segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Sobre poesia, ainda


Sobre poesia, ainda é um título deliberadamente amplo, cujas palavras permanecem pulsando a cada página. A vírgula – e Tarso de Melo, poeta meticuloso, sabe bem disso – demarca um pequeno intervalo entre o substantivo e o advérbio, admitindo ao menos duas possibilidades quanto à noção de tempo aqui presente: se, por um lado, se poderia considerar anacrônica a intenção de ainda se dizer algo sobre poesia neste momento, por outro, a mesma palavra parece assinalar a urgência de uma publicação como esta, que ressalta o quanto ainda há para ser dito (ou repetido em novas formas, novos contextos).
Essa oscilação consciente do título, de certo modo, atravessou até mesmo o processo de produção do livro, entre a enquete despretensiosa e o mapeamento do contemporâneo. A princípio, em 2015, Tarso provocou alguns de seus pares com cinco perguntas enviadas por e-mail, divulgando as respostas recebidas no blog Contra tanto silêncio. O murmúrio dessas primeiras vozes foi ganhando eco e, desde então, Tarso decidiu organizá-las neste volume, incluindo agora outras vinte e duas para compor uma pequena amostra do que pensam aquelas e aqueles que escrevem poesia hoje no Brasil.
Como destacam Diana Junkes e Fabio Weintraub no posfácio, ainda que haja evidentes confluências em alguns momentos, o leitor poderá notar também pontos de divergência nesse mosaico. Isso se dá não apenas pela variedade de formações desses poetas, mas pela própria dificuldade de definição do que é a poesia  – signo que, afinal, nos reúne – e de como ela se manifesta. Dando a palavra a essas diferentes vozes, desarmadas de seus objetos criativos (os poemas), Tarso de Melo propõe um gesto democrático, o que inclui também a discordância como elemento constitutivo de um ambiente verdadeiramente plural.
Entre o anacronismo (o excedente do que não se realizou) e a urgência (o impulso do que quer se realizar), esses poetas reunidos em Sobre poesia, ainda elaboram muitas outras respostas possíveis às indagações do presente, sintetizadas nas perguntas de Tarso. Mas, no fundo, diante de tanto horror, a própria reunião dessas vozes (des)encontradas é um sinal positivo que parece dizer: somos diversos e ainda estamos vivos.

(Renan Nuernberger, em Sobre poesia, ainda: cinco perguntas, cinquenta poetas. org. Tarso de Melo. Lumme Editor, 2018)



Participam:
Adelaide Ivánova, Adriano Scandolara, Alberto Pucheu, Ana Estaregui, Ana Rüsche, André Luiz Pinto, Andréa Catrópa, Annita Costa Malufe, Antonio Moura, Bruna Beber, Bruna Mitrano, Carla Diacov, Carlos Augusto Lima, Carlos Ávila, Carlos Felipe Moisés, Casé Lontra Marques, Dalila Teles Veras, Danielle Magalhães, Danilo Bueno, Dirceu Villa, Edimilson De Almeida Pereira, Eduardo Sterzi, Fernando Fiorese, Guilherme Gontijo Flores, Heitor Ferraz Mello, Helio Neri, Júlia De Carvalho Hansen, Júlia Studart, Leila Guenther, Leonardo Gandolfi, Lilian Aquino, Lubi Prates, Lucas Bronzatto, Manoel Ricardo de Lima, Marcos Siscar, Micheliny Verunschk, Nina Rizzi, Pádua Fernandes, Paulo Ferraz, Prisca Agustoni, Reynaldo Damazio, Ricardo Aleixo, Ronald Polito, Ruy Proença, Sérgio Alcides, Sergio Cohn, Simone Brantes, Thiago E, Thiago Ponce de Moraes e Yasmin Nigri.




terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Quatro horas


O expediente de um emprego meio período
Metade do que se diz necessário dormir

Um dia de vestibular de uma universidade pública
Duas sessões de cinema
Uma viagem de carro de São Paulo ao Rio 
Uma viagem de avião do Brasil ao Chile

A duração de uma cirurgia de intestino

O tempo de um espancamento
O tempo que leva para alguém fazer algo a respeito

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

A humanidade (im)possível de Kore-Eda

Um filme em que o que se move não é a câmera, mas a história por trás dela. Uma mulher, mãe de um menino pequeno, tentando entender o aparente suicídio de um marido que não deixou pistas nem motivo. Esse foi meu primeiro contato, há mais de vinte anos, com o mundo de Hirokazu Kore-Eda, ganhador de Cannes 2018, cujo Assunto de família ainda não vi. O filme então era Maborosi, a luz da ilusão. Até hoje não sei qual era a ilusão ali e por que ela era iluminada, mas desde então esse mundo, tão japonês e ao mesmo tempo tão universal, passou a me interessar.
Em seguida vieram Depois da vida, em que os mortos, à espera de seu destino numa espécie de limbo com ares de repartição pública, têm de decidir qual a única e, portanto, mais significativa memória, que, em forma de gravação, deverão levar para a eternidade. Ninguém pode saber, baseado num caso real, conta a história do abandono, pela mãe, de cinco crianças, deixadas sozinhas em casa aos cuidados do mais velho, de doze anos, e de seu trágico destino. Still walking era sobre uma reunião de família japonesa com seus ditos e não ditos. Em Pais e filhos, o drama de duas famílias que têm seus filhos trocados na maternidade. Nenhum filme lembrava o anterior em nada, nem pela temática, nem pela forma. Pode-se reconhecer um filme de Takeshi Kitano ou de Ozu pelo enredo, luz ou enquadramento, mas não um filme de Kore-Eda, em que a marca pessoal está além desses conceitos. Porque Kore-Eda nunca se parece com Kore-Eda. E os filmes que tornaram para mim mais clara essa distinção foram dois que vieram na sequência um do outro como contraposição: Nossa irmã mais nova e Depois da tempestade.
Nossa irmã mais nova é quase uma história de ninar, um conto de fadas, sobre três irmãs que, vivendo sozinhas num espaço e num tempo pouco definidos, acolhem sua meia-irmã, depois da morte do pai, depois das traições desse pai, apesar dos protestos da mãe. É um filme sobre o profundo significado da fraternidade, que parte da família, passa pela comunidade, até atingir a nós, espectadores, com uma lição de tamanha ternura que ficamos desejando morar dentro dele. O Japão ou algum país pode ser assim? Provavelmente não. Essa compaixão, esse entendimento solidário do outro nos afeta não apenas pelo estranhamento, por beirar o irreal, mas porque acena para uma possibilidade de existência mais humana.
Já em Depois da tempestade, a personagem principal é uma espécie de pícaro que busca a sobrevivência por meio de pequenos golpes. Um escritor da metrópole que perdeu a inspiração e trabalha agora como detetive, resolvendo casos sem importância. Gasta seu salário em apostas e vive atrasando a ajuda financeira que deveria dar ao filho, razão pela qual recebe o desprezo da ex-mulher. Mas, em todo o seu trajeto, o que busca, lentamente e com atraso, é se tornar melhor. É o ser humano em processo. Sou eu, somos nós, num caminho em que a viagem é tão importante quanto à chegada ao destino final. “Ainda não sou o homem que queria ser” é a resposta que dá ao filho sobre o que gostaria de ter feito na vida.
Em O terceiro assassinato, síntese radical desses dois percursos apontados em Nossa irmã mais nova e Depois da tempestade, um advogado desconfia da culpa de um assassino confesso. Por que um criminoso reincidente, em vias de ser condenado à morte, mentiria sobre sua própria inocência? Talvez porque seu crime aponte para uma outra humanidade, feita de laços que ainda não conseguimos compreender.
Talvez porque Kore-Eda, além de nunca se parecer com si mesmo, seja sempre mais do que Kore-Eda.



quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Ao irmão que parte

Lavineg, há algo preso na garganta do tempo
Como naquele tempo em que as sombras caminhavam conosco
Lembras? Tuas sandálias puídas de caminha
r sobre as
                                                                   [pedras das escarpas
Eras o mais velho entre nós, o mais experiente em buscar alimento 
                                                                [nas cercanias da miséria
Brincavas pouco a deixar-nos espalhar os ossos dos bichos 

                                                                          [como alegorias
Cresceste mais duro e mais depressa que nós, Lavineg, 

                                                                      [foste o mais bravo
Não fomos criados para sermos humanos, senão animais astutos 

     [a sobreviver à agreste herdade de espinhaços nos couros do cangaço
Perdi-me nos dias de retirante a sobejar lonjuras
Foste para mim a rosa dos ventos, a esperada chuva do sertão, a regar 

                                                                               [a força para a luta
Caminhei teus passos fisgados pelo coração seco feito carne de sol
Envelhecemos pois, Lavineg, cada qual ao seu modo, 

                   [tu o tempo da idade, eu o tempo da História preso nos pés
Ensinaram nossos pais que a vida é desaviso, canto de carcará, 
                                                 [fuga de asa branca no pouso da manhã
Fui mundo afora, Brasil fundura de imensidão, foste todo o universo 

                                                                          [dentro do meu peito
Não pediste permissão para arribar ventania, ganhar paisagem 

                                                                              [de despedida
Lavineg, vá, vá, avisa lá em casa que eu me demoro 

                                                                       [o tempo da precisão

(Rita Alves, 29/01/2019)