta, e dirigiu-se ao guichê para
comprar uma passagem de volta.
(Leila Guenther)
Gostei muito desse conto!
ResponderExcluirJCarlos
E ele se livrou das amarras
ResponderExcluire das malas
e da marra
Ainda nao será capaz de voar
Mas se dará com maior desenvoltura
daqui pra frente
o caminhar