sábado, 15 de novembro de 2025

Caminhando com o vento

Tenho usado uma roupa nova a cada semana. Explico: a "roupa" é meu próprio corpo, do qual faz parte minha cabeça, cheia de medos, idiossincrasias e condições psiquiátricas consideradas graves. A ligação entre aflições mentais e dores ou doenças físicas é hoje bastante conhecida. O sofrimento é integral, por inteiro: é o que se chama de somatização. E este corpo vinha ficando progressivamente mais difícil de ser arrastado, feito um armário cada vez mais atulhado de tranqueira que tentamos mudar de lugar sozinhos procurando encontrar um canto onde ele caiba. Tinha se tornado um fardo e movê-lo drenava minha energia. No meu caso, podia ser ainda pior, é claro, se eu não tivesse tido acesso a possibilidades que muitos não têm – yoga, psicoterapia, medicação para fibromialgia, acupuntura etc. Os períodos, por exemplo, em que estive impossibilitada de praticar yoga (que aprendi com Vinícius Della Líbera e, para mim, a mais eficiente das psicoterapias), me levaram a pensar que era melhor me deitar definitivamente num caixão só para não continuar a sofrer de pé. Estava sem nenhuma esperança de, beirando os cinquenta anos, me sentir confortável e funcional dentro desta casca, até que comecei, com Fernando Hashimoto, uma terapia denominada Rolfing, uma espécie de manipulação do tecido conjuntivo desenvolvida pela pesquisadora Ida Rolf (1896-1979), que é o que mais se aproxima daquilo que Wilhelm Reich (1897-1959) chamou de couraça: um tipo de estrutura onde se alojariam nossos traumas e tensões.

Na amostra do que seria a primeira sessão, a dor que mais me desesperou por anos praticamente desapareceu. Saí do consultório andando como se vestisse um corpo novo. Nas outras sessões semanais, essa impressão foi se intensificando. As caminhadas habituais com a canina Shoyu (força bruta e meu termômetro pessoal) se tornaram menos extenuantes. Eu estava mais sintonizada com ela, que, como elemento animal domesticado, é uma ponte entre o humano e a natureza da qual nos afastamos, creio. Mas foi preciso aprender a lidar com essa novidade, porque eu não estava acostumada a tantas transformações simultâneas e nítidas: quando o corpo muda, a cabeça também muda, uma vez que ela é parte do corpo. Me sentia como uma criança que está aprendendo a andar: ainda titubeante, insegura, desengonçada, depois de ter passado tanto tempo em berço nada esplêndido. As outras sessões foram me conectando com a terra, com o mundo à volta, para o qual eu só costumava olhar a partir de pontos fixos e rígidos. A alienígena inábil com a gravidade enfim aterrissava. Caminhando com certa fluidez, deixei de olhar apenas para baixo, sempre com medo de pisar em falso e ser engolida pelo abismo sob meus pés (penso agora que não é por acaso meu livro mais recente se chamar Este lado para baixo). O abismo ainda me habita, mas passei a olhar para além dele, a me sentir mais parte da paisagem à volta, enxergando por todos os lados, com todos os olhos e poros, com a “couraça” mais permeável a práticas, experiências e ideias. Não à toa tomei neste curto período algumas decisões importantes e executei outras tantas que já estavam fazendo fila na minha vida. Às vezes me peguei caminhando olhando para o horizonte, e isso significava para mim ter menos pavor, alguma esperança e ser um pouco mais terráquea. A roupa nova afinal não era uma capa de chuva. Também não é um vestido de renda; está mais para aquelas vestes esvoaçantes de algodão laranja do budismo: não acredito em cura, palavra atualmente tão desgastada. Cura implica imutabilidade e ausência definitiva das causas e consequências que nos constroem. Só que nada é permanente, nem dentro nem fora. E, como um imenso tecido conjuntivo, tudo está interligado. “Meu problema é que meu problema não pertence apenas a mim. Que a melancolia que se exprime no meu corpo vem do mundo”, diz a antropóloga francesa desfigurada por um urso, Nastassja Martin, com cujas reflexões me identifico. Acredito em uma jornada constante e contínua por equilíbrio, tão precário em casos como o meu. Mas, para cumprir o percurso, necessitamos de força para seguir caminhando.

Penso com frequência no que dizia Thich Nhat Hanh (1926-2022), o monge budista que popularizou a meditação andando: “O milagre não é andar sobre a água. Milagre é andar sobre a terra verde, profundamente imerso no momento presente, sentindo-se verdadeiramente vivo”. Faz sentido para mim. Não sei o que há no fim do túnel: é preciso atravessá-lo para descobrir. Mas é o que busco nesta caminhada, enquanto ainda estou viva.


(fotografia de Thomas Oxford)

  

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