sábado, 31 de março de 2018

Autorretrato aos vinte anos

Me deixei levar, peguei o bonde andando e não soube nunca 
para onde poderia ter me conduzido. Ia cheio de medo, 
meu estômago ficou embrulhado e minha cabeça zunia:
devia ser o ar frio dos mortos.
Não sei. Me deixei levar, achei que era uma pena 
acabar tão cedo, mas por outro lado
escutei aquele chamado misterioso e convincente.
Ou você escuta ou não escuta, e eu o escutei
e quase caí no choro: um som terrível,
nascido no ar e no mar.
Um escudo e uma espada. Então,
apesar do medo, me deixei levar, encostei o meu rosto
no rosto da morte.
E para mim foi impossível fechar os olhos e não ver
aquele espetáculo estranho, lento e estranho,
embora encravado em uma realidade velocíssima:
milhares de rapazes como eu, imberbes
ou barbados, porém todos latino-americanos,
de rosto colado com a morte.

(Roberto Bolaño, em tradução minha e de Marcelo Donoso)


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