Literatura
brasileira contemporânea tem lançamentos de obras de fôlego no campo da poesia.
O poeta e professor Mario Alex Rosa fez uma seleção de trabalhos escritos por
mulheres
A
poesia brasileira contemporânea vai bem, obrigado. Essa afirmativa assim, tão
sem ajustes, pode dar a entender que tudo é sinal de qualidade. O que se pode
notar hoje é que existem muitas publicações, inclusive com o crescimento de
pequenas editoras. Fazer a varredura dessa enorme quantidade de livros é tarefa
difícil, complexa e um tanto perigosa, pois qualquer reparo que um crítico
possa fazer a um livro de um poeta contemporâneo pode condenar este a um dos
círculos infernais de Dante. Ou mesmo quando cita apenas alguns, omitindo
outros, como é o caso aqui, a cabeça do crítico pode ir a prêmio. No entanto, é
preciso assumir riscos, pois assim, quem sabe, possamos comentar abertamente a
poesia contemporânea em suas diversas manifestações.
Para
começar, lembro aqui uma passagem do ótimo poeta Cacaso – um dos mais
importantes pensadores de sua geração, que assim inicia uma resenha sobre a
poesia da Olga Savary: “Uma atitude que se generaliza entre as mulheres poetas
é evitar serem confundidas com a tradicional 'delicadeza feminina', para a qual
os críticos sempre apelam quando querem reconhecer algumas peculiaridades em
nomes como Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa” (revista Veja, 13.out., 1982). A propósito disso, passaremos em revista sete
livros de poetas contemporâneas que publicaram obras em 2015. Adiantamos que,
por limite de espaço, não há como detalhar certos procedimentos formais de cada
autora. Todas as poetas têm mais de um livro editado, tendo Simone de Andrade o
maior intervalo de publicação entre um livro e outro, cerca de 20 anos. Já a
poeta Denise Emmer é a que mais lançou livros, mesmo porque é de outra geração.
Enquanto Ana Elisa Ribeiro, Adriane Garcia, Ana Martins, Tatiana Pequeno, Leila
Guenther e Simone de Andrade são todas da mesma geração. Das sete poetas,
Emmer, Guenther e Ana Elisa atuam também em outros gêneros, como o romance e o
conto.
Se Cacaso estava certo, é possível então sair do clichê “delicadeza feminina” e pensar a poesia das sete poetas como um lugar de autoras que escrevem independentemente dos vestígios que possam haver de delicado e feminino em cada escrito. O que importa dizer é que o poeta deve ficar alheio a esses adjetivos e deixar a palavra poética se impor como processo de transformação, tanto estético como ideológico.
Se Cacaso estava certo, é possível então sair do clichê “delicadeza feminina” e pensar a poesia das sete poetas como um lugar de autoras que escrevem independentemente dos vestígios que possam haver de delicado e feminino em cada escrito. O que importa dizer é que o poeta deve ficar alheio a esses adjetivos e deixar a palavra poética se impor como processo de transformação, tanto estético como ideológico.
Pensando
assim, Aceno, infelizmente de pequena
circulação, é o segundo livro de Tatiana Pequeno, uma poeta que acena para um
lugar onde a linguagem de extrema depuração comove porque desola, comove porque
não inibe o feminino, ainda que às vezes atue de forma hermética. A poesia de
Tatiana Pequeno, ao contrário do seu sobrenome, tem na sua estrutura poemas
narrativos, com versos longos entrecortados com grande habilidade no uso dos
enjambements. Aceno, mesmo com seu intimismo, talvez seja o único livro das
sete poetas que evoca momentos recentes dos protestos que se espalharam no
Brasil nos últimos anos. Na forma de uma carta aberta (Carta para Mariana,
depois dos protestos) embora íntima, temos um dos belos poemas desse livro
grandioso.
Corpos em marcha, de Simone Andrade Neves, é quase a estreia da
poeta mineira. Mas um começo muito promissor, pois traz uma poesia que, muito
trabalhada na sua linguagem, consegue se esquivar da suposta delicadeza
feminina. A sua delicadeza é conquista diária, por isso seus corpos (linguagem)
se impõem numa perícia demorada na escolha de cada palavra, cada verso, e tudo
isso sem perda do lirismo que, camuflado, se abre sutilmente para a descoberta
do prazer, como no admirável poema Ovo. Simone de Andrade, sem dúvida, é uma
das ótimas revelações na cena da nossa jovem poesia contemporânea.
Se
na poeta mineira acima o delicado se esquiva, o mesmo não ocorre com a poesia
da belo-horizontina Ana Martins Marques. Em seu terceiro livro (Livro das semelhanças), a poeta acentua
o uso da metalinguagem, porém recoloca esse exercício numa visada amorosa, como
na última parte do livro, onde o tema amoroso, um dos mais buscados pela poesia
desde sempre, ganha delicadeza sem frivolidade. Ana Martins é daquelas poetas
que pensa muito o que sente e, sentindo, recolhe-se para embaralhar os
sentimentos. Talvez por isso a ironia seja tramada de maneira discreta, mas que
está lá para dizer que o amor, às vezes, pode ficar ancorado num porto de
alguma cidade, onde uma vez esquecido é lembrado. Que o digam as
“cartografias”, um dos pontos fortes do livro. Portanto, as semelhanças aqui
são apenas um espelho, digamos fosco, que nos adverte ser preciso desconfiar
das doações.
Desconfiar
é o que Ana Elisa faz no seu Xadrez.
Mudando as peças do tabuleiro, a poeta não mede palavras para derrubar os reis.
A sua delicadeza é dar xeque-mate com humor, mas um humor irônico, pois a
aparente simplicidade da linguagem é na verdade algo sempre refletido, como no
jogo que dá título à coletânea, que exige sensibilidade concentrada. Xadrez tem entre seus melhores
resultados o deboche desses amores em tempo de muita mercadoria. A poeta sabe
que o melhor antídoto para a poesia é a própria poesia e disso resulta um livro
cuja qualidade é justamente não amenizar o sentimento amoroso. O ótimo poema
Aqueles ciúmes da Playboy é uma das peças em que Ana Elisa não poupa críticas
ao que poderia ser “fácil” dentro do tema do erotismo. Em Xadrez, mais uma vez a poeta mineira não joga na defensiva.
Adriane
Garcia ganhou em 2013 um importante prêmio de poesia com seu livro Fábulas para adulto perder o sono. Nesse
livro, a poeta brinca ironicamente com as fábulas, mas é no seu terceiro livro Só, com peixes que ela, num mergulho
mais marítimo, ao modo dos escafandristas, embora ainda temático, vasculha os
mundos abaixo de nós, sem esquecer a superfície. Um livro cujo feminino na sua
liquidez nos faz lembrar a bela definição que o escritor americano Carl
Sandburg escreveu: “A poesia é o diário de um animal marinho que vive na terra
e que gostaria de voar”. Só, com peixes, em seus melhores momentos, essa máxima
pode definir os caminhos que Adriane Garcia descobriu ao abrir e fechar seu
livro com dois poemas que inundam de beleza essa poesia.
Saindo
do círculo de Minas Gerais, Leila Guenther, nascida em Santa Catarina, é uma
poeta mais vinculada à prosa. No entanto, publicou um livro cuja “delicadeza
feminina” se dá justamente no equilíbrio dessa Viagem a um deserto interior, título da coletânea de seus poemas.
Na ótima orelha, o poeta e crítico Alcides Villaça pergunta: “Poesia feminina?
Se a arte não parece ter gênero, as experiências o têm: chegam aos poemas de
nossos dias vozes marcadas por um espanto de vida a um tempo estoico e
dilacerado, ressurgido de incêndios, vingando um calor histórico”. Poeta que
cultiva os silêncios, tem nessa escuta os melhores momentos nos poemas mais
longos, nos quais podemos ouvir melhor os seus desertos interiores. Já os
haicais, que ocupam uma parte do livro e que poderiam ser o lugar desses
silêncios, talvez sejam mais exercícios do que propriamente novas formas de
descobrir o vazio da arte do zen.
Denise
Emmer, como dissemos, é a poeta mais experimentada, com uma obra vasta e que
tem nesta nova reunião Poema cenário e
outros silêncios um momento, digamos, sublime, com uma poética mais ao
gosto elegíaco, porém sem se prender apenas à melancolia, pois a poeta bem sabe
que é preciso olhar o mundo com suas durezas, como o belo Poema cenário, dedicado
ao pai. Em tempo de muita euforia e pressa, a poesia de Emmer nos propõe um
recolhimento para dentro de seus poemas, cuja voz baixa e grave pode recuperar
um pouco da falta de delicadeza que afeta o mundo hoje.
Enfim,
são apenas sete poetas, sabemos de outras, mas 2016 está aí e, quem sabe, a
poesia possa ainda nos surpreender.
A Literatura levada a sério...
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